A cocaína e o futebol inglês: Relatos chocantes e o que explica o abuso da droga por torcedores

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— Você ainda tem coca? Dá uma linha aí pra mim!

— Sim, toma aí.

— Vamos ao banheiro?

— Ah, f***, vai aqui mesmo.

Este diálogo é um trecho da reportagem publicada em janeiro pelo repórter João Castelo-Branco, correspondente da “ESPN Brasil” na Inglaterra. Na ocasião relatada pelo jornalista, torcedores do Tottenham usavam cocaína no vagão de um trem, em frente aos outros passageiros, enquanto voltavam de Manchester para Londres após um jogo dos Spurs contra o United, no Old Trafford.

A cena assusta do ponto de vista do futebol brasileiro. Por aqui, é difícil imaginar torcedores que acabaram de sair de um estádio cheirando às claras em meios de transporte coletivos que mesclam outros torcedores e pessoas imersas no próprio cotidiano, indo e voltando de casa, da escola ou do trabalho.

Mas a verdade é que pesquisas mostram que esse é um hábito muito comum não apenas no meio futebolístico da Inglaterra, mas no país como um todo.

O jornalista Renato Senise, colunista da PL Brasil que trabalha como correspondente internacional na Inglaterra desde 2016, compartilhou como foram as primeiras vezes em que ele percebeu este comportamento e conta que ficou “espantado com a naturalidade”.

— Uma vez, eu estava fazendo um jogo em Cardiff*, no País de Gales, contra o Brighton. E aí, como eu tinha que fazer entrada ao vivo antes do jogo, fui no banheiro dos torcedores mesmo, já que o acesso ao estádio era meio difícil. E lá dentro, de frente para a pia, tinha quatro caras passando de um para o outro a carreira de cocaína.

Na visão de Senise, o que diferencia o uso da droga no ambiente futebolístico — ou seja, no caminho para os jogos e estádios e arredores — é que as pessoas não disfarçam o uso.

— A cocaína é muito forte no país inteiro, à noite e tudo mais, então geralmente você vai nos bares e pubs e vê o pessoal meio que disfarçando, assim, entrando no banheiro para usar no privativo. Mas nos estádios parece tão normal… Esses caras estavam dentro do banheiro, sem disfarçar, de frente para a pia com todo mundo passando atrás. Foi muito marcante para mim.

Torcedores em jogo da Premier League – Foto: Icon Sport

Uso de cocaína na Inglaterra

O Reino Unido é o campeão europeu no uso da cocaína em comparação aos integrantes da União Europeia, seguido pela Espanha, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Além disso, entorpecente em pó branco é a segunda droga mais usada no Reino Unido entre pessoas de 16 a 59 anos, de acordo com o relatório de 2023 do Escritório Nacional de Estatísticas do país (ONS), ficando atrás apenas da maconha.

Estimativa do número de usuários* de drogas ilícitas (em milhares) no Reino Unido:

A cocaína também se tornou mais barata com o passar do tempo. Dados das Nações Unidas apontam que o preço médio desta droga no Reino Unido caiu dois terços da década de 1990 até o início dos anos 2020.

A outra situação que marcou o colunista foi quando um grupo de torcedores usou cocaína no vagão de um overground, que é como são chamados os trens em Londres, a caminho do estádio do Tottenham para uma transmissão.

— Todos os bancos ficam um de frente para o outro em duas fileiras. E aí, tinham dois caras que estavam tentando disfarçar um pouquinho, colocando agasalho em cima, enquanto eles se preparavam [para cheirar], mas fazendo ali mesmo, entre uma estação e outra. Eles fizeram ali e meio que todo mudo vendo e é isso. De novo, as pessoas não fazem nem muita questão de esconder, isso que é meio impressionante, além da quantidade usada.

Por que a cocaína é tão comum no futebol inglês?

