Vichai, o dono do Leicester que tornou realidade um sonho impossível

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Há um ano, em 27 de outubro de de 2018, o Leicester empatava em 1 a 1 com o West Ham, pela Premier League. Após a partida, um helicóptero que decolara do gramado caiu logo ao lado, no estacionamento do King Power Stadium. O acidente trágico culminou na morte de todos a bordo: os pilotos Eric Swaffer e Izabela Lechowicz, Nursara Suknamai e Kaveporn Punpare, além do dono do Leicester, Vichai Srivaddhanaprabha. 

Vichai Srivaddhanaprabha: Um conto de fadas

Em 4 de abril de 1958, na Tailândia, nasceu Vichai Raksriaksorn, de ascendência chinesa. Em 2012, foi agraciado pela monarquia tailandesa com o honroso sobrenome Srivaddhanaprabha, que, em tradução literal, significa “luz brilhante de prosperidade”. Mas, em Leicester, viria a ser conhecido carinhosamente como “Khun Vichai”.

Praticante assíduo de polo, adquiriu os Foxes em 2010, por 39 milhões de libras, tornando-se dono e presidente do clube, em sua primeira verdadeira experiência com o futebol. À época, chegou a dizer que escolhera a equipe por ter uniforme com as mesmas cores de sua empresa, a King Power. E expôs a meta de levar o Leicester a Champions League, ao que foi obviamente ridicularizado.

Mas Vichai transformou o clube recém-promovido da League One. Gastou do próprio dinheiro, quitou débitos, acertou as contas, recuperou a administração do estádio e investiu no futebol. Quatro anos depois, conquistou o acesso a Premier League. 

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CHRISTOPHE ARCHAMBAULT/AFP via Getty Images

E logo na segunda temporada na elite, veio o título histórico, com 23 vitórias, 12 empates e três derrotas, totalizando 81 pontos, dez a mais que o Arsenal, segundo colocado. O Leicester foi campeão inglês de forma inédita, contrariando as previsões e deixando a todos atônitos. Assim, conquistada aquela prometida vaga na Champions League.

Kasper Schmeichel, Danny Simpson, Wes Morgan, Robert Huth e Christian Fuchs; N’Golo Kanté, Danny Drinkwater e Marc Albrighton; Riyad Mahrez, Shinji Okazaki e Jamie Vardy; Claudio Ranieri. São imortais na história do futebol.

Mas jamais nos esqueçamos de Khun Vichai, o dono do Leicester que simplesmente lhes mostrou que o impossível era sim possível.

Vichai, um cidadão de Leicester

O futebol inglês está acostumado a conviver com donos problemáticos, distantes, arrogantes, em resumo, que não demonstram respeito pelos próprios clubes. Esse não era o caso de Vichai. Muito pelo contrário.

Sempre muito presente na realidade dos Foxes, ficou marcado por seus esforços não só pelo clube, mas também pela cidade e tornou a instituição Leicester de fato uma família.

Raras as vezes em que falava em público, logo após o título em 2016, declarou: “Entrei na indústria do futebol através do Leicester City em razão de meu amor pelo esporte. E o clube e seus fãs retribuíram o que investi inúmeras vezes com sua paixão e lealdade”.

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DANIEL LEAL-OLIVAS Collection AFP
Daniel Leal-Olivas Collection AFP

Budista fervoroso, Vichai constantemente levava monges para abençoar o clube, o estádio e os jogadores, e tinham até uma sala própria no King Power Stadium. À época, Andy King disse, a respeito da prática: “Leva alguns poucos minutos e se significa que acham que fizeram o que estava a seu alcance para a ajudar o time a vencer, que assim seja”.

Ainda segundo o meio-campista: “o clube ganhou força desde que Vichai assumiu e nós sempre confiamos em seu julgamento”. E o pensamento era consenso entre os jogadores, algo também evidente nas falas dos zagueiros Wes Morgan – “os donos cuidam de nós” – e Robert Huth – “eu nunca tive tanta ajuda de um clube”.

Era comum que Vichai promovesse a distribuição de brindes e bebidas antes das partidas, à porta do estádio. Em seu aniversário de 60 anos, partiu dele o presente – a 60 torcedores, escolhidos aleatoriamente, que ganharam o passe anual para todos os jogos da equipe.

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Mas as atitudes do lendário dono do Leicester foram muito além de ações para a torcida. E histórias muitas vezes por trás dos bastidores, sem repercussão na mídia, desprovidas de segundas intenções, como o acolhimento de desabrigados nas instalações do estádio e doações às universidades locais.

