O futebol feminino na Inglaterra tem vivido momentos históricos. No último dia 9 de novembro, Inglaterra e Alemanha fizeram um amistoso em Wembley. As alemãs, mesmo fora de casa, venceram por 2 a 1. Mas para as inglesas, apesar da derrota, o resultado acabou sendo o menos importante.
A partida foi vista por 77.768 pessoas em Londres. Foi o maior público da história de uma partida da seleção inglesa. Para se ter uma ideia, o recorde até então era de 45.619 pessoas, contra a mesma Alemanha e no mesmo Wembley, em 2014.
Em se tratando de Grã-Bretanha, o maior público havia sido de 70.584 torcedores, na vitória por 1 a 0 contra o Brasil na fase de grupos das Olimpíadas de 2012. A partida só não conseguiu superar o maior público do futebol feminino na Inglaterra: nas mesmas Olimpíadas de 2012, 80.203 pessoas viram a final entre Estados Unidos e Japão.
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Este não foi o único recorde de público em estádios para as Lionesses este ano. No último dia 5 de outubro, na derrota por 2 a 1 para o Brasil, a Inglaterra viu seu maior público fora de Wembley pela seleção, com 29.238 pessoas no Riverside Stadium, em Middlesbrough.
Em se tratando de clubes, outras marcas também foram atingidas. Nesta temporada da Women’s Super League (WSL), os dois maiores públicos de sua história foram registados – 38.262 pessoas no Tottenham Hotspur Stadium para Tottenham x Arsenal, e 31.213 no Etihad Stadium para o dérbi Manchester City x Manchester United.
Além disso, a sexta rodada de 2019-20 teve um total de 74.247 pessoas nos estádios, recorde da liga. É importante destacar que dois jogos foram realizados em arenas dos times masculinos (Tottenham x Arsenal e Liverpool x Everton), mas o aumento não existe só neles.
Segundo a BBC, nesta temporada, contando apenas os jogos nos estádios dos times femininos, o público aumentou 47% em relação à temporada passada.
Todo esse movimento envolve muitos fatores. Obviamente, o sucesso dentro e fora de campo da Copa do Mundo da França é um bastante importante. Mas existem outras variáveis que levaram a este resultado.
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Para que o público chegue até o futebol feminino, é preciso que, primeiramente, seja feito o fomento às ligas nacionais, impactando diretamente em uma seleção forte. Na Inglaterra, desde 2011 a WSL, organizada pela FA, representa a primeira divisão local.
No começo, apenas oito times faziam parte do campeonato. Hoje, este número mudou para 12. Mas não foi qualquer um que pôde assumir a vaga.
A FA determinou antes da temporada 2018-19 que para receberem suas licenças de participação, as equipes teriam que dar algumas garantias às jogadoras. Isso envolvia um mínimo de 16 horas por semana de atividades nos contratos, além da formação de uma academia para jovens atletas.
Com isso, a liga tornou-se 100% profissional pela primeira vez em 2018. Isso melhorou diretamente as condições de trabalho e as estruturas para as atletas, fazendo com que elas sejam mais valorizadas e reconhecidas, ganhem mais, e o nível técnico naturalmente melhore. Hoje, para muitos, a WSL é considerada a liga mais competitiva do mundo.
Clubes como Arsenal, Manchester City e Chelsea estão entre os melhores da Europa. As Gunners venceram a Uefa Women’s Champions League em 2006/07 e estão nas quartas da atual temporada, enquanto as Blues foram semifinalistas em 2017/18. Já as Citizens, nas últimas três edições da WSL, ficaram sempre no primeiro ou segundo lugar.
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O aumento do nível técnico consequentemente atrai grandes nomes. Hoje, algumas das principais jogadoras do mundo estão jogando no futebol inglês. Na última Copa do Mundo, por exemplo, 48 atletas da WSL foram convocadas por todas as seleções – só a NWSL dos Estados Unidos, com 58, chamou mais.
A contratação mais recente foi uma das principais do futebol europeu em 2019/20: Sam Kerr, anunciada como reforço do Chelsea. É mais uma atleta de alto calibre, se juntando a jogadoras como Ellen White do Manchester City e Vivianne Miedema do Arsenal.
Não foi só o nível que melhorou, mas o engajamento dos clubes também. Nos últimos anos, vemos cada vez mais equipes consolidadas no futebol masculino aderindo ao futebol feminino na Inglaterra.