Ainda há poucas pesquisas que quantificam o uso de cocaína entre torcedores ingleses. Uma delas foi publicada em 2021, pela Universidade de Oxford, contando com a participação de 1.486 torcedores. 6,19% deles relataram consumir a droga, um número acima da média nacional (2,4%, segundo a ONS). Dos torcedores que costumam ir aos estádios, apenas 1,08% disseram usar cocaína nesse ambiente, mas 30,05% testemunharam outros fãs consumindo cocaína nos jogos.

Em uma matéria publicada no site “The Athletic” no fim de 2021, o chefe do Departamento de Policiamento do Futebol do Reino Unido, Mark Roberts, revelou que em um teste realizado naquela temporada, pesquisadores detectaram cocaína ao analisar amostras de todos os boxes sanitários em um estádio da Premier League.

O pesquisador Geoff Pearson, professor da faculdade de Direito da Universidade de Manchester, explicou à PL Brasil que o uso tão intenso da cocaína por parte dos torcedores de futebol ingleses é o fato de que grande parte da sua utilização gira em torno de eventos culturais e de lazer, “o que se reflete na utilização dos fãs”.

— Assistir a jogos de futebol é para muitos — mas não todos — torcedores britânicos, uma experiência transgressora que muitos procuram para atingir estados de embriaguez em um dia de jogo. Tradicionalmente, isso tem sido feito através do consumo de álcool, mas também são utilizadas drogas controladas – provavelmente assistimos a um aumento no uso de cetamina e MDMA [também chamada de ecstasy].

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Geoff Pearson, professor da faculdade de Direito da Universidade de Manchester (Foto: Divulgação)

Dentro do Direito, Pearson pesquisa há mais de 20 anos sobre policiamento, comportamento de multidões, direitos humanos e esporte, tendo já contribuído com ações de várias entidades esportivas na Europa, incluindo a English Football League (EFL) e a FIFPro. Ele conta que não dá para dizer ao certo se o consumo de cocaína aumentou nos últimos anos entre os torcedores, mas que há um registro de crescimento de forma geral no Reino Unido.

— Os estudos sobre o consumo de drogas no Reino Unido sugerem geralmente um aumento de quatro vezes no consumo de cocaína desde meados da década de 1990. A minha experiência pessoal sugere que o consumo de cocaína entre os fãs aumentou nos últimos dez anos. No entanto, não há evidências de que tenha havido um aumento pós-pandemia em relação ao período pré-pandêmico.

Pela experiência de Senise cobrindo futebol inglês e vivendo na Inglaterra, o fator social é um dos mais importantes para explicar o uso de cocaína, não apenas nos estádios, mas nos ambientes noturnos, como baladas, bares e pubs. O repórter e colunista da PL Brasil chegou à Inglaterra para estudar música e, ao entrar em uma banda, fez shows por todo o país.

— Tocava muito em bares, pubs no país inteiro e era impressionante. Os músicos, todos praticamente, minha banda acho que era a única que ninguém cheirava. O resto nos camarins da vida, antes, depois, durante, todo mundo cheirando.

Acho que é mais ou menos o mesmo perfil [dos torcedores]. A maioria, homem entre 20 e 40 anos, vai se divertir. Para esse perfil de idade e sexo, na Inglaterra o “se divertir” é ou beber, ou se drogar, ou fazer os dois juntos. E o futebol acaba sendo o cenário perfeito para isso. Sei lá, 100, 200 homens vão viajar para assistir um jogo, já começam a beber às 9h da manhã e aí já está todo mundo muito louco, bebendo e cheirando.

Torcedores ingleses nas águas de uma fonte em frente a uma estação de trem de Lille, cidade da França, durante a Eurocopa de 2016 (Foto: IconSports)

“Chem sex”: o prazer de torcer associado à droga

A grande preocupação em torno da droga é a dependência química, um grave problema de saúde mental que exige “tratamento demorado a depender do nível da dependência”. Segundo Cláudio Jerônimo da Silva, professor colaborador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) da Unifesp, é justamente aí que mora a explicação do consumo nos estádios de futebol.

