Harry Kane é um dos maiores ídolos da história do Tottenham, mas passou toda a carreira no clube sem conquistar um único título. Deixou Londres como o maior artilheiro de todos os tempos dos Spurs para o Bayern na última janela de transferências e as coisas foram muito bem… para o Tottenham.
Kane tem ótimos números na Alemanha: por Bundesliga e Champions League, são 16 participações em gols em 15 jogos na temporada.
Campeonato | Jogos | Gols | Assistências |
---|---|---|---|
Bundesliga | 12 | 9 | 3 |
Champions League | 3 | 2 | 2 |
Por outro lado, logo na estreia do centroavante inglês pelo Bayern de Munique, os Bávaros levaram 3 a 0 do RB Leipzig e perderam o título da Supercopa da Alemanha. Além disso, logo na segunda fase da Copa da Alemanha, o time da Bavaria amargou uma eliminação vexaminosa do Saarbrücken, da terceira divisão.
Os Spurs, por sua vez, lideram a Premier League e ainda não perderam na temporada.
O que isso significa? Quer dizer que Kane atrapalhava o progresso da equipe como um todo? Ou se o artilheiro estivesse sendo comandado por Ange Postecoglou, os Spurs estariam em um patamar ainda maior?
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Hierarquia e Tottenham mais coeso
Se o termo científico de “macho alfa” em um grupo na esfera animal faz alusão às batalhas entre os mais fortes, com um se sobressaindo e liderando o bando, no futebol, a ideia pode ser entendida de maneira bem clara: Kane passou a liderar porque era o melhor.
O então jovem atacante começou a fazer gols em abundância, passou a ser o responsável — primeiro por fatores externos, depois internos — dos bons resultados do time até que, mais velho, tornou-se capitão e um líder vocal dentro do vestiário, já como jogador experiente.

Estar no convívio de um jogador muito diferente dos demais nesse sentido pode intimidar. Atletas têm mais momentos em que tendem a tocar para esse jogador do que fazer uma jogada individual, ou tentar algo diferente, que provavelmente fariam se estivessem em um ambiente mais confortável e nivelado.
Novos líderes
Sem Kane, Son se tornou o capitão — é o jogador mais antigo no elenco entre os titulares e desempenha em alto nível há anos. No entanto, rostos recentes, como o de Romero e até mesmo Maddison, recém-chegado, se tornaram os vice-capitães.
Sem o “macho alfa”, a liderança se tornou mais comunitária — antes, mais centralizada em uma figura “superior”, mesmo que involuntariamente — com novos nomes podendo agregar, além de um treinador “paizão”, como definido por Maddison, em comparação com nomes de mais “pulso firme” como Antonio Conte e José Mourinho.
O encaixe de Kane no Tottenham atual
Na última temporada, segundo dados da plataforma “Wyscout”, os Spurs se postaram em 95% dos jogos com uma formação de três zagueiros — Postecoglou escalou seu time em um 4-2-3-1 em todos os jogos da temporada até o momento. E as mudanças começam em efeito dominó a partir daí.

Tudo começa na primeira fase de construção, muito mais voltada a passes curtos desde o goleiro. Bissouma é o responsável por receber o primeiro passe do goleiro e, se pressionado, é ajudado por um dos laterais, que entram como “volantes”. Mas, uma vez que não é a função mais confortável de Pedro Porro e Udogie, Maddison ajuda.
Com Maddison, um camisa 10 clássico, cria-se vantagem numérica para sair jogando desde trás, o que não ocorria antes. Era Kane o responsável por percorrer grandes distâncias e ajudar na criação — algo que ele desenvolveu e, por consequência, o tornou um jogador muito mais completo. Mas era mais uma responsabilidade para o “macho alfa” resolver.

Maddison tem grande liberdade no campo de ataque e isso é benéfico porque o centroavante não deixa mais sua região no campo com tanta frequência e o sistema de Jogo de Posição de Ange flui beirando a perfeição.
E o camisa 10 só tem esse espaço por conta dos laterais, que atuam como meias entrelinhas atrás dos atacantes e, por consequência, exigem atenção dos volantes — que antes estariam observando Maddison.
Richarlison, Son e o substituto de Kane
O Tottenham não contratou um substituto imediato para o seu maior artilheiro, mas decidiu dar chances a Richarlison — que não tem correspondido em um primeiro momento. Isso fez com que Postecoglou testasse Son como centroavante.
Richarlison também não é um ponta “desequilibrante” atuando na esquerda, apesar de ter boa capacidade de atacar as costas da última linha e mostrar lampejos de habilidade em um contra um — o que transformou Kulusevski, na direita, em um dos pontas mais perigosos da Premier League.
Kulusevski na Premier League 2023/24
Dados do “Wyscout”
- 3º em dribles a partir de um contra um
- 3º em acerto de cruzamentos
- 3º na recepção de passes em profundidade
- 2º em toques na área
- 4º em toques na área por 90 minutos
Richarlison, inclusive, é “protegido” na esquerda por contar com Udogie, o lateral que lhe dá opção de progressão da bola atacando o meio-espaço ou recuando na lateral, e por ser o lado mais forte de Maddison e Son, uma vez que ambos têm a tendência de navegar por ali. Ou seja, o brasileiro não tem tanta urgência de resolver problemas.
Isso é refletido nos números: entre os atacantes do Totteham (incluindo Maddison), é o que tem menos passes, a menor porcentagem de acerto dos passes, menos passes para frente, cruzamentos e dribles certos. Por outro lado, é quem tem mais duelos ofensivos e chutes por jogo.

