Como a torcida do Millwall lida com sua reputação violenta?

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A música “No one likes us, we don’t care” (“Ninguém gosta da gente, e nós não ligamos para isso”) é cantada por milhares de torcedores no ritmo de “(We Are) Sailing“ do cantor Rod Stewart. O cântico entoado pela torcida do Millwall é em resposta à reputação dos muitos fãs dos Lions como hooligans.

Como a torcida do Millwall lida com sua reputação violenta?

A torcida do Millwall, clube do sudeste de Londres, sabe – apesar de não concordar – que os Lions têm seu nome associado ao hooliganismo. Ao longo de décadas, os torcedores do clube estiveram envolvidos em muitas cenas lamentáveis do futebol inglês. A PL Brasil foi atrás de torcedores e jornalistas para descobrir como os fãs dos Lions lidam com essa relação.

Acostumado às divisões inferiores do futebol inglês, o Millwall não tem muitas glórias futebolísticas a se vangloriar, ainda mais se comparar aos outros clubes de Londres. Foram apenas duas temporadas na primeira divisão, a última delas em 1989/1990, e o título mais importante foi da segunda divisão, em 1988.

O único jogador brasileiro a vestir a camisa do Millwall foi o ex-lateral-esquerdo Juan, ex-Flamengo, São Paulo, dentre outros clubes. Emprestado pelo Arsenal em 2003, o então jovem defensor teve uma passagem rápida pelos Lions e, apesar de saber do histórico do clube, garante que sua estadia no The Den ocorreu sem problemas.

“Foi um empréstimo de três meses, mas como eu não estava sendo muito aproveitado, nem completei esse período. É um clube de menor expressão em relação ao Arsenal, mas tem tradição. Cheguei lá e o Millwall já tinha a fama do torcedor apaixonado que, no passado, tinha essa história de ser brigão, dos hooligans, mas na passagem que tive por lá foi tudo bem tranquilo”, contou à PL Brasil.

No histórico do clube ao longo de décadas, constam brigas generalizadas dentro e fora de estádios, invasões de campo, objetos arremessados e até jogadores adversários agredidos no gramado. 

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Muitos episódios tristes envolvendo o clube assustaram os ingleses. Em especial, a partida Millwall e Ipswich em 1978 e Luton Town x Millwall em 1985, ambos pela Copa da Inglaterra, além de Millwall x Birmingham City pelos playoffs da segunda divisão em 2002. Além disso, tantas outras cenas trágicas se repetiram dentro e fora dos estádios.

“Das décadas de 1970 e 1980 até hoje, o Millwall tem essa fama do hooliganismo. Aliás, tem dois times na Inglaterra com essa marca: Millwall (no sul do país, em Londres) e Leeds (no nordeste). Tem torcedores do Millwall que gostam e se orgulham dessa reputação de ser o clube dos hooligans, de ser a torcida mais violenta e agressiva, mas há torcedores também que têm vergonha dessa reputação. O clube busca limpar essa imagem, mas é muito difícil”, conta o jornalista inglês Robbie Blakeley

Na década de 1970, o programa televisivo “Panorama”, da BBC, investigou a ação de hooligans no futebol inglês, com grande foco para a torcida F-Troops, hoje Millwall Bushwackers, do Millwall. 

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Para muitos torcedores dos Lions, o programa teve papel preponderante ao usar o clube como bode expiatório para explicar a violência dentro e fora dos estádios, tese defendida no livro “No One Likes Us; We Don’t Care: The Myth and Reality of Millwall Fandom” (Ninguém gosta de nós; Nós não nos importamos: o mito e a realidade da torcida do Millwall, sem tradução para o Brasil). 

O livro, do autor Andrew Woods, também critica a Federação Inglesa quanto à punição supostamente desigual a outros clubes por episódios de violência similares. 

“Há muito exagero da mídia nessa questão. O último episódio (de hooliganismo) envolvendo o Millwall foi há 20 anos (em 2001). A maioria dos torcedores gostaria de ver esta reputação desaparecer ou diminuir”, disse à PL Brasil Jeff Burnige, torcedor do Millwall e um dos organizadores do podcast “No One Likes Us Talkin”, dedicado ao clube.

Episódios lamentáveis de racismo

O Millwall também registra em sua história episódios lamentáveis de racismo, inclusive nos últimos dez anos. Em 2013, torcedores dos Lions xingaram com ofensas racistas o atacante El-Hadji Diouf, do Leeds, e o meio-campista Nathaniel Chalobah, do Nottingham Forest. Quatro anos depois, a vítima foi Heung-min Son, do Tottenham. Em 2019, torcedores do Millwall praticaram ofensas a paquistaneses em uma partida contra o Everton e, em um jogo contra o Barnsley, um torcedor ofendeu racialmente um jogador adversário.

No dia 5 de dezembro de 2020, parte dos torcedores presentes no The Den vaiaram os atletas do clube que se ajoelharam como protesto pelo movimento Black Lives Matter antes do apito inicial na partida contra o Derby County.

Assim como a Football League, a Federação Inglesa criticou o caso, mas decidiu que o clube não vai enfrentar medidas disciplinares. A diretoria do Millwall emitiu comunicado condenando a atitude dos seus torcedores que vaiaram. 

O lateral-direito Mahlon Romeo, que é negro, se mostrou decepcionado com as vaias. “Os torcedores hoje desrespeitaram não só a mim, mas o Millwall também e o que o clube e a comunidade defendem. O que eles fizeram foi vaiar e condenar um gesto de paz para realçar, combater e impedir qualquer comportamento discriminatório e racista. É isso que o gesto é”, disse ao South London Press.