Segundo a ONS, a cocaína foi a segunda droga com mais mortes associadas no Reino Unido em 2022 (857 óbitos), ficando atrás apenas dos opioides (2.261).

— Ela causa dependência facilmente e o nosso cérebro faz uma associação. Ele associa o prazer da cocaína com o ambiente que você usa — relata Cláudio.

O professor compara o que acontece nos estádios com o fenômeno “chem sex”, como é chamada a associação do sexo com o uso da droga.

— Algumas pessoas, sempre que vão ter uma relação sexual, estão sob efeito da droga e aí uma coisa se associa a outra. Se você usar a droga, você tem a libido aumentada. Ou se você vai ter uma relação sexual, automaticamente, isso leva ao uso da droga, quase que como um comportamento cruzado.

— Acho que esse mesmo fenômeno acontece com a torcida. Você tem uma associação do prazer de uso da cocaína, de estar com as pessoas juntas, esse clima festivo, com a ansiedade do jogo e a cocaína. De modo que futebol vira sinônimo de cocaína e vice versa. As coisas passam a caminhar juntas no cérebro — conclui o psiquiatra.

O psiquiatra também faz um alerta a uma prática comum que é o uso associado com a bebida alcoólica. Mesmo sendo uma droga legalizada, pode ter efeitos devastadores na vida de quem consome e seus familiares.

— A gente sabe que na Inglaterra, a cultura do consumo de álcool e dos pubs é muito forte. Quando você bebe, diminui seu senso crítico. Com o fácil acesso à cocaína, você se dá o direito de usá-la. Uma vez que você usa, associa a aquele contexto e continua usando. Inicialmente, você começa naquela situação, mas pode sair daí uma porcentagem perigosa de pessoas que vão se tornar dependentes. Isso é um fenômeno que a gente chama de ‘estreitamento do repertório’.

“Vamos fingir que não vimos”: como a polícia se posiciona

A posse de cocaína é considerada crime na Inglaterra e, teoricamente, os torcedores devem ser revistados pelos policiais para evitar que a levem para dentro dos estádios. Mas, na prática, não é assim que funciona.

Na matéria já citada do “The Athletic”, um policial contou em anonimato que a prioridade nos dias de jogos não é revistar a torcida a fim de evitar a entrada de substâncias ilegais nas arquibancadas, mas “reduzir os problemas”.

— Pense nisso. Se você está trabalhando com indivíduos, você perde policiais para o processo de revistar, prender, processar, levá-los de volta para a delegacia e tudo mais. Você está perdendo oficiais de que precisa para toda a operação do dia do jogo no campo. Não parece ideal porque, para ser honesto, não é. Mas quando você faz o planejamento antes de uma partida, não pode priorizar revistas individuais de pessoas. Eu sei que você pode dizer que um (uso de cocaína) talvez leve a outro (problema), mas simplesmente não é prático tentar intervir dessa forma.

Para Senise, mesmo o policiamento na Inglaterra sendo bastante rigoroso, “parece que nos dias de jogo os torcedores têm vista grossa”. Ele diz que nunca presenciou um fã sendo levado à delegacia por porte de droga nos arredores dos estádios, por exemplo.

— Eles se sentem protegidos. Parece que, em dia de jogo, os torcedores têm vista grossa, de falar ‘é muita gente, vamos deixar por isso mesmo, contanto que não tenha conflito, briga, não atrapalhe as outras pessoas, vamos fingir que não estamos vendo’.

Como os clubes e a Premier League se posicionam

Diante de um problema de saúde pública no qual o futebol também é um personagem importante, é de se esperar que haja uma mobilização da Premier League e seus clubes para demonstrar apoio à conscientização sobre a dependência química. Mas, se o problema nem é reconhecido, como pode ser enfrentado?

