Séculos antes da II Guerra Mundial ou do Holocausto, o povo judeu já havia sofrido diversas formas de perseguição. Para se compreender a associação dessas pessoas ao Tottenham, é preciso analisar a história dos judeus na Inglaterra.
Há registros da presença de judeus na Grã-Bretanha desde o século XI, mas a prática do judaísmo só foi oficialmente legalizada na Inglaterra em meados do século XIX. A legalização atraiu milhares de imigrantes oriundos do leste europeu, onde ainda havia extensa perseguição.
A grande maioria desses imigrantes se estabeleceu em Londres, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste da cidade, no distrito de Tottenham.
⚠️"O Tottenham, os judeus e o triste mundo em que vivemos": você sabia que os Spurs conservam uma antiga relação com o judaísmo?https://t.co/BTQpnodwHC
✍️@renato_senise explica a relação construída em torno do White Heart Lane e reflete sobre conflito Israel x Palestina 👇
— PL Brasil (@plbrasil1) October 11, 2023
Foi justamente nesse local e nessa época, mais precisamente em 1882, que nasceu o Hotspur Football Club, dois anos mais tarde renomeado Tottenham Hotspur Football Club.
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Recém-chegados em uma terra estranha, de cultura distinta e vistos pelos “nativos” como intrusos que não pertenciam àquele ambiente, os judeus abraçaram o clube. Mesmo que por apenas algumas horas, os jogos dos Spurs eram uma forma de escapismo da dura realidade vivida pelos imigrantes, em sua maior parte membros da classe trabalhadora.
Segundo relatos do jornal Daily Express em 1934, cerca de um terço do público presente nos jogos em White Hart Lane, à época, era composto por judeus. Um episódio que marcou a história da comunidade e a relação torcida-time foi o amistoso disputado entre Inglaterra e Alemanha, em dezembro de 1935. Já sob governo nazista, a Alemanha – e a presença de sua seleção em solo britânico – era vista com maus olhos pelos judeus ingleses.
Quando foi anunciado que o jogo seria disputado em White Hart Lane, a “casa” da comunidade judaica em Londres, uma onda de protestos se desencadeou, de modo a tentar impedir a realização da partida.
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As manifestações de indignação pública local foram infrutíferas e a partida de fato aconteceu. Foi a primeira e última vez em que uma bandeira com a suástica foi erguida em White Hart Lane.
O que não durou muito tempo, visto que, momentos antes do pontapé inicial, um torcedor inglês teria escalado o telhado do estádio e arrancado a bandeira de lá. O gesto inflamou a torcida, que empurrou sua seleção a uma histórica vitória por 3 a 0 sobre os alemães.
A história dos Spurs está ligada essencialmente a momentos como esse e às vidas desses imigrantes, dos deslocados, dos ambiciosos, dos sonhadores. Gerações que encontraram um refúgio de conforto e descontração entre as massas trajando as cores dos Lilywhites.
Esperanças e aspirações eram expressadas através do amor ao clube e, com o tempo, vieram os tão almejados sentimentos de fazer parte de algo e de ter importância. A essência do Tottenham Hotspur.
A relação centenária entre Tottenham e judaísmo e como ela impulsionou o clube
Segundo o censo britânico de 2011, 1,81% da população de Londres, cerca de 160 mil habitantes, se considera judia. Já o The Jewish Cronicle, jornal londrino focado nesse público específico, estima que “no máximo 5% da torcida (em jogos do Tottenham)” seja composta por judeus.
Mesmo que a estimativa se aproxime da realidade, é evidente o caráter multicultural do clube hoje em dia, ainda que a proporção de judeus nas arquibancadas seja acima da média em relação à população geral.
A verdade é que o processo de construção do Tottenham Hotspur como um clube-empresa de popularidade mundial muito se deve à administração de presidentes judeus ao longo da história do clube. De 1982 para cá, a presidência dos Spurs passou por três empresários vindos da comunidade judaica da grande Londres.
Entre 1982 e 1991 o clube foi presidido por Irving Scholar, que adquiriu o Tottenham das famílias Richardson e Wale. Torcedor de infância dos Spurs, Scholar foi o primeiro dirigente da história do futebol a colocar seu clube na bolsa de valores e a possibilitar a compra de ações por parte de torcedores.
Sob a administração de Scholar, o clube ergueu as taças da Copa da Inglaterra, em 1982, e da Copa da UEFA (atual Europa League) em 1984.
Em 1991, o comando passou a Alan Sugar, que investiu pesado na contratação de grandes estrelas mundiais. Entre 1991 e 2001, craques como Paul Gascoigne, Gary Lineker, Jürgen Klinsmann, Teddy Sheringham e David Ginola vestiram a camisa Lilywhite.
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Nesse período os Spurs conquistaram apenas uma Copa da Liga, em 1999. No campo político, porém, assumiram o protagonismo e foram um dos cinco clubes fundadores da Premier League, em 1992.
Em 2001, Daniel Levy, ao lado do empresário Joe Lewis, adquiriu 85% das ações e assumiu a presidência do clube, cargo que ocupa até hoje. Nascido em uma família judia de Essex, Levy é torcedor fanático do Tottenham e frequenta os jogos do time desde a década de 1960.
Em sua gestão, os Spurs finalmente alcançaram o patamar internacional tão almejado pelas administrações anteriores. Contou com jogadores de destaque mundial nesse período, como Gareth Bale, Luka Modric e, atualmente, Harry Kane.
Além disso, o clube se tornou figura carimbada em competições europeias – de 2006 para cá, apenas em 2009-10 ficaram de fora de torneios internacionais.
Provocação ou antissemitismo? A origem do termo pejorativo “Yid”
Dizer que o Tottenham é o único clube de futebol na Inglaterra intimamente ligado à comunidade judaica seria, no mínimo, extremamente simplista. Clubes grandes e tradicionais, como Arsenal e Leeds United, também carregam consigo histórias de afinidade com judeus britânicos. No entanto, apenas os torcedores dos Spurs são chamados de “Yids” pelos rivais.
O termo faz referência pejorativa a “Yiddish” (em português “iídiche”), língua tradicional dos judeus Ashkenazi (ou “Asquenazes”).
Segundo o comediante britânico David Baddiel, em entrevista cedida ao The Guardian em 2007, a “provocação” não passa de um grave ato discriminatório e deveria ser combatida enfaticamente.
“Você consegue imaginar se a torcida do Chelsea gritasse ‘Nigger’ or ‘Paki’ (termo pejorativo contra paquistaneses)? As pessoas estariam, de fato, falando em tomar ações legais contra isso”, criticou Baddiel.
No entanto, como mecanismo de defesa os próprios torcedores do clube historicamente se autodenominam “Yids”, o que, infelizmente, não diminui os insultos preconceituosos.
Em 2013, a Federação Inglesa declarou que “o uso do termo ‘yid’ será normalmente considerado ofensivo” e passou a punir aqueles que o proferissem.
A medida, ironicamente, não engloba insultos e provocações fazendo referências ao Holocausto ou a câmaras de gás, mas passou a punir torcedores do próprio Tottenham por se autodenominarem “Yids” e incluírem o termo em canções entoadas nas arquibancadas.
Apesar da grande polêmica em torno de antissemitismo e discriminação, o Tottenham segue em ascensão no futebol mundial.
Seja no cenário comercial, com a crescente popularização da marca, seja no esportivo, com o recente vice-campeonato da Premier League e as seguidas participações na Champions. Sem esconder sua identidade e honrando sua história.