Tim Vickery: Botafogo, Leicester e o dia em que fui na torcida adversária na ‘final’ da Premier League

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Você acha que o Botafogo é capaz de fazer um Devon Loch?

Mas, estou ouvindo você gritar, do que se trata esse negócio de Devon Loch? Trata-se de uma expressão importante na cultura esportiva inglesa, que tem por trás uma história deliciosa, porém cruel.

O ano é 1956 e o evento se chama o Grand National, uma das mais importantes corridas de cavalo no país. Interessante como esse esporte sempre conseguiu unir os opostos da hierarquia social, os aristocratas e o povão. 

O primeiro adora criar os cavalos e o segundo gosta muito de apostar neles. E neste ano era uma coisa certa. O cavalo da mãe da rainha ia ganhar. Faltando pouco para terminar estava com uma liderança folgada, uma gordura respeitável. E o nome do animal era Devon Loch.

Ainda não se sabe porquê. Podia ter sido o susto com o barulho da multidão. Ou talvez o cavalo se enganou e pensou que tinha que pular mais um obstáculo. Mas, por qualquer motivo que seja, de repente Devon Loch caiu em cima do próprio estômago. 

Enquanto estava no chão, foi ultrapassado. Quase ninguém lembra quem ganhou, porque foi a corrida mais perdida de todos os tempos. Ainda se fala sobre a corrida de Devon Loch, o cavalo que literalmente perdeu para ele mesmo.

E até hoje, sempre que alguém está correndo perigo de pegar uma derrota das maxilas da vitória, a pergunta se faz — será que vai fazer um Devon Loch?

Então, a dúvida que paira sobre o Botafogo trabalhava hora extra oito anos atrás nos últimos meses da campanha incrível do Leicester City. Não pode acontecer, é bom demais para ser verdade, vai terminar em lágrimas e decepção, porque na hora H o Leicester vai fazer um Devon Loch….

Eu estava lá na noite em que o impossível aconteceu, quando o Leicester ficou confirmado como campeão da Premier League — sem jogar.

Talvez neste caso sem jogar é melhor. Se o time não está jogando, fica mais difícil fazer um Devon Loch. Pode deixar isso para os outros. E, nesta noite, foi o fato que o Tottenham não conseguiu vencer o Chelsea que carimbou o título do Leicester.

O jogo aconteceu em Stamford Bridge, estádio do Chelsea. E depois de fazer uns favores para o clube,o anfitrião gentilmente me deu ingressos. Dentro da torcida da casa. E eu sou Tottenham.

Foi necessário, então, comemorar bem quietinho quando o meu time fez 2 a 0. Assim o sonho eterno do primeiro título desde 1961 estava vivo ainda. Mas, na reta final de uma temporada bem decepcionante, o Chelsea estava com um objetivo só — impedir, a qualquer custo, um título para o Tottenham. 

A temperatura do jogo subiu tanto que quase todo mundo no campo recebeu cartão amarelo — e hoje, com VAR, com certeza seria vários vermelhos também. Faltando pouco para acabar, Eden Hazard, num lance genial, marcou o gol de empate do Chelsea — e portanto o gol de título do Leicester.

A torcida explodiu com uma mistura de alegria, alívio e ódio. Bem na minha frente houve o mais desequilibrado de todos. Comemorou que nem um louco, e depois de um tempo virou e percebeu que eu não estava acompanhando a euforia geral. Com os seus três metros de altura se elevou sobre mim e perguntou — “você é torcedor do Tottenham?”

Hora de um pouco de malandragem. Tenho que agradecer a minha mulher, ao meu lado com as suas raízes bem indígenas para ajudar o meu disfarce. “I am from Brazil,” falei.  “I laike Willian.  Very goody.”

Deu certo. Sobrevivi sem arranhões para torcer outro dia. Não foi uma derrota, muito menos um Devon Loch. Foi uma recuada estratégica.

Tim Vickery
Tim Vickery

Tim Vickery cobre futebol sul-americano para a BBC e para a revista World Soccer desde 1997, além de escrever para ESPN e aparecer semanalmente no programa Redação SporTV. Foi declarado Mestre de Jornalismo pela Comunique-se e, de vez em quando, fica olhando para o prêmio na tentativa de esquecer os últimos anos de Tottenham Hotspur.