Pensar em futebol de clubes no meio de um torneio internacional é um lapso que merece cartão amarelo. Pensar em futebol de clubes no meio de um torneio internacional quando o time se classifica para as quartas de final — aí não tem perdão. Vermelho direito!
Torneios são assim. Não dá para ser meia-bomba. Aí não tem graça.
Tem que abordar a coisa como se fosse o único acontecimento no mundo, com corpo e alma para curtir todas as emoções da viagem.
Isso se aplica mais ainda para o público inglês, depois da vitória no domingo contra a Eslováquia. O time estava fora. Fim da viagem melancólica em vista. Aí recebeu um transplante de coração. Tem uma segunda chance para viver, e tem que agarrá-la com unhas e dentes.
Tem, pelo menos, até sábado para curtir a viagem, para viver a combinação de emoções da antessalas da quartas de final. Nesses dias antes da partida contra a Suíça, tem que se entregar para aquela mistura de esperança e ansiedade que a ocasião tanta chama.
Talvez seja mais fácil lidar com tudo isso agora que o time não carrega tanto o fardo do favoritismo. A Inglaterra foi para a Eurocopa considerada uma das fortes candidatas ao título. Mas baseado no desempenho dos dois times até agora, neste momento seria totalmente normal pensar que a Suíça esteja com mais chances de progredir até as semifinais.
Não é nenhum problema ficar com as expectativas mais baixas. O meu exemplo sempre foi a Copa da Rússia seis anos atrás. Fiquei no Rio de Janeiro até as quartas de finais, depois fui a Londres para as semis. Estava no Brasil, então, quando a seleção de Tite foi eliminada pela Bélgica.
Senti aquele clima do dia seguinte, aquela sensação pesada no ar como se houvesse uma morte na família. Lembro que fiquei pensando no problema do torcedor da seleção brasileira — as expectativas são tão altas que fica difícil curtir a viagem, pois somente o destino final — a conquista — é valorizado.
Poucos dias depois eu estava em Londres quando a Inglaterra, de Gareth Southgate, perdeu para a Croácia. Marcou o primeiro gol — será que vamos para a final? — mas acabou, merecidamente, perdendo da virada. Apesar da derrota, o clima depois nas ruas e no metrô foi ainda de festa.
As pessoas curtiram muito a experiência, as emoções da viagem — em grande parte porque antes da Copa as expectativas tinham sido tão baixas. Os torneios anteriores da Inglaterra tinham sido muito ruins, até com elencos bastante badalados. Ninguém imaginava que o time jovem de Southgate ia lutar pelo título. A falta de expectativas baixou a pressão e, assim, ficou mais fácil e gostoso curtir a viagem.
Mas aí Southgate se torna vítima do próprio (quase) sucesso, e também do oba-oba midiático que, com frequência, acompanha a seleção inglesa. O seu time se apresentou bem nos dois torneios depois — a Eurocopa de 2021 e a Copa do Mundo no Catar.
E reforçado por uma nova geração de talentos ofensivos, agora o título virou quase uma obrigação.
Então, além dos problemas estruturais do time, abordado aqui e por outros colunistas da PL Brasil, a Inglaterra vem jogando com aquele fardo de favoritismo, que traz um medo de errar, um futebol estéril de passes seguros, sempre para o pé do colega, nunca para o espaço em frente, permitindo fluxo e dinamismo no jogo.
Pode ser que, depois de se salvar no último suspiro contra a Eslováquia, a seleção possa relaxar um pouco e curtir a viagem em vez de sofrer com as críticas. Vai ter que melhorar muito para fazer frente à Suíça. Mas isso é um torneio. Tiro curto. Southgate e companhia conquistaram o direito de sonhar, e de impedir o torcedor a pensar em futebol de clubes por mais alguns dias.