‘E se’… Como o Tottenham estaria caso Harry Kane tivesse ficado?

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Harry Kane é um dos maiores ídolos da história do Tottenham, mas passou toda a carreira no clube sem conquistar um único título. Deixou Londres como o maior artilheiro de todos os tempos dos Spurs para o Bayern na última janela de transferências e as coisas foram muito bem… para o Tottenham.

Kane tem ótimos números na Alemanha: por Bundesliga e Champions League, são 16 participações em gols em 15 jogos na temporada.

CampeonatoJogosGolsAssistências
Bundesliga1293
Champions League322

Por outro lado, logo na estreia do centroavante inglês pelo Bayern de Munique, os Bávaros levaram 3 a 0 do RB Leipzig e perderam o título da Supercopa da Alemanha. Além disso, logo na segunda fase da Copa da Alemanha, o time da Bavaria amargou uma eliminação vexaminosa do Saarbrücken, da terceira divisão.

Os Spurs, por sua vez, lideram a Premier League e ainda não perderam na temporada.

O que isso significa? Quer dizer que Kane atrapalhava o progresso da equipe como um todo? Ou se o artilheiro estivesse sendo comandado por Ange Postecoglou, os Spurs estariam em um patamar ainda maior?

Hierarquia e Tottenham mais coeso

Se o termo científico de “macho alfa” em um grupo na esfera animal faz alusão às batalhas entre os mais fortes, com um se sobressaindo e liderando o bando, no futebol, a ideia pode ser entendida de maneira bem clara: Kane passou a liderar porque era o melhor.

O então jovem atacante começou a fazer gols em abundância, passou a ser o responsável — primeiro por fatores externos, depois internos — dos bons resultados do time até que, mais velho, tornou-se capitão e um líder vocal dentro do vestiário, já como jogador experiente.

kane tottenham
Foto: Icon Sport

Estar no convívio de um jogador muito diferente dos demais nesse sentido pode intimidar. Atletas têm mais momentos em que tendem a tocar para esse jogador do que fazer uma jogada individual, ou tentar algo diferente, que provavelmente fariam se estivessem em um ambiente mais confortável e nivelado.

Novos líderes

Sem Kane, Son se tornou o capitão — é o jogador mais antigo no elenco entre os titulares e desempenha em alto nível há anos. No entanto, rostos recentes, como o de Romero e até mesmo Maddison, recém-chegado, se tornaram os vice-capitães.

Sem o “macho alfa”, a liderança se tornou mais comunitária — antes, mais centralizada em uma figura “superior”, mesmo que involuntariamente — com novos nomes podendo agregar, além de um treinador “paizão”, como definido por Maddison, em comparação com nomes de mais “pulso firme” como Antonio Conte e José Mourinho.

O encaixe de Kane no Tottenham atual

Na última temporada, segundo dados da plataforma “Wyscout”, os Spurs se postaram em 95% dos jogos com uma formação de três zagueiros — Postecoglou escalou seu time em um 4-2-3-1 em todos os jogos da temporada até o momento. E as mudanças começam em efeito dominó a partir daí.

As formações do Tottenham na temporada passada (Reprodução/Wyscout)

Tudo começa na primeira fase de construção, muito mais voltada a passes curtos desde o goleiro. Bissouma é o responsável por receber o primeiro passe do goleiro e, se pressionado, é ajudado por um dos laterais, que entram como “volantes”. Mas, uma vez que não é a função mais confortável de Pedro Porro e Udogie, Maddison ajuda.

Com Maddison, um camisa 10 clássico, cria-se vantagem numérica para sair jogando desde trás, o que não ocorria antes. Era Kane o responsável por percorrer grandes distâncias e ajudar na criação — algo que ele desenvolveu e, por consequência, o tornou um jogador muito mais completo. Mas era mais uma responsabilidade para o “macho alfa” resolver.