Em 2016, uma doação de dois milhões de libras foi direcionada ao Hospital de Caridade de Leicester, como forma de retribuir todo o apoio do público. Nas palavras de Susan Whelan, diretora executiva do clube, “Vocês (moradores de Leicester) abriram o coração a nós. Somos muito privilegiados e agradecidos por fazer parte disso”.

Vichai também fez doação pessoal para custear o tratamento do garoto Ellis Page, vítima de rara doença genética, cujo pai percorria o país de bicicleta rumo a partidas de futebol para arrecadar fundos.

Com disposição, humildade, preocupação e caridade, Khun Vichai conquistou de todos respeito e admiração. Criou e fortaleceu laços, aproximou-se da comunidade e a levou a sonhar. Mas não apenas sonhar, e sim acreditar, lutar por seus sonhos. E para isso, cultivava as esperanças.

Certa vez em um restaurante em Nice, conheceu o italiano Davide Lorenzo, que, dispensado das categorias de base da Juventus, trabalhava como garçom enquanto rodava a Europa tentando se firmar como jogador profissional. Vichai não titubeou e o concedeu contrato com o Leicester, uma chance para atuar na equipe sub-23 do clube.

Saudade e muitas memórias

IAN KINGTON Collection AFP
IAN KINGTON Collection AFP

O falecimento de Vichai Srivaddhanaprabha, em outubro do ano passado, gerou, além de muita comoção e solidariedade, um sentimento de gratidão, pelo orgulho que inimaginável que proporcionou à cidade, e por tudo que fez e tentou fazer, não só pelo Leicester, mas por Leicester.

Mesmo em sua morte, Vichai trouxe união ao clube e à cidade. Flores lotaram o estacionamento do estádio, local do fatídico acidente. Jogadores e funcionários do clube foram à Tailândia para o funeral. E vinte meses após ser demitido, Claudio Ranieri retornou pela primeira vez ao King Power Stadium.

Na primeira partida do clube como mandante após a tragédia, contra o Burnley, um grupo inicialmente formado por cinco mil torcedores – em alusão à cotação de 5000/1 para um eventual título do Leicester ao início da temporada 15/16 – planejou marchar do centro da cidade até o estádio. Resultado: no que ficou conhecido como Walk for Vichai, 50 mil pessoas tomaram as ruas na mesma direção.

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O goleiro Kasper Schmeichel escreveu carta emocionante, cujos alguns trechos agora destacamos, que revela bastante da dimensão que assumiu Vichai: Eu não acredito que isso possa estar acontecendo. Estou devastado e de coração partido. Não posso acreditar no que vi na noite passada, não pode ser real!”

“Nunca conheci um homem igual você. Tão dedicado, trabalhador, apaixonado pelo que faz, cheio de ternura e generosidade. Você tinha tempo pra tudo e todos. Não importava quem fosse, você sempre recebia e tratava muito bem. Sempre te admirei como líder, como pai, como homem”.

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“O senhor mudou o futebol. Para sempre! Provou para todo o mundo que o impossível é sim, possível. Poucas pessoas no planeta conseguiram isso. Quando me contratou de volta em 2011, me prometeu que estaríamos na Liga dos Campeões em seis anos. Que iriamos fazer grandes coisas. Você me fez acreditar que nada é impossível“.

Já o hospital infantil municipal, que recebera doações do Leicester promovidas por Vichai, anunciou este mês a escolha do nome do dirigente para a inauguração de suas futuras unidades.

Para Aiyawatt “Top” Srivaddhanaprabha, filho e herdeiro de Vichai, uma mensagem clara: “Nunca conseguiremos retribuir tudo o que ele fez por nós – para mim enquanto filho, para nós enquanto família, todos estão ligados ao Leicester -, mas estamos comprometidos em honrar o seu legado. Ele irá estar sempre nos nossos corações, nunca será esquecido”.

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E por tudo que representou e ainda representa, as homenagens promovidas pelo Leicester a seu antigo dono foram e ainda são inúmeras. Uma estátua em sua memória faz parte dos projetos dos Foxes e um jardim memorial, no local do acidente, como tributo àqueles cinco que se foram, já foi construído.

Nesta temporada, na última partida no King Power antes da data simbólica, novamente contra o Burnely, cachecóis distribuídos pelo clube em homenagem a Vichai, com a frase “torne possível o impossível”, tomaram conta das arquibancadas.

E ao fim do jogo, com uma vitória sofrida por 2 a 1, a torcida ainda comemorava, enquanto Top Srivaddhanaprabha rezou sozinho, apontando para o céu. Para o inalcançável. Para Vichai – cujo legado em Leicester não é apenas imensurável, mas também eterno.

Rafael Moro Brandão
Rafael Moro Brandão

Estudante de Direito na Universidade de São Paulo. Fanático por futebol e apaixonado pelas histórias que o esporte proporciona.