Com Son como centroavante, o Tottenham ganha algo que não teria com tanta frequência com Kane: um 9 veloz e que constantemente preocupa os zagueiros com corridas nas suas costas. Isso obriga os adversários a ficarem mais atrás e acaba por “empurrar” as linhas de marcação para mais perto do goleiro, criando mais espaço no meio para os criativos Maddison, Udogie, Bissouma e o próprio Son.
Kane oferece perigo, obviamente, mas não da mesma forma que Son.
O antigo camisa 10 teria a tendência de descer mais para o meio-campo, possivelmente ocuparia regiões muito próximas das de Maddison, baixando a influência do meia sobre o jogo, e atrairia a linha de defesa adversária para cima — isso dificultaria a criação de superioridade numérica para criar oportunidades, por exemplo.
Não seria justo dizer que o inglês “atrapalharia” o sistema — Ange muito provavelmente o encaixaria e criaria padrões para tirar o melhor do jogador. Ainda assim, a fluidez que existe hoje, com os perigos que os jogadores atuais, nessa disposição, levam aos adversários, não seria igual com Kane.
Quando Kane faria a diferença?
O artilheiro fez falta nas primeiras rodadas, principalmente quando analisamos os gols perdidos por Richarlison. O brasileiro acumulou 3,25 gols esperados (xG) na Premier League até o momento, mas só marcou um.
A efeito de comparação, o novo centroavante, Son, tem 4,29 de xG, mas marcou oito vezes — ou seja, tem feito praticamente o dobro do que o esperado. Kane, por exemplo, marcou 30 gols na última edição da Premier League com pouco mais de 21 de xG.
Kane evidentemente poderia marcar mais gols do que Richarlison e levar perigo de modo geral dentro da área. Na primeira rodada, o brasileiro acumulou 0,17 de xG — é um número não tão alto, mas que Kane poderia capitalizar com mais perigo do que o camisa 9. No jogo seguinte, contra o Manchester United, Richarlison sequer finalizou, algo impensável de ocorrer com o inglês.
- *A PL Brasil decidiu exercer sua criativa imaginação — baseada em análises — para criar os cenários abaixo
Tottenham x Brentford
Sem Kane: empate e chance perdida
Com Kane*: gol marcado e vitória
Em exemplos práticos, a própria rodada de estreia, que terminou em um empate em 2 a 2, poderia ter um rumo diferente. Aos 63 minutos, Richarlison recebeu passe em profundidade de Maddison e teve tempo e espaço para finalizar ou driblar seu marcador para ter mais chance de marcar, mas acabou chutando desequelibrado. Kane poderia fazer diferente.

Tottenham x Bournemouth
Sem Kane: vitória por 2 a 0
Com Kane*: vitória por 3 a 0
No jogo contra o Bournemouth, por exemplo, Richarlison teve outro lance ainda mais claro de gol, quando driblou um zagueiro, o goleiro e perdeu a chance de marcar. Apesar de não ter mudado o jogo, uma vez que os Spurs venceram por 2 a 0, é difícil imaginar Kane fazendo algo semelhante.

Tottenham x Fulham
Sem Kane: eliminação na Copa da Liga
Com Kane: chance maior na cobrança de pênaltis
A comparação não é apenas com Richarlison, claro. Na eliminação dos Spurs para o Fulham na Copa da Liga Inglesa, o brasileiro marcou o gol de empate — e provavelmente Kane sequer seria titular nessa partida. Ainda assim, Maddison, Kulusevski e Son entraram na reta final, e o antigo camisa 10 também poderia ajudar, além de ser mais uma opção qualificada na cobrança de pênaltis.
Sem Kane: vitória por 2 a 0
Com Kane*: vitória por 3 a 0
Mas contra o mesmo adversário, na Premier League, poderia ajudar a vitória a ser maior: provavelmente converteria uma chance clara que Son perdeu no início da partida.

