Vickery: Arsenal x Tottenham, da rixa filosófica ao rompimento com o passado

Clássico do Norte de Londres entre Arsenal x Tottenham traz muita história

Não importa a qualidade dos jogadores, sem a torcida um jogo de futebol não passa de uma pelada no parque. O futebol profissional não é somente sobre quem está no campo, mas quem está sendo representado — tema que fica bem mais quente quando se trata de times da mesma cidade, onde os torcedores se cruzam todos os dias.

Mas quem está sendo representado num clássico local? Como definir a rixa entre um clube e o seu rival?

Tem uma divisão muito comum na América do Sul — River Plate x Boca Juniors, que serve como modelo, mas se encontra no continente inteiro — em que, no nível de símbolos, um representa os mais abastecidos e o outro, os pobres. Ou a briga pode ser geográfica, um lado da cidade contra o outro. O clássico de Istambul, Galatasaray x Fenerbahce, tem um toque de ricos contra o povão, mas também tem o fato intrigante que um fica na Europa e o outro na Ásia.

Sei que sou parcial nesse assunto, mas para mim a linha de divisão mais interessante era (e depois explico porque coloco no passado) do clássico do norte de Londres, Arsenal x Tottenham, que tem o seu próximo capítulo neste fim de semana. Porque, acima de tudo, se tratava de uma rixa filosófica.

Bem, tem motivos mais convencionais por trás da rivalidade. O Arsenal era do sul de Londres — o time da fábrica do arsenal de Woolwich — até atravessar a cidade 110 anos atrás, chegando bem perto do território do Tottenham. E tem o escândalo do fim da Primeira Guerra Mundial, onde o Arsenal usou e abusou de seu poder nos bastidores para evitar o rebaixamento no tapetão, mantendo o Tottenham na segundona.

Mas isso é só o começo, e não a parte mais interessante.

Porque os dois vizinhos foram tomando sentidos diferentes, criando identidades distintas.

O gênio por trás do Arsenal se chamava Herbert Chapman — técnico, gerente, visionário. Conseguiu mudar o nome da estação de metrô mais perto para “Arsenal”, e no campo entendeu que uma reforma na lei de impedimento ia mudar o jogo.

Era negócio recuar um jogador para o centro da defesa, criando a formação WM. As torcidas rivais detestavam. Parecia que o Arsenal ficava muito tempo defendendo — mas ainda assim ganhava os jogos no contra-ataque. E assim o clube que o Chapman construiu desenvolveu uma tara para o pragmático, o sólido e confiável.

O Tottenham, entretanto, tomou outro rumo. Prezava a busca pelo estilo e glória que por sua própria natureza não pode ser regular. É um clube de momentos divinos — o time revolucionário de “Push and Run” de 1950/51, que parece o Guardiola antes de Guardiola, ou o elenco magnífico de uma década depois. O capitão desse time, Danny Blanchflower, tem talvez a voz mais autêntica do espírito do Tottenham — detestava futebol chato e mundano e anunciou uma tática nova — “a gente empata antes do adversário abrir o placar.”

Lembro bem que, no verão de 1980, o Arsenal contratou um atacante jovem e promissor chamado Clive Allen. Só que antes do início da temporada já trocou ele — por um lateral esquerdo! Mais Arsenal, impossível. E depois, claro, Clive Allen acabou brilhando no Tottenham.

Arsenal x Tottenham: a solidez por um lado, o estilo no outro

Obviamente que isso vai bem além do futebol. Trata-se de uma metáfora forte sobre como encarar a vida. Por isso, Tottenham x Arsenal era um clássico tão rico filosoficamente. O meu lado da divisão deve ficar claro. Mudar para o Brasil sem dinheiro, sem emprego, sem conhecer ninguém numa busca maluca para a glória — não seria, tenho certeza, a opção de um torcedor do Arsenal.

Mas nas últimas décadas houve uma mudança, uma ruptura com o passado. No momento em que o Tottenham estava perdido, o técnico francês Arsene Wenger chegou no Arsenal e mudou a identidade do clube. Com astros como Dennis Bergkamp e Thierry Henry, ele até conseguiu transformar num clube (a palavra não quer sair) glamouroso. E hoje em dia o clássico do norte de Londres perdeu muito de seu conteúdo filosófico. Virou uma luta pela supremacia menos especial, mais comum.

Arsene Wenger é diretor de desenvolvimento global de futebol da Fifa - Foto: Icon Sport
Arsene Wenger é diretor de desenvolvimento global de futebol da Fifa – Foto: Icon Sport

Mas a tradição persiste. Hunter Davies, um veterano torcedor do Tottenham, conta uma história deliciosa. Durante um jogo, o pessoal estava fazendo o tradicional “fica de pé se você tem ódio do Arsenal”. Davies percebeu que somente ele e um outro velhinho permaneceram sentados. Ele fitou o outro e falou “sou velho demais para ter ódio.”

O senhor balançou a cabeça. “Tenho outro problema,” confessou. “Sou velho demais para ficar de pé”.

Conclusão — a rivalidade entre Arsenal e Tottenham vai ficar de pé por muitos anos ainda, começando neste domingo.

Tim Vickery
Tim Vickery

Tim Vickery cobre futebol sul-americano para a BBC e para a revista World Soccer desde 1997, além de escrever para ESPN e aparecer semanalmente no programa Redação SporTV. Foi declarado Mestre de Jornalismo pela Comunique-se e, de vez em quando, fica olhando para o prêmio na tentativa de esquecer os últimos anos de Tottenham Hotspur.