Os já citados Arsenal, Chelsea e Man City já estavam há mais tempo em destaque. O Liverpool, que chegou a ser campeão nacional em 2013 e 2014, caiu de nível, mas ainda se mantém na primeira divisão.
Times como Everton, Reading e West Ham vem melhorando consideravelmente. E claro, Manchester United e Tottenham, que estrearam entre as mulheres no ano passado pela segunda divisão, e já subiram à elite.
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O investimento destas marcas futebolísticas atrai visibilidade em qualquer país. Hoje, como já comentado acima, todos os clubes do big-6 masculino inglês estão na primeira divisão feminina. Se contarmos também a FA Women’s Championship (segunda divisão), 12 clubes da Premier League competem profissionalmente entre as mulheres.
Para que tais clubes demonstrassem interesse e o nível fosse elevado, um importante ajuste precisou ser feito: no calendário. Entre 2011 e 2016, a liga era realizada no formato anual, de abril até agosto, setembro ou outubro (dependendo da temporada).
A partir de 2017, houve uma mudança significativa, e o calendário passou a seguir o formato do futebol masculino europeu – começando em setembro de um ano e terminando em maio do ano seguinte.
Porém, isso não necessariamente acabava com os problemas. Pelo contrário, criava um novo complicador: com tantas partidas da Premier League e divisões inferiores do futebol inglês masculino acontecendo, como emplacar a WSL no calendário?
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O jeito foi se ajustar da melhor forma possível. A FA definiu que, salvo algumas exceções, o domingo seria o dia do futebol feminino. A grande maioria dos jogos já realizados até agora foram justamente neste dia, em horários próximos pela tarde. Isso cria um hábito importante de acompanhamento dos jogos.
A data FIFA também é um recurso explorado. Como os amistosos entre seleções para homens e mulheres são em períodos diferentes da temporada, as datas sem partidas de clubes masculinos são utilizadas pelos femininos para preencher espaço.
É isto que tem, por exemplo, permitido que estádios como Etihad Stadium, London Stadium, Tottenham Hotspur Stadium, Anfield e Stamford Bridge já tenham sido utilizados para partidas da WSL em 2019/20.
Neste momento, entra outro ponto (e um diferencial em relação a outros países): a divulgação da liga. O trabalho de marketing dos clubes femininos na Inglaterra tem sido muito forte – em especial nas agremiações também tradicionais no futebol masculino, como já citado.
As propagandas e imagens de destaques entre as mulheres nas lojas, produtos e redes sociais dos clubes ganham cada vez mais abertura, as craques dividem espaço com os craques e se tornam mais reconhecidas pelos torcedores.
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Dentro dessa divulgação, também entra o fator essencial das transmissões. A FA disponibilizou nesta temporada a transmissão de todos os jogos do campeonato gratuitamente pelo seu aplicativo, o FA Player, para qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo (exceto no Reino Unido, onde alguns jogos são exclusivos das TVs).
Ademais, o app transmite os jogos da seleção inglesa, e dispõe de entrevistas, curiosidades, melhores momentos, VTs dos jogos e conteúdos especiais desenvolvidos para que o público conheça cada vez mais a WSL.
Em um cenário onde o futebol feminino na Inglaterra ainda está muito atrás do masculino (ainda mais se imaginarmos que a Premier League é o maior campeonato do mundo), todas estas ações são importantíssimas. Hoje em dia, com um novo perfil de consumo, é o produtor quem precisa levar tal conteúdo ao público. E isso a FA vem fazendo bem.
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Tanto que o esforço se reflete em retorno financeiro – e não podemos nos enganar, sem este retorno todo o trabalho não tem sucesso. Neste ano, o banco Barclays assinou um contrato de três temporadas com a WSL, com o valor recorde de 10 milhões de libras de patrocínio.
Ainda foi organizada a criação de um fundo que será usado para premiações. O valor total será de 500 mil libras por temporada, dividido para todas as equipes de acordo com as posições na liga. A campeã recebe mais, seguida pela vice, e por aí vai.
Tudo isso eleva bastante a qualidade e a estrutura da liga, atrai bom público aos clubes e à seleção, ajuda a revelar bons nomes para as Lionesses, chama mais patrocínios fortes, gera retorno financeiro e faz o nome do futebol feminino crescer exponencialmente.
Após um período de empolgação com a Copa do Mundo, as entidades devem entender que, sabendo usar isso, os resultados só tendem a ser positivos. E a Inglaterra, sem dúvida alguma, é um exemplo neste sentido.