Não deu para o Fluminense contra o Manchester City na sexta-feira (23), apesar da torcida do meu colega brilhante Renato Senise, que nutria a esperança que uma zebra ia se soltar na final do Mundial para castigar os ingleses por seu desprezo com o futebol brasileiro.
Entendo perfeitamente o sentimento de Senise. Vivo na dificuldade de vender o futebol tupiniquim para os meus conterrâneos. Não é nada fácil.
A seleção sim — normalmente, eles têm um grau de interesse. Os ‘wonderkids’ — jovens talentos que em breve vão cruzar o Atlântico — sempre têm audiência por lá.
Mas o dia a dia e a história dos clubes, não. Isso não rola. Tem um desprezo mesmo, que o placar de City x Fluminense nada fez para mudar.
Tenho, porém, idade para lembrar um cenário oposto. Quando cheguei ao Brasil, em 1994, o futebol inglês era por aqui como uma piada. Passava — e nem sempre — um jogo da Premier League de segunda-feira. Assistir a isso era visto como uma confirmação de uma doença mental, um amor pelo futebol que desafiava todos os limites de bom senso e bom gosto.
A impressão geral na época era que o futebol na Inglaterra não passava de chutões e cruzamentos, um desfile eterno de ignorância e falta de imaginação. Uma caricatura vulgar — mas, como muitas caricaturas, com bastante verdade ali dentro. O futebol inglês realmente era isso. Mas era outras coisas também. A cultura do futebol no país sempre foi complexa e contraditória, uma briga em que o campo cheio de lama inclinava a batalha para a escuridão, mas a luz estava se esforçando para aparecer.
A luz no fim do túnel, muito antes do City de Guardiola
Quem viu isso de perto há mais de quatro décadas atrás foi o gênio Paulo César Caju. Ele jogou na ponta-esquerda contra aquela grande seleção da Inglaterra, na Copa de 1970. Dez anos mais tarde, quase virou o primeiro brasileiro a disputar o futebol inglês. Estava negociando com o Fulham. Acabou rejeitando a proposta — não estava feliz com a quantidade de impostos que teria que pagar. Olhando para trás (ele me contou isso pessoalmente), se arrepende um pouco. Teria sido interessante fazer história.
E Caju ficou mais tentado depois de ir para alguns jogos enquanto estava negociando. Foi para o Arsenal e ficou encantado com Liam Brady, um meia irlandês com uma vara no pé esquerdo. “Eu estava vendo Gerson!” exclamou, comparando-o ao craque brasileiro.
Também foi para West Ham, onde curtiu muito o Trevor Brooking, um meia elegante que até hoje é um grande ídolo para a torcida. E se o Tottenham tivesse jogado em casa, teria visto Glenn Hoddle, um jogador com mãos em vez de pés. Dois anos mais cedo, o clube contratou o argentino campeão do mundo Osvaldo Ardiles. Hoddle foi um choque muito grande para Ardiles. Fala até hoje que só conhece um jogador com mais técnica — o seu companheiro da seleção, Diego Maradona. Chama Hoddle de “Maradona sem velocidade”.
Then. Now. Always.
Liam Brady 🤝 Arsenal legendpic.twitter.com/lpK7KAl3S6
— Arsenal (@Arsenal) February 13, 2022
Também na parada estava Ray Wilkins, volante do Chelsea, e depois de Manchester United e Milan. Uma vez vi Oswaldo de Oliveira falar que ele ia para Londres de vez em quando somente para ver Wilkins jogar, porque não errava um passe.
Esses nomes não tinham nada a ver com o estereótipo comum do futebol britânico, o que não desqualifica totalmente o estereótipo. No auge da seleção da Irlanda, Brady não jogava. O técnico e ex-zagueiro inglês Jack Charlton quis verticalidade em vez de construção.
Brooking e especialmente Hoddle nem sempre foram unanimidades. Foram sempre contestados na seleção — como Wilkins, embora tivesse jogado quase 100 vezes. Era muito criticado por priorizar o passe para o companheiro ao invés de um chutão para frente. Era normal o jogador com técnica sofrer desconfiança e ser considerado um luxo.
Talvez esse quarteto tenha nascido cedo demais. Hoje em dia, aposto que mudou bastante. Se valoriza mais o talento. Em consequência, a Premier League não é somente um triunfo do capital e jogadores estrangeiros. Vale a pena notar que, no time do Manchester City que goleou o Fluminense, cinco dos jogadores são ingleses.