O mesmo comportamento de torcedores vaiando o apoio ao movimento Black Lives Matter foi visto também por torcedores do Colchester United em uma partida da quarta divisão na mesma semana. Houve revolta nas redes sociais pelas vaias, mas muitos torcedores, inclusive de outros clubes, apoiaram a decisão, tachando de “fazer política” o ato de se ajoelhar, que vem perdendo força na Inglaterra.

Para a rodada seguinte, após orientação da diretoria, os jogadores do Millwall deixaram de se ajoelhar no gramado e deram as mãos aos atletas do Queens Park Rangers, carregando uma faixa com mensagem de apoio à luta contra o racismo. 

“Com o passar do tempo, mais times e jogadores decidiram não se ajoelhar mais. Atletas negros de destaque, como Wilfried Zaha (Nota: jogador disse a um podcast “por que devo me ajoelhar para mostrar que importamos?”), afirmaram recentemente que essa decisão (se ajoelhar) é errada. Outros times fizeram o que o Millwall fez e não receberam a mesma atenção”, afirma Jeff Burnige.

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Para Blakeley, apesar desses episódios, o racismo é um grande problema de todo o futebol inglês. “Não acho que seja exclusivamente do Millwall. Há vários episódios racistas envolvendo outros clubes”, analisa.

Para entender melhor a relação entre a torcida do Millwall e a questão racial, o pesquisador Ole Jensen resolveu investigar a história e produziu o documentário “Millwall, Black and White: A Portrait from the Terraces” (Millwall, preto e branco: um retrato das arquibancadas), lançado em 2018.

Credit Ole Jensen

A obra aborda como os torcedores negros dos Lions lidam com o apoio a um clube que tem a reputação de ser racista. Durante o processo de produção, Jensen não teve vida fácil para encontrar torcedores dispostos a falar publicamente sobre o tema.

“A torcida do Millwall acha que o “sistema” está contra eles, e muitos suspeitam dos motivos das outras pessoas. Então esta foi, em particular no início, uma luta difícil. Assim que você começa a falar com os torcedores, episódios racistas e hooliganismo fazem parte da conversa, também porque os torcedores do Millwall estão cansados ​​de se sentirem mal representados”.

Ao conversar com torcedores e comparecer a muitos jogos do time para produzir o documentário, Jensen conta que não presenciou nenhum comportamento racista. Ele acredita que os episódios do passado de parte da torcida se devem ao preconceito já existente em todo o futebol e a sociedade inglesa.

“Durante as décadas 1970 e 1980, em que o Millwall se tornou associado ao hooliganismo no futebol inglês, me parece que os gritos racistas eram muito difundidos nas arquibancadas mais ou menos em todos os lugares, sendo normalmente dirigidos contra o adversário. Um torcedor com quem conversei observou que, em vez de o Millwall ser um ‘clube racista’, ele é um reflexo do racismo da sociedade britânica. Devo admitir que simpatizo com essa opinião”. 

Limpando a imagem

Há algum tempo, os Lions tentam mudar a imagem do clube e apoiam iniciativas de combate à discriminação, como a Kick It Out. É no trabalho de aproximação e ajuda à comunidade local que a diretoria do Millwall se apoia para fortalecer o elo com os torcedores. 

Em 1985, criou-se o Millwall Community Trust para estreitar os elos entre o Millwall e os moradores da região do estádio. Trata-se de uma instituição que trabalha para fornecer oportunidades esportivas, educacionais, sociais e de estilo de vida saudável para a comunidade local. 

É oferecida uma variedade de programas e projetos que visam o combate à exclusão social, racismo, dentre outros temas. Em uma dessas ações, o Millwall Community Trust trabalhou ao lado da Muslim Aid (ONG de caridade de origem islâmica) no último Natal para doar 35 mil refeições para pessoas pobres por toda a cidade.

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Em 2017, a diretoria do Millwall recebeu o troféu Family Club of The Year da English Football League (EFL). O prêmio homenageia o clube que fornece a melhor experiência para famílias e jovens torcedores. A organização comanda o futebol inglês da segunda à quarta divisão.

“Este clube talvez tenha que trabalhar mais do que qualquer outro. É muito gratificante receber este prêmio”, disse o diretor-executivo do Millwall, Steve Kavanagh, à época.

O trabalho de destaque começou em 2013, quando o clube reformulou sua estratégia familiar e inaugurou uma área no estádio na tentativa de atrair crianças. O local, dedicado às famílias, é equipado com jogos, barracas de confeitaria, áreas para crianças pintarem o rosto, competições de desenho, além de outras atividades. 

https://twitter.com/Andy_Hunt357/status/851175295889666048

A reação nas redes sociais à premiação do Millwall foi em grande parte em tom de crítica, associando o clube a episódios de violência do passado e destrato com torcedores visitantes no The Den.

“O clube tentou todo o possível para limpar essa imagem, mas todo episódio pequeno em que esteve envolvido ganha uma atenção da mídia muito maior que se tivesse acontecido com outro time. É o estereótipo que a mídia tem em relação ao clube”, avalia Burnige.

Esse texto foi publicado originalmente em março de 2021 e republicado em agosto de 2023

Pedro Ramos
Pedro Ramos

Editor da PL Brasil entre 2012 e 2020 e subcoordenador na PL Brasil desde 2023. Passagens pelo jornal Estadão e o canal TNT Sports. Formado em Jornalismo e Sociologia. Ex-pesquisador do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa).

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