No último dia da janela de verão da temporada 2006/2007, o então modesto West Ham chocou o futebol ao anunciar as contratações de Carlos Tevez e Javier Mascherano, duas grandes revelações do futebol argentino, ambos com 22 anos na época. Recém-titulares na Copa do Mundo da Alemanha, a dupla fora campeã brasileira no ano anterior pelo Corinthians e conquistara o ouro olímpico em 2004.
Mas as maiores expectativas recaíam, sem dúvidas, sobre Carlitos Tevez. No Boca Juniors, fora campeão argentino, da Libertadores e da Sul Americana, balançando as redes nas finais das duas copas. Artilheiro dos Jogos Olímpicos de 2004, foi eleito o melhor jogador do Brasileirão 2005. E vencedor do prêmio Rei da América simplesmente três anos consecutivos.
Tevez no West Ham: uma contratação polêmica
Por trás da “negociação de valores não divulgados”, sabia-se que os atletas haviam sido cedidos sem custos. E o motivo era bastante simples. Os direitos econômicos da dupla argentina não pertenciam ao clube paulista. Esses estavam nas mãos de empresas parceiras do clube, comandadas por Kia Joorabchian, dentre as quais a Media Sports Investments (MSI), na figura hoje extinta – ao menos em teoria – do terceiro investidor.
Aproveitando que seu relacionamento com a diretoria corintiana não andava bem, o magnata viu na transferência a oportunidade de utilizar o West Ham como porta de entrada dos argentinos ao futebol europeu. A esperança era de que se valorizassem, para posteriormente lançá-los aos gigantes do continente por vultuosas quantias – jogada que seria executada com notório sucesso.
Para os Hammers, a evidente vantagem de poder contar com os dois jogadores, sem custos transacionais. Por outro lado, não teriam direito à participação financeira em venda futura, tampouco a qualquer poder de decisão sobre transferência dos atletas. Isso é, Tevez e Macherano, agenciados por Kia, teriam liberdade absoluta para futuramente deixar o clube.
A barganha dos destaques argentinos, que já estavam no radar dos clubes ingleses não agradou os rivais da Premier League, tampouco a liga como um todo. Até porque contrariava o regulamento da competição, que previa que os direitos econômicos dos jogadores deveriam estar vinculados a entidades desportivas, e não a terceiros.
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Início conturbado
Em campo, a trajetória da dupla argentina na Inglaterra, de início, também não foi nada fácil. Reflexo, mas também causa, da péssima campanha que o clube fazia sob o comando de Alan Pardew. Apenas uma vitória nas nove primeiras partidas da Premier League, além de eliminação precoce na Copa da Uefa – a atual Liga Europa – com duas derrotas para o Palermo.
Com apenas cinco partidas, Mascherano foi emprestado ao Liverpool na janela de inverno, a partir de autorização especial da Fifa, em meio às investigações de irregularidade contratual. Em novembro, o clube havia sido comprado pelo islandês Eggert Magnusson, por 85 milhões de libras e em poucas semanas Pardew seria demitido, substituído por Alan Cubrshley.
Mas a troca de comando aparentava não ter surtido efeito. Ao final de fevereiro, após 28 rodadas, o clube amargava a lanterna, com apenas cinco vitórias – curiosamente, das quais quatro sem Tevez em campo – e 20 pontos conquistados. Nessa altura, o atacante argentino já contabilizava 19 partidas pelos Hammers, mas nenhum gol marcado, para completa decepção da torcida londrina.
Tevez, enfim
O mês de março seria um divisor de águas para o West Ham na temporada, graças, justamente, ao nosso personagem. A amarga derrota para o Tottenham, por 4 a 3, com direito a virada nos minutos finais, de fato não melhorou a vida do clube na tabela.
Mas foi ali, na 29ª rodada do campeonato, que Upton Park finalmente reconheceu o tal argentino de quem tanto se esperava – duas assistências, um golaço de falta e comemoração nos braços da torcida.