Polícia cerca torcedores do Crystal Palace nas imediações de estação de trem próximo ao Amex Stadium antes de clássico contra o Brighton (Foto: IconSports)

O “The Athletic” procurou os 20 clubes que estavam na primeira divisão na temporada 2021/22 para questioná-los sobre medidas preventivas para conter o uso de drogas em seus estádios. Apenas oito responderam, contando que suas estratégias envolviam cães farejadores , catracas e verificação dos banheiros. O Brighton foi o único a falar em um “problema a ser resolvido pelo futebol”.

— Estamos cada vez mais preocupados. Continuaremos a tomar todas as medidas necessárias e possíveis para evitar que qualquer substância ilegal entre em nosso estádio e continuaremos a impor sanções muito severas a qualquer pessoa que carregue ou use qualquer substância ilegal dentro ou ao redor de nosso estádio — informou um porta-voz do clube ao site.

Policiais do lado de fora do Emirates Stadium antes de um jogo
Policiais do lado de fora do Emirates Stadium antes de um jogo. Foto – Icon Sport

Geoff entende que é necessário ter mais dados sobre quais drogas estão sendo consumidas no espaço futebolístico, quando e onde, e entender como isso afeta as rotinas e comportamentos dos jogos antes de criar um planejamento de combate ao problema.

— Pode ser que existam preocupações de ordem pública ou de segurança decorrentes do uso de determinadas drogas que precisem ser abordadas, mas neste momento estamos no escuro. Quando identificarmos potenciais danos causados pelo consumo de drogas no futebol, precisaremos então de uma resposta conjunta para enfrentá-los, envolvendo o governo, a polícia, a Autoridade de Segurança dos Recintos Esportivos e os próprios clubes — opina o professor inglês.

Enquanto isso, tanto Senise como Cláudio entendem que a Premier League poderia contribuir com ações de conscientização sobre os perigos da dependência química.

Você não vê campanhas realmente fortes da Premier League e dos clubes alertando sobre os perigos da droga.

Parece que eles não querem entrar nesse assunto, sabe? Eles sabem que boa parte dos torcedores consome. Talvez achem que é uma briga que não vale comprar porque não vai resolver, mas estamos falando da Premier League! Eles têm tantas campanhas para outras causas, como o Rainbow Laces. Então, acho que teria, sim, espaço para a liga fazer muito mais — conclui Senise.

Os problemas do uso da cocaína

Segundo o psiquiatra Cláudio Jerônimo da Silva, no momento do consumo, a cocaína provoca alteração da pressão arterial e de batimentos cardíacos, sudorese e inquietação.

Entre as consequências do uso crônico, estão quadros psicóticos, depressão, ansiedade, infarto, desenvolvimento de esquizofrenia e, mais raramente, alterações hepáticas e renais.


*Comentário da edição: os casos, relatos e instituições que fazem parte da apuração desta reportagem envolvem o Reino Unido, que além da Inglaterra, inclui os territórios de Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Para o título da reportagem, a edição escolhe, porém, a expressão “futebol inglês” por um critério de reconhecimento do público brasileiro. Não fazem parte do cotidiano de nossa audiência expressões como “futebol do Reino Unido” ou “futebol britânico” (esta, por sua vez, relacionada à Grã-Bretanha, que não inclui Irlanda do Norte).

Há de se ressaltar também que o ocorrido em Cardiff, no País de Gales, relatado por Renato Senise, foi em uma partida da Premier League, a primeira divisão do Campeonato Inglês, entre Swansea (do País de Gales) e Brighton (da Inglaterra). Por razões culturais e logísticas explicadas aqui, algumas equipes galesas como Wrexham e Cardiff, além do próprio Swansea, disputam as competições inglesas.

Maria Tereza Santos
Maria Tereza Santos

Jornalista pela PUC-SP. Na PL Brasil, escrevo sobre futebol inglês masculino E feminino, filmes, saúde e outras aleatoriedades. Também gravo vídeos pras redes e escolhi o lado azul de Merseyside. Antes, fui editora na ESPN e repórter na Veja Saúde, Folha de S.Paulo e Superesportes.