Tem uma musiquinha que a torcida do Tottenham canta (ou cantava? O tempo logo dirá…) para Harry Kane:
“He’s one of our own”, ou “ele é um de nós”.
A explicação é fácil. O maior artilheiro da seleção inglesa nasceu e foi criado no nordeste de Londres. É o terreno natural do Tottenham, de onde historicamente vêm muitos torcedores e jogadores.
O grande artilheiro da década de 1960, Jimmy Greaves, era de um bairro ao lado. Mas ninguém cantava “ele é um de nós” para Greaves — e não somente porque ele começou a carreira do outro lado da cidade com o Chelsea e foi comprado pelo Milan. Não.
Na época, não fazia sentido cantar “ele é um dos nossos” porque quase todos eram. É verdade, há uma grande tradição de jogadores escoceses no Tottenham, além de atletas do País de Gales e Irlanda do Norte. Todos britânicos, da mesma cultura esportiva, e muitos de Londres e seus arredores. Não faz sentido cantar “ele é um dos nós” quando todos são. A força da música vem da raridade.
Vale a pena exaltar as raízes locais do Harry Kane justamente porque ele se destaca não somente pelo desempenho, mas principalmente porque ele se torna uma extensão, um representante da torcida no campo.
Ele é um de nós precisamente porque a maioria não é — vem dos quatro cantos do mundo atraídos pela glória e altíssimos salários da Premier League.
O cenário começou a mudar precisamente 45 anos atrás, em julho de 1978, quando foi definitivamente levantada pela Football Association a proibição da contratação de jogadores estrangeiros pelos clubes ingleses. E no mesmo lugar onde joga (jogava?) Harry Kane. Logo depois da Copa do Mundo daquele ano, o Tottenham contratou dois argentinos do elenco campeão, Osvaldo Ardiles e Ricardo Villa.
Hoje em dia parece um evento comum. Mas naquela época foi uma bomba atômica. Coisas assim simplesmente não aconteciam. Havia o futebol inglês — aquela coisa enlameada que a gente assistia de agosto até maio. E havia, a cada quatro anos, a Copa do Mundo que a gente parava para acompanhar, banhados pelo sol de junho. Não se cruzavam.
Existiam em universos separados — especialmente porque a seleção inglesa nem conseguiu se classificar para as Copas de 1974 e 1978. Mas agora os dois mundos estavam se encontrando, a ficção científica se tornando realidade.
Nos seus primeiros jogos, o estádio White Hart Lane virou Buenos Aires, com a torcida jogando papel picado quando o time entrava em campo. O processo de adaptação não foi fácil, até porque o Tottenham tinha acabado de ser promovido da segunda divisão e todo o time, e não somente os argentinos, precisava se adaptar.
Mas logo foi uma beleza, com os dois trazendo aspectos de seu jogo para o novo cenário. Os dois sempre queriam receber a bola, mesmo quando estavam sendo marcados, e sempre em busca do próximo passe, em vez de colocar a bola para a beirada do campo para facilitar um cruzamento. Ardiles dava aulas semanais e, em 1981, Villa fez um dos gols mais bonitos na história da final da FA Cup.
Mas um ano depois, o tempo dele no Tottenham acabou, e o de Ardiles foi interrompido. O motivo? A guerra das Malvinas entre Inglaterra e Argentina — ou, nas palavras do grande escritor argentino Borges, dois carecas brigando por um pente.
Na época, os jornais sensacionalistas ingleses estavam cheios de contos negativos sobre os argentinos, aqueles animais mal civilizados do outro lado do Atlântico. Mas o torcedor do futebol, e especialmente do Tottenham, sabia que não passava de fake news do pior tipo. Nós conhecemos Ardiles (ou “Ossie”, como todo mundo o chamava). Um cavalheiro completo.
Quando ele chegou, os brutamontes ingleses prometeram chutá-lo com tanta força que ele voaria de volta para a Argentina. Ossie escondia a bola deles com uma classe que lembrava um professor corrigindo um aluno lento. E ainda jogava xadrez por correspondência com meio mundo. Ele era uma desmentida ambulante, uma vacina contra o ódio e a ignorância direcionados ao seu povo.
Um ano depois da guerra, ele voltou para o Tottenham para jogar mais cinco anos. Depois virou técnico. Ainda mora perto. Até hoje é o seu clube e o seu lugar no mundo. O caso de amor entre Ardiles e o Tottenham também serve como uma carta de amor ao futebol.
Porque foi através do esporte que essa ligação nasceu e cresceu, fornecendo um exemplo de colaboração internacional. Porque hoje em dia, a musiquinha “he’s one of our own” não serve apenas para Harry Kane, mas também para Osvaldo Ardiles.