Historicamente, os laterais são, na verdade, zagueiros. Era assim na terminologia do futebol como esporte conhecido atualmente, que ainda engatinhava nas décadas finais dos anos 1800.
Os full-backs, posição atualmente traduzida para “laterais”, eram os últimos jogadores da defesa e atuavam centralizados. Eram os dois do 2-3-5, a pirâmide super ofensiva que era a base das formações no início do futebol.
Os três à frente deles eram os half-backs, termo que se perdeu ao longo dos anos e não conta com tradução literal — atualmente, seriam considerados meio-campistas. Mas foram eles que recuaram e se tornaram zagueiros ao longo do tempo, enquanto os full-backs abriram para os lados. Na verdade, os zagueiros eram, a grosso modo, meias.
Avance mais de 100 anos e, atualmente, vemos zagueiros em diversos tipos de funções na Premier League. Eles evoluíram para um tipo de jogador carrancudo e sem técnica, mas voltaram a se transformar em maestros e praticamente armadores — e, agora, viraram laterais. Por que e como isso aconteceu?
A evolução dos zagueiros
Conforme a pirâmide foi sendo desmontada e, posteriormente, invertida, jogadores do meio foram recuando. No 2-3-5, o half-back que ficava no centro se tornou o centre-half, que, na terminologia inglesa, virou o centre-back — atualmente traduzido para zagueiro. Isso também explica a numeração inglesa ter tradicionalmente zagueiros com a camisa 5, volantes vestindo a 6 e laterais com a 3.
Ao longo dos anos, o perfil desse jogador mudou. O jornalista austríaco Willy Meisl, irmão do revolucionário treinador Hugo Meisl, que fez história na Áustria nos anos 30 e até hoje é estudado pelos teóricos do esporte, descreveu a posição que se tornaria a de zagueiro central como a mais importante do jogo.
Curiosamente, apesar da evidente importância do zagueiro, essa se tornou uma posição de cada vez menos obrigações, principalmente com a bola. Passadas as décadas, virou regra fazer com que zagueiros tivessem cada vez menos tempo com a bola nos pés, tamanha sua falta de qualidade para tomar decisões.
Os jogadores brutamontes viraram regra nessa posição e, salvo alguns exemplos de defensores técnicos, era a posição “de quem não inventava moda”, no jargão popular. Isso mudou completamente nas últimas décadas.
Alguns brasileiros são exemplos dos novos modelos de zagueiros. Lúcio, por exemplo, era um defensor que ficou conhecido pela grande capacidade de condução: carregava a bola, às vezes, até a área adversária. David Luiz, anos mais tarde, somou a condução à qualidade no passe e na interpretação do jogo, e era um ótimo exemplo de zagueiro construtor completo.
Com o crescente interesse no Jogo de Posição, popularizado por Pep Guardiola, as especificidades começaram a cair sobre os zagueiros. Agora, os times precisam ter algum que seja canhoto, ou que consiga atrair a marcação e ter boa interpretação do momento de tocar a bola e até mesmo jogar em outra posição, como, por exemplo, lateral.
Os ‘laterais invertidos’ e como redefiniram a função dos zagueiros
Os laterais invertidos, uma tradução livre do termo inverted full-back, etimologicamente vêm de uma herança dos pontas invertidos (inverted wingers) — aqueles que jogam de pé trocado e cortam para o meio em vez de atacarem em profundidade.
A diferença é que os pontas fazem isso com a bola, conduzindo, enquanto os laterais com essa denominação fazem esse movimento de se posicionar em regiões centrais sem a bola. Essa tendência se popularizou mundo afora com Pep Guardiola, no Bayern de Munique.
Na Alemanha, preocupado com os contra-ataques e com o padrão frenético do futebol local, Guardiola preferiu fazer com que os laterais estivessem no meio, para proteger o corredor central e auxiliar na pressão. Com a bola, seriam organizadores e teriam mais responsabilidade.
Lahm e Alaba atingiram seus auges nessa função. Depois, repleto de lesões no Bayern, o treinador foi ainda além: levou seus laterais para serem zagueiros, e até o volante Xabi Alonso foi defensor em algumas partidas. Na prática, isso mostrou um padrão: a ideia era ter jogadores cada vez mais qualificados na primeira linha de jogo.
Isso reverberou em outra tendência que o próprio Guardiola assumiria a responsabilidade alguns anos depois: buscar zagueiros tão qualificados que eles mesmos poderiam ocupar outras posições.