Um grande e necessário alento, diante de uma situação completamente desfavorável. Após a partida, o clube estava a 10 pontos do Manchester City, o primeiro time acima da zona da degola, que ainda tinha um jogo a menos. Até então, a maior diferença que um clube conseguira tirar para fugir do rebaixamento, após 29 rodadas de Premier League, era de cinco pontos, alcançada dois anos antes pelo West Bromwich.
Na rodada seguinte ao épico embate com os Spurs, o West Ham perdia de 1 a 0 para o Blackburn, quando Tevez empatou, de pênalti, minutos antes de Bobby Zamora virar para os Hammers. A primeira atuação marcante da dupla, que se mostraria tão decisiva quando o clube mais precisava. E assim chegava ao fim uma sequência de 11 jogos sem vitória na Premier League.
Contra o Middlesbrough, mais três pontos, garantidos por Tevez já no primeiro tempo, com um gol e uma assistência para Zamora, assegurando o 2 a 0 no placar. E a real sensação de que era sim possível permanecer na Premier League viria uma semana depois, na primeira partida de abril. 1 a 0 sobre o Arsenal, em pleno Emirates Stadium, tento de Zamora.
Em seguida, um balde de água fria. Duas derrotas consecutivas. 3 a 0 para o Sheffield United, rival direto na luta contra o rebaixamento, e dias depois 4 a 1 para o Chelsea, em Upton Park, com um lindo gol de honra de Carlitos Tevez. E o cenário ainda poderia piorar.
No fim de abril, o West Ham foi punido pela conduta indevida adotada nas transferências de Tevez e Mascherano, uma vez que seus direitos econômicos não estavam vinculados a nenhum clube, mas a terceiros (o que fora oficialmente descoberto em janeiro). O clube teria optado por ocultar a natureza da operação, ciente da irregularidade e de que, portanto, não seria aprovada pela Premier League.
Por ameaçar a integridade da competição, o West Ham acabou multado pela liga em 5,5 milhões de libras, em decisão da qual não recorreu. O prejuízo fora baixo, considerado o risco de sofrer redução de pontos na competição. E após a polêmica, a situação de Carlos Tevez foi tida como regularizada, tornando-o apto a disputar a reta final – e decisiva – do campeonato. Apesar do baque, o saldo viria a ser positivo.
O herói brilha na hora certa
Nas últimas quatro rodadas do campeonato, quatro vitórias, oito gols marcados e apenas um sofrido. Ainda em abril, vitórias sobre Everton – 1 a 0, gol de Zamora – e Wigan – 3 a 0, em Wigan. Na penúltima rodada, Tevez foi responsável por dois gols e uma assistência, nos 3 a 1 sobre o Bolton.
Já em 13 de maio, o West Ham chegava a Old Trafford precisando de um empate contra o campeão para sobreviver na Premier League. Com uma equipe mista, visando a final da Copa da Inglaterra, e celebrando a conquista do título, o Manchester United sofreu sua quinta derrota na liga. 1 a 0 para os Hammers e a sobrevivência do clube na elite. Sim, gol dele, o protagonista argentino de nossa história, após jogada de Zamora.
A reação histórica na Premier League 2006/2007 ainda é a mais improvável das 28 edições da liga na luta contra o rebaixamento, ao tirar diferença de 10 pontos em nove rodadas, alcançando sete vitórias. Muitos méritos para Tevez, que anotou sete gols e quatro assistências nas últimas 10 partidas, sendo eleito o jogador do ano dos Hammers.
Na sequência, o argentino iria para o Manchester United. E se a última impressão é a que fica, a torcida do West Ham definitivamente não teria do que reclamar de Carlos Tevez. Contudo, a história não estava terminada.
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O outro lado da história
Se o West Ham escapou dramaticamente do rebaixamento, por óbvio, outro time foi rebaixado em seu lugar, também dramaticamente.
A rodada final se iniciara com três equipes correndo risco de cair para a Championship: West Ham, com 38 pontos, Sheffield United, igualmente com 38, e Wigan, com 35 pontos. Enquanto os Latics necessitavam desesperadamente da vitória, os Blades se contentariam com um mero empate, assim como os Hammers. E o Sheffield poderia até perder, desde que o West Ham também fosse derrotado.