Quando Kane não faria a diferença?
Tottenham x Sheffield
Sem Kane: vitória por 5 a 2
Com Kane*: vitória por 3 a 2
Vale ressaltar que o brasileiro, como substituto, mudou o jogo contra o Sheffield United, na quinta rodada: entrou com o time perdendo, marcou e deu a assistência para o gol da virada. E ainda assim, não é sempre que a “substituição” de Son ou Richarlison por Kane daria tão certo. Na goleada contra o Burnley, por exemplo, o sul-coreano fez o seu terceiro gol no jogo em uma jogada em que é melhor do que Kane: atacando as costas dos zagueiros.

Não é algo que Kane seria incapaz de fazer, evidentemente. Mas é algo em que Son (e até mesmo Richarlison) é mais capaz do que o inglês, dadas as diferenças físicas. O coreano é mais rápido e tem um primeiro passo mais explosivo.
O antigo centroavante dos Spurs provavelmente se deslocaria para pedir essa bola no seu pé, ou, em caso de lançamento, não chegaria em plenas condições como o camisa 7 conseguiu.
Clássico North London Derby
Sem Kane: finalização em profundidade
Com Kane*: chance em melhor condição poderia ser criada
No clássico contra o Arsenal, na sexta rodada, temos exemplos parecidos, mas que podem ser interpretados de outra forma. Já com 2 a 2 no placar, há lances em que Son prefere a corrida nas costas da zaga — neste lance em específico gerou uma finalização perigosa.

No entanto, especificamente nesse lance, se tivesse preferido se aproximar de Kulusevski, Son atrairia praticamente quatro jogadores no setor da bola, o que poderia abrir um grande espaço na região central — e de frente para o gol — para ser aproveitado por Johnson (na parte de cima do frame) ou Maddison vindo de trás. Esse é um movimento muito mais natural de Kane, por exemplo.
Tottenham x Luton: jogo truncado
Sem Kane: gol desperdiçado, vitória por 1 a 0
Com Kane: gol marcado, vitória por 2 a 0
Na oitava rodada, a vitória contra o Luton Town poderia ser mais tranquila. Aos dois minutos de jogo, Richarlison perdeu uma chance com gol livre, sem goleiro e praticamente debaixo da trave, que dificilmente Kane não guardaria — apesar de existir o debate sobre o posicionamento, uma vez que Richarlison só fechou na segunda trave por estar vindo da sua posição na ponta direita.

Crystal Palace x Tottenham
Sem Kane: lance não se concretizou, vitória por 2 a 1
Com Kane*: gol, vitória por 3 a 1
E um exemplo mais recente, da última partida, contra o Crystal Palace, ilustra como Son, apesar de viver momento excelente, ainda não domina completamente os pormenores de um centroavante. Em uma situação de cruzamento, o camisa 7 acaba “se escondendo” atrás da marcação e não faz a melhor leitura do seu espaço na área, o que faz parecer que Maddison errou o cruzamento, quando, na verdade, Son é quem fez o movimento “errado”.


O coreano já não tinha mais espaço para correr para frente, e não teria ângulo para Maddison cruzar para onde Son estava, além do fato de o goleiro poder se adiantar para interceptar. Depois de arrastar seu marcador para dentro da pequena área, Son poderia dar um passo para trás, aproveitar o espaço que foi criado perto da marca do pênalti e receber o cruzamento — uma vez que foi exatamente ali que o meia colocou a bola.
*resultado fruto de imaginação baseado em análise
Melhor ou pior sem Kane? O veredito
Kane poderia, sim, ajudar o Tottenham em mais de uma ocasião, principalmente na hora capital: empurrar a bola para dentro. É possível que, com ele, o empate na estreia se tornasse uma vitória, por exemplo.
Mas não é garantia que Kane de fato melhoraria a campanha já muito boa dos Spurs. Em alguns dos lances que separamos, o time de Ange Postecoglou já estava vencendo. Em outros, ilustramos como Kane talvez não casasse tão bem com o modelo que gerou tantos gols até aqui na temporada.

Além disso, o time seria diferente em fase defensiva. Kane não é o defensor mais voraz, principalmente se comparado a Richarlison, Kulusevski e Son. Em comparação com o ano passado, o Tottenham é uma equipe que pressiona muito mais alto e com mais intensidade.
Segundo dados da plataforma Opta, cerca de 37% dos momentos de pressão do time londrino são no último terço — ou seja, pressionam muito alto e frequentemente. Na temporada passada, apenas 21% das pressões foram nessa região. Com Kane, manter esse ritmo seria mais difícil.
Kane ajudaria em certos pontos, mas não seria o melhor encaixe em outros. Mesmo sendo um bom líder, a sua ausência parece ter aflorado um espírito de mais união em grupo, fugindo de uma relação central de “poder” no vestiário.
Vendo todo o aspecto grupal do elenco, a relação interpessoal em campo e os padrões apresentados pelo time, acredito que a saída de Kane beneficiou o Tottenham e, com ele, o time não estaria em tamanha sincronia atualmente.