Atenção: Esse texto contém relatos fortes relacionados a assédio, ansiedade, depressão, suicídio e outros transtornos de saúde mental, o que pode ser um gatilho para algumas pessoas.
Maddy Cusack foi encontrada morta na casa de seus pais em Derbyshire, na área rural da Inglaterra, no dia 20 de setembro de 2023. Ela era jogadora, capitã e chefe da equipe de marketing do Sheffield United. Porém, segundo a acusação de seus familiares, o ambiente de trabalho era tóxico e causou danos a sua saúde mental, o que contribuiu para a atleta de 27 anos tirar a própria vida.
Jonathan Morgan, então treinador do Sheffield United, foi apontado pelos familiares como o principal culpado pelos problemas enfrentados por Cusack. Mesmo com a morte da jogadora, Morgan permaneceu no cargo e foi demitido apenas em fevereiro do ano seguinte após novas denúncias de outras atletas.
Maddy não é um “caso isolado”. Outras jogadoras da Women’s Super League (WSL) já relataram publicamente problemas relacionados à saúde mental.
Mais de 150 jogadoras que disputaram a Copa do Mundo de 2023 afirmaram em uma pesquisa que não recebem apoio psicológico, segundo Alex Calcin, chefe de estratégia para o futebol feminino da FIFPro — sindicato global de atletas — em entrevista ao “The Athletic”.
A saúde mental no futebol feminino inglês, especificamente, enfrenta graves problemas. Na temporada 2022/23, um levantamento da Associação de Jogadores Profissionais (PFA) apontou que apenas 26% das jogadoras da WSL se sentem confortáveis para falar sobre o assunto dentro dos clubes.
Na pesquisa, 23% das jogadoras da principal liga de futebol feminino da Inglaterra declararam que as questões financeiras são as suas maiores preocupações. Outro número impactante é que 40% disseram já ter sofrido com comentários abusivos nas redes sociais.
Vale reforçar que a saúde mental de todo atleta é afetada por causa da pressão do esporte de alto rendimento, mas há fatores específicos quando falamos do futebol feminino, já que ainda se trata de um meio muito machista.
Em entrevista à PL Brasil, Andreia do Couto Garbin, psicóloga e professora de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP), justifica esse cenário usando como exemplo os xingamentos proferidos pelos torcedores. Todo jogador de futebol pode ter sua saúde mental prejudicada por causa disso, mas quando falamos de determinados recortes sociais, “que envolvem raça, etnia e gênero”, há um peso maior.
Em outras palavras, os insultos ouvidos por um jogador inglês branco definitivamente são mais “amenos” que os ouvidos por jogadoras ou atletas negros e imigrantes.
— Hoje, temos estudos mostrando que certos fatores se entrelaçam, se apresentam de modo interligado. Veja como os atletas são xingados por torcidas. Nós temos vários fatores aí de preconceito social muito importantes, por exemplo. Tudo isso cabe também para pensar como esses fatores propiciam ou agravam situações de saúde mental.
O caso de Maddy Cusack
Desde o anúncio da morte da jogadora, uma “guerra” entre a sua família, WSL e clube foi iniciada. E, mais de um ano depois, ainda é preciso falar sobre Maddy Cusack.
Sete dias depois da divulgação da notícia, os pais de Maddy apresentaram uma queixa oficial para a Federação Inglesa (FA). Eles alegam que a jogadora se sentia marginalizada e sentia uma “antipatia pessoal” de seu então treinador Jonathan Morgan.
Maddy já havia trabalhado com ele no Leicester em 2019. A relação com o treinador foi o motivo para que ela deixasse o clube porque se sentia perseguida, segundo David e Deborah, pais da atleta. Eles se reencontraram como adversários em um jogo entre Sheffield e Burnley e os familiares alegam que o técnico chamou Maddy de “psicopata”.
Depois da contratação de Morgan pelo Sheffield United em 2023, Maddy ficou preocupada que a “história se repetiria”, segundo a família da jogadora. Eles acusam o treinador de ter tirado a atleta do time alegando que ela estava acima do peso. Ao “The Athletic”, David Cusak declarou que sua filha estaria viva caso o técnico não fosse contratado.
O reencontro com Morgan causou ansiedade em Maddy. Ela voltou a morar com os pais e recebeu medicamentos prescritos.