Maddison deixou o campo preocupando o Tottenham (Foto: Icon Sport)
Foto: Icon Sport)

Maddison tem grande liberdade no campo de ataque e isso é benéfico porque o centroavante não deixa mais sua região no campo com tanta frequência e o sistema de Jogo de Posição de Ange flui beirando a perfeição.

E o camisa 10 só tem esse espaço por conta dos laterais, que atuam como meias entrelinhas atrás dos atacantes e, por consequência, exigem atenção dos volantes — que antes estariam observando Maddison.

Richarlison, Son e o substituto de Kane

O Tottenham não contratou um substituto imediato para o seu maior artilheiro, mas decidiu dar chances a Richarlison — que não tem correspondido em um primeiro momento. Isso fez com que Postecoglou testasse Son como centroavante.

Richarlison também não é um ponta “desequilibrante” atuando na esquerda, apesar de ter boa capacidade de atacar as costas da última linha e mostrar lampejos de habilidade em um contra um — o que transformou Kulusevski, na direita, em um dos pontas mais perigosos da Premier League.

Kulusevski na Premier League 2023/24

Dados do “Wyscout”
  • 3º em dribles a partir de um contra um
  • 3º em acerto de cruzamentos
  • 3º na recepção de passes em profundidade
  • 2º em toques na área
  • 4º em toques na área por 90 minutos

Richarlison, inclusive, é “protegido” na esquerda por contar com Udogie, o lateral que lhe dá opção de progressão da bola atacando o meio-espaço ou recuando na lateral, e por ser o lado mais forte de Maddison e Son, uma vez que ambos têm a tendência de navegar por ali. Ou seja, o brasileiro não tem tanta urgência de resolver problemas.

Isso é refletido nos números: entre os atacantes do Totteham (incluindo Maddison), é o que tem menos passes, a menor porcentagem de acerto dos passes, menos passes para frente, cruzamentos e dribles certos. Por outro lado, é quem tem mais duelos ofensivos e chutes por jogo.

Son marca em vitória do Tottenham (Foto: Icon Sport)
(Foto: Icon Sport)

Com Son como centroavante, o Tottenham ganha algo que não teria com tanta frequência com Kane: um 9 veloz e que constantemente preocupa os zagueiros com corridas nas suas costas. Isso obriga os adversários a ficarem mais atrás e acaba por “empurrar” as linhas de marcação para mais perto do goleiro, criando mais espaço no meio para os criativos Maddison, Udogie, Bissouma e o próprio Son.

Kane oferece perigo, obviamente, mas não da mesma forma que Son.

O antigo camisa 10 teria a tendência de descer mais para o meio-campo, possivelmente ocuparia regiões muito próximas das de Maddison, baixando a influência do meia sobre o jogo, e atrairia a linha de defesa adversária para cima — isso dificultaria a criação de superioridade numérica para criar oportunidades, por exemplo.

Não seria justo dizer que o inglês “atrapalharia” o sistema — Ange muito provavelmente o encaixaria e criaria padrões para tirar o melhor do jogador. Ainda assim, a fluidez que existe hoje, com os perigos que os jogadores atuais, nessa disposição, levam aos adversários, não seria igual com Kane.

Quando Kane faria a diferença?

O artilheiro fez falta nas primeiras rodadas, principalmente quando analisamos os gols perdidos por Richarlison. O brasileiro acumulou 3,25 gols esperados (xG) na Premier League até o momento, mas só marcou um.

A efeito de comparação, o novo centroavante, Son, tem 4,29 de xG, mas marcou oito vezes — ou seja, tem feito praticamente o dobro do que o esperado. Kane, por exemplo, marcou 30 gols na última edição da Premier League com pouco mais de 21 de xG.

Kane evidentemente poderia marcar mais gols do que Richarlison e levar perigo de modo geral dentro da área. Na primeira rodada, o brasileiro acumulou 0,17 de xG — é um número não tão alto, mas que Kane poderia capitalizar com mais perigo do que o camisa 9. No jogo seguinte, contra o Manchester United, Richarlison sequer finalizou, algo impensável de ocorrer com o inglês.