Os zagueiros invertidos
Falando sobre terminologia, na prática, “inverter” ganhou significado de “sair da sua posição de origem em direção a regiões centrais”. Os zagueiros invertidos fazem o mesmo: desestruturam a linha de defesa e se posicionam como volantes.
Dada essa definição, o primeiro jogador que vem à cabeça é John Stones. Ele atingiu seu auge como jogador na última temporada fazendo justamente esse papel, principalmente para ocupar um espaço deixado por João Cancelo, um lateral invertido.
Stones segue todos os conceitos de Jogo de Posição: busca vantagem numérica ao se posicionar à frente da zaga, encontra o homem-livre com facilidade com passes e tem claro entendimento das distâncias principais pregadas pela filosofia de jogo. Onde está seu marcador, seu companheiro e o espaço disponível para progredir a bola.
Meses atrás, a evolução de Guardiola para um esquema de quatro zagueiros de origem já foi analisada pela PL Brasil. E o fato é que Stones não é um volante. Ele é um zagueiro que troca de posição ao longo do jogo – chegar em um lugar é diferente de estar lá.
Saindo da zaga, cria todo um efeito dominó que obriga adversários a se adaptarem a sua mudança de posicionamento e, consequentemente, abre espaços na defesa.
Antes de Stones, Guardiola já havia feito um teste com Rodri. Em uma vitória por 1 a 0 sobre o Chelsea, em janeiro de 2023, Rodri jogou como zagueiro, estruturando a linha de quatro sem a bola, e era volante quando o City tinha a posse. Alguns meses antes, ele foi zagueiro de ofício na seleção espanhola durante a Copa do Mundo do Catar.
A tendência se espalhou, mesmo que não rapidamente. Ainda assim, alguns exemplos ainda são vistos e o mais radical parece ser o de Thiago Motta, comandante do Bologna. Seu time tem uma filosofia aguerrida ao Jogo de Posição, misturada com um “toca e passa” bem sul-americano. Seus zagueiros se apresentam à frente dos marcadores como opção e percorrem qualquer região do campo necessária para abrir uma opção de passe.
Gvardiol e os zagueiros como laterais na Premier League
Ao levar Stones ao meio-campo quando o City tinha a bola, Guardiola acabou popularizando outra mudança por consequência. Assim como o volante único do 4-3-3 ficou conhecido como o jogador para fazer a “função Makélélé“, nos anos 2000, criou-se a “função Aké“.
Aké, zagueiro de origem, é basicamente um lateral atualmente. Usar um defensor central nos lados não é necessariamente novidade: Pavard foi à Copa do Mundo da França como lateral e ficou anos no Bayern com essa função, por exemplo.
Ronald Araujo ou Jules Koundé são os laterais-direitos no Barcelona, mesmo sendo zagueiros. Até Mikel Arteta, um discípulo de Guardiola, priorizou Benjamin White na lateral. Veltman, zagueiro de origem e promessa na posição, virou lateral desde os tempos de Ajax e atua assim com De Zerbi no Brighton.
No entanto, na maioria das vezes, esses jogadores ainda mantêm algumas responsabilidades tradicionais do lateral. Por exemplo, White frequentemente avança para além de Bukayo Saka pela direita, atacando a profundidade.
Guardiola, por sua vez, basicamente redefiniu o que significa ser um lateral. Antes, eram apenas os times menos qualificados e até retranqueiros que jogavam com laterais defensivos. Agora, até os melhores do mundo têm pelo menos um de seus laterais com uma postura defensiva.
Além disso, o que é realmente diferente desde a tendência de Guardiola é a extensão em que os zagueiros têm sido utilizados nessa função mais aberta. É fácil vê-los atuando como laterais sem a bola e como parte de uma linha de três defensores com a bola em quase qualquer time da Premier League.
Esse é o ciclo dos times de ponta lidando com as exigências do futebol ao longo dos anos. Eles reconhecem a importância de seus zagueiros e as vantagens que esses jogadores oferecem em comparação com outros. Então, contratam mais zagueiros, o que gera um dilema na hora de montar o time. Para encaixar mais desses jogadores talentosos na equipe e também construir o equilíbrio certo entre ataque e defesa, eles vão deslocar um desses zagueiros para a lateral.
É o padrão que ocorreu com o Aston Villa e Ezri Konsa, o uso de Dan Burn pelo Newcastle e o Chelsea com Levi Colwill. Agora, os clubes estão contratando jogadores específicos para desempenhar essa função de zagueiro lateral, como o Arsenal com Jurrien Timber ou o City com Josko Gvardiol.