A primeira entrevista que fiz quando comecei a trabalhar na Inglaterra foi com Harry Kane. Eram dez minutos de conversa no belíssimo CT do Tottenham. Na época, eu tinha uma câmera semiamadora e o plug do microfone não funcionava direito.
Eu estava todo atrapalhado para montar o tripé em um espaço muito pequeno, com o assessor me pressionando. E, confesso, estava também nervoso, já que fazia parte de uma equipe de um homem só: precisava fazer a entrevista e, ao mesmo tempo, me preocupar com o enquadramento, a luz e áudio, situação que era novidade para mim. Kane, que antes tinha falado com a Sky Sports (principal emissora do Reino Unido), estava sentado, esperando.
Ao me ver fazendo tudo sozinho, ofereceu ajuda. Respondi meio sem jeito que não precisava, e depois de dois ou três minutos, que para mim pareceram uma eternidade, finalmente sentei e conduzi a entrevista. A conversa foi ótima, por sinal.
Cerca de dois anos depois, eu e outros jornalistas brasileiros estávamos na disputada zona mista no Wembley, depois de um jogo (não me lembro qual) das eliminatórias para a Eurocopa. Pedimos para o assessor da seleção inglesa trazer um jogador para falar com a gente, já que os ingleses não costumam parar muito para conversar com a imprensa. E, quando o fazem, é claro, dão preferência para os repórteres ingleses. Kane saiu, falou com os jornalistas ingleses lá no início do corredor, e depois passou reto por todo mundo.
O assessor estava ao lado dele, e quando passou pela gente, fizemos aquele gesto com a cabeça e as mãos, do tipo: “Ele não vai falar com a gente? Você tinha prometido trazer alguém”. O assessor encostou no ombro do Kane, conversaram por alguns segundos, sem parar de andar. Quando chegaram lá no final da zona mista, Kane parou e olhou para trás. O assessor apontou na nossa direção. O atacante inglês balançou a cabeça afirmativamente, voltou para o meio da zona mista e falou com os jornalistas. Brasileiros!
As duas situações acima, podem parecer banais. Bestas, até. Mas depois de anos e anos cobrindo futebol, afirmo sem nenhum medo: pouquíssimos jogadores europeus (para não dizer nenhum) fariam o que Kane fez. Ainda mais, um atleta badalado, estrela do futebol mundial, como ele.
É por atitudes como essas que Kane é idolatrado. Não só pelos torcedores do Tottenham, mas pelos ingleses de maneira geral. Todos reconhecem nele um profissional de verdade, que se dedica inteiramente nos treinos, que respeita a camisa que veste, que se preocupa como o que e como falar, se expressar. Tem a noção perfeita da responsabilidade que é representar o clube/seleção que defende.
Harry Kane é tão grande, que os torcedores do Tottenham deram a ele o direito de escolher o que prefere. Já vimos diversas vezes fanáticos queimando camisas e fazendo ameaças aos ídolos que decidem sair do clube. Isso não aconteceu, e não vai acontecer em Londres. A torcida dos Spurs sabe que Kane fez tudo o que podia pelo clube.
Todos entendem que ele esperou, por muitos anos, a diretoria construir uma equipe que pudesse competir por títulos. E Kane nunca reclamou em público, nunca desmereceu o clube. Nunca fez corpo mole.
No fundo, todos sabem que a diretoria é a maior culpada pela saída de um dos maiores ídolos da história do clube. Mesmo sem disputar a Champions League, e mesmo sabendo que é quase impossível ganhar a Premier League nessa temporada, ele ainda pensou em ficar. Hesitou, quase desistiu. Chegou a se empolgar com o ainda curto trabalho do novo técnico. Kane ama o clube!
Mas, aos 30 anos, é mais do que compreensível que sonha em ganhar títulos. E no Bayern de Munique, com certeza isso irá acontecer. Harry Kane é o maior artilheiro da história do Tottenham, com 280 gols.
Estamos falando de uma entidade com 140 anos de história. É o segundo maior artilheiro da Premier League, um campeonato que já teve nomes como Alan Shearer, Thierry Henry, Van Persie, Sergio Aguero, Van Nistelrooy, Didier Drogba, Wayne Rooney e Cristiano Ronaldo. E Kane é tão craque que se despede do clube ainda com 64 assistências.
O Tottenham recebe mais de 100 milhões de euros por um atleta de 30 anos que só tinha contrato até o fim da temporada. O Bayern compra o camisa 9 que tanto precisava e que vai garantir muitos e muitos gols pelos próximos anos. E Kane, finalmente, terá um time à altura de sua qualidade.
Sim, ainda é muito difícil imaginar o Tottenham sem Harry Kane. Aliás, difícil também imaginá-lo com a camisa de outro clube. Mas tenho absoluta certeza que os torcedores do Tottenham desejam que ele jogue muito na Alemanha. Afinal, queremos o bem de todas as pessoas que respeitamos e gostamos.
Harry Kane será, para sempre, one of our own.