  • *A PL Brasil decidiu exercer sua criativa imaginação — baseada em análises — para criar os cenários abaixo

Tottenham x Brentford

Sem Kane: empate e chance perdida

Com Kane*: gol marcado e vitória

Em exemplos práticos, a própria rodada de estreia, que terminou em um empate em 2 a 2, poderia ter um rumo diferente. Aos 63 minutos, Richarlison recebeu passe em profundidade de Maddison e teve tempo e espaço para finalizar ou driblar seu marcador para ter mais chance de marcar, mas acabou chutando desequelibrado. Kane poderia fazer diferente.

Lance de Richarlison durante o empate do Tottenham na primeira rodada da Premier League (Reprodução/ESPN)

Tottenham x Bournemouth

Sem Kane: vitória por 2 a 0

Com Kane*: vitória por 3 a 0

No jogo contra o Bournemouth, por exemplo, Richarlison teve outro lance ainda mais claro de gol, quando driblou um zagueiro, o goleiro e perdeu a chance de marcar. Apesar de não ter mudado o jogo, uma vez que os Spurs venceram por 2 a 0, é difícil imaginar Kane fazendo algo semelhante.

Gol perdido de Richarlison contra o Bournemouth, na terceira rodada da Premier League (Reprodução/ESPN)

Tottenham x Fulham

Sem Kane: eliminação na Copa da Liga

Com Kane: chance maior na cobrança de pênaltis

A comparação não é apenas com Richarlison, claro. Na eliminação dos Spurs para o Fulham na Copa da Liga Inglesa, o brasileiro marcou o gol de empate — e provavelmente Kane sequer seria titular nessa partida. Ainda assim, Maddison, Kulusevski e Son entraram na reta final, e o antigo camisa 10 também poderia ajudar, além de ser mais uma opção qualificada na cobrança de pênaltis.

Sem Kane: vitória por 2 a 0

Com Kane*: vitória por 3 a 0

Mas contra o mesmo adversário, na Premier League, poderia ajudar a vitória a ser maior: provavelmente converteria uma chance clara que Son perdeu no início da partida.

Son perde chance de frente com o goleiro na nona rodada da Premier League (Foto: Reprodução/ESPN)

Quando Kane não faria a diferença?

Tottenham x Sheffield

Sem Kane: vitória por 5 a 2

Com Kane*: vitória por 3 a 2

Vale ressaltar que o brasileiro, como substituto, mudou o jogo contra o Sheffield United, na quinta rodada: entrou com o time perdendo, marcou e deu a assistência para o gol da virada. E ainda assim, não é sempre que a “substituição” de Son ou Richarlison por Kane daria tão certo. Na goleada contra o Burnley, por exemplo, o sul-coreano fez o seu terceiro gol no jogo em uma jogada em que é melhor do que Kane: atacando as costas dos zagueiros.

Não é algo que Kane seria incapaz de fazer, evidentemente. Mas é algo em que Son (e até mesmo Richarlison) é mais capaz do que o inglês, dadas as diferenças físicas. O coreano é mais rápido e tem um primeiro passo mais explosivo.

O antigo centroavante dos Spurs provavelmente se deslocaria para pedir essa bola no seu pé, ou, em caso de lançamento, não chegaria em plenas condições como o camisa 7 conseguiu.

Clássico North London Derby

Sem Kane: finalização em profundidade
Com Kane*: chance em melhor condição poderia ser criada

No clássico contra o Arsenal, na sexta rodada, temos exemplos parecidos, mas que podem ser interpretados de outra forma. Já com 2 a 2 no placar, há lances em que Son prefere a corrida nas costas da zaga — neste lance em específico gerou uma finalização perigosa.