Simultaneamente ao duelo dos Hammers em Manchester, a outra partida decisiva era justamente entre Sheffield United e Wigan, em Sheffield. E o 1 a 1 no placar, até os acréscimos do primeiro tempo, garantia os Blades na Premier League 2007/2008. Mas quis o destino que o Sheffield fosse rebaixado, graças a gol do zagueiro David Unsworth, contratado meses antes – adivinhem – junto ao próprio Sheffield United.
Logo após o rebaixamento em campo, o Sheffield United apelou à Premier League para que não fosse rebaixado, e sim o West Ham, em virtude das comprovadas irregularidades nas transferências de Tevez e Mascherano – sobretudo Tevez, por sua evidente e decisiva interferência no campeonato.
Nas palavras de Kevin McCabe, então presidente do Sheffield, a anterior decisão da Premier League de não punir os Hammers com perda de pontos era um convite à anarquia. No entanto, a liga rejeitou o pedido dos Blades.
Paralelamente, um painel arbitral declarou que os fatos indicavam que uma punição adequada teria incidido sobre a pontuação do clube londrino.
Um ano após a queda, um tribunal independente da Football Association (FA) decidiu em favor do Sheffield United, condenando o West Ham a indenizar o clube por perdas e danos.
Conforme o parecer do tribunal, “não temos dúvida de que o West Ham teria conquistado no mínimo três pontos a menos ao longo da temporada 2006/2007 se Carlos Tevez não tivesse jogado pelo clube.”
Na Championship, o Sheffield sofreu natural e significativa redução em seu orçamento, em relação à Premier League, em função dos inferiores valores repassados por transmissão e patrocínio. Por isso reclamara compensação financeira de 45 milhões de libras, enquanto o tribunal teria fixado indenização em torno de 30 milhões, conforme se especulou à época. Mas os clubes firmaram acordo após a decisão, na quantia de 20 milhões de libras.
Consequências profundas
Os dirigentes dos dois clubes se posicionaram positivamente após o encerramento legal do conflito. Mas esse já havia transcendido e muito os bastidores, longe de ser esquecido. Em 2009, o técnico Neil Warnock, comandante do Sheffield na temporada 2006/2007, declarou publicamente: “Até onde eu sei, eu ainda deveria ser um treinador da Premier League. E acho que também é o caso dos jogadores”.
E a animosidade criou um clima de rivalidade entre os clubes, motivada por rancor das duas torcidas. Se os Blades não se conformavam com o rebaixamento, os Hammers se irritavam com toda a polêmica que rondava Upton Park.
Desde então, foram três confrontos entre as equipes. Duas partidas na atual Premier League, e na Copa da Liga, em 2008, ainda em meio à controvérsia, com o Sheffield eliminando o West Ham em Londres. E nas duas partidas que os Hammers foram mandantes, máscaras de Tevez tomaram as arquibancadas, em clara provocação ao rival.
Ao início da temporada 2008/2009, a FA proibiu oficialmente a figura do terceiro investidor nas negociações dos jogadores de futebol, conhecida como Third Party Ownership (TPO), em resposta à polêmica. A prática, que continuou sendo comum em outras partes do globo, sobretudo na América do Sul, só viria a ser banida pela Fifa em 2015.
Mas o caso já estava para sempre marcado na história da Premier League. Carlitos Tevez foi introduzido ao futebol europeu com sucesso, o West Ham permaneceu na primeira divisão e foi o Sheffield United o rebaixado. Ironia do destino ou não, na temporada 2011/2012, o West Ham estava na Championship e o Sheffield, na League One; Tevez, por sua vez, conquistava sua terceira Premier League.
It has been 13 years since Carlos Tevez helped West Ham avoid relegation and send Sheffield United in to turmoil…
Read how the rivalry was born ahead of the Hammers' first visit to Bramall Lane since then on Friday Night Football 👇
— Sky Sports Premier League (@SkySportsPL) January 9, 2020