No entanto, especificamente nesse lance, se tivesse preferido se aproximar de Kulusevski, Son atrairia praticamente quatro jogadores no setor da bola, o que poderia abrir um grande espaço na região central — e de frente para o gol — para ser aproveitado por Johnson (na parte de cima do frame) ou Maddison vindo de trás. Esse é um movimento muito mais natural de Kane, por exemplo.

Tottenham x Luton: jogo truncado

Sem Kane: gol desperdiçado, vitória por 1 a 0

Com Kane: gol marcado, vitória por 2 a 0

Na oitava rodada, a vitória contra o Luton Town poderia ser mais tranquila. Aos dois minutos de jogo, Richarlison perdeu uma chance com gol livre, sem goleiro e praticamente debaixo da trave, que dificilmente Kane não guardaria — apesar de existir o debate sobre o posicionamento, uma vez que Richarlison só fechou na segunda trave por estar vindo da sua posição na ponta direita.

Foto: Reprodução/ESPN

Crystal Palace x Tottenham

Sem Kane: lance não se concretizou, vitória por 2 a 1

Com Kane*: gol, vitória por 3 a 1

E um exemplo mais recente, da última partida, contra o Crystal Palace, ilustra como Son, apesar de viver momento excelente, ainda não domina completamente os pormenores de um centroavante. Em uma situação de cruzamento, o camisa 7 acaba “se escondendo” atrás da marcação e não faz a melhor leitura do seu espaço na área, o que faz parecer que Maddison errou o cruzamento, quando, na verdade, Son é quem fez o movimento “errado”.

O coreano já não tinha mais espaço para correr para frente, e não teria ângulo para Maddison cruzar para onde Son estava, além do fato de o goleiro poder se adiantar para interceptar. Depois de arrastar seu marcador para dentro da pequena área, Son poderia dar um passo para trás, aproveitar o espaço que foi criado perto da marca do pênalti e receber o cruzamento — uma vez que foi exatamente ali que o meia colocou a bola.

*resultado fruto de imaginação baseado em análise

Melhor ou pior sem Kane? O veredito

Kane poderia, sim, ajudar o Tottenham em mais de uma ocasião, principalmente na hora capital: empurrar a bola para dentro. É possível que, com ele, o empate na estreia se tornasse uma vitória, por exemplo.

Mas não é garantia que Kane de fato melhoraria a campanha já muito boa dos Spurs. Em alguns dos lances que separamos, o time de Ange Postecoglou já estava vencendo. Em outros, ilustramos como Kane talvez não casasse tão bem com o modelo que gerou tantos gols até aqui na temporada.

Harry Kane é um dos maiores ídolos do Tottenham
Foto: Icon sport

Além disso, o time seria diferente em fase defensiva. Kane não é o defensor mais voraz, principalmente se comparado a Richarlison, Kulusevski e Son. Em comparação com o ano passado, o Tottenham é uma equipe que pressiona muito mais alto e com mais intensidade.

Segundo dados da plataforma Opta, cerca de 37% dos momentos de pressão do time londrino são no último terço — ou seja, pressionam muito alto e frequentemente. Na temporada passada, apenas 21% das pressões foram nessa região. Com Kane, manter esse ritmo seria mais difícil.

Kane ajudaria em certos pontos, mas não seria o melhor encaixe em outros. Mesmo sendo um bom líder, a sua ausência parece ter aflorado um espírito de mais união em grupo, fugindo de uma relação central de “poder” no vestiário.

Vendo todo o aspecto grupal do elenco, a relação interpessoal em campo e os padrões apresentados pelo time, acredito que a saída de Kane beneficiou o Tottenham e, com ele, o time não estaria em tamanha sincronia atualmente.

Guilherme Ramos
Guilherme Ramos

Jornalista pela UNESP. Escrevi um livro sobre tática no futebol e sou repórter da PL Brasil. Já passei por Total Football Analysis, Esporte News Mundo, Jumper Brasil e TechTudo.

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