Após a morte da jogadora, o Sheffield United iniciou uma investigação independente. Morgan negou todas as acusações e declarou que as denúncias eram infundadas. Na época, ele afirmou ao clube que sempre tentou ser uma influência positiva para Maddy e rebateu a acusação de que teria dito a ela que estava acima do peso, mas que precisava melhorar o condicionamento físico.
Novas denúncias e demissão de Jonathan Morgan
Depois de nove semanas de investigações, o Sheffield United concluiu que “não havia provas de irregularidades” e Morgan permaneceu no comando técnico.
No final de janeiro, a FA abriu uma investigação sobre o caso e uma semana depois, no início de fevereiro, o Sheffield United anunciou a demissão do treinador.
Entretanto, a decisão do clube veio após novas denúncias contra o treinador. Segundo o “The Athletic”, ele se relacionou com uma jogadora menor de idade — cuja identidade não foi revelada — durante a sua passagem pelo Leicester em 2021. Na época, ela tinha 16 anos e ele estava na casa dos 30.
Ao site inglês, a mãe da jovem jogadora afirmou que o treinador se aproveitou de sua posição de poder. A atleta disse que recebeu tratamento especial e presentes antes de iniciar a relação.
— Às vezes, ele dizia coisas estranhas que ficavam na minha mente, como: ‘Quando você for mais velha, sei que você será uma mulher muito bonita’. Ele disse que tínhamos que manter isso em segredo porque ele era muito voltado para a família e que seu pai, em particular, não aprovaria — declarou a jogadora ao “The Athletic”.
Na quarta-feira (13), o “The Athletic” divulgou que uma jogadora, cuja identidade não foi revelada, fez uma denúncia a diretoria do Sheffield United no final da temporada 2022/23, meses antes da morte de Cusack. A atleta alegou que o desrespeito de Morgan pelo bem estar das jogadoras poderia ser prejudicial para todas.
— Independentemente do impacto que as ações de Jonathan Morgan tiveram sobre mim, estou preocupada que haja um risco para as outras, particularmente jogadoras mais jovens que podem não falar ou que podem ser vítimas desses comportamentos ‘de valentão’. Eu sei com certeza que não sou a primeira a ser submetida a um tratamento ruim de Jonathan e sinto fortemente que não serei a última — relatou a jogadora.
Segundo a reportagem, o Sheffield United ofereceu à jogadora um acordo financeiro, mas incluiu um acordo de confidencialidade para que ela não falasse com a mídia e revelar publicamente os detalhes da denúncia sobre os comportamentos de Morgan.
A investigação da Federação Inglesa segue em andamento. Um ano depois, a família de Maddy ainda busca respostas e cobra mudanças no futebol inglês.
— Se as coisas não mudarem, haverá outra Madeleine (Maddy). Pode não ser este ano, pode não ser no ano que vem, mas haverá outra Madeleine. Isso é errado e as pessoas deveriam estar desesperadas para garantir que isso não aconteça novamente — contou Deborah Cusack ao “Daily Mail”.
As ofensas nas redes sociais
Jogadoras também são figuras públicas e, com o surgimento das redes sociais, ficam mais expostas às ofensas. Na pesquisa realizada pela PFA no ano passado, 40% das atletas da WSL afirmaram que já sofreram abuso online — os famosos xingamentos nas redes sociais — que trouxeram preocupações com sua segurança pessoal.
Fran Kirby, atualmente no Brighton, desabafou sobre um momento de sua sua carreira em que passou a receber comentários nas redes sociais sobre a sua forma física. “Eu tentei parar de me alimentar tanto que isso afetou meu desempenho e como me sinto”, afirmou a meia.
— Recebi comentários de pessoas dizendo: ‘Fran jogou muito bem, mas ela está grande hoje’. Eu fiquei, tipo: ‘Por que esse comentário é necessário?’. Não deveria importar qual é o formato do meu corpo — relatou Kirby à “BBC” em janeiro deste ano, quando ainda jogava pelo Chelsea.
A violência virtual afeta diretamente a dignidade das jogadoras e principalmente a autoestima da atleta. Consequentemente, o rendimento em campo também pode apresentar queda, conforme explica Andreia Garbin.
— São fatores que afetam a dignidade humana, então são fatores destrutivos. A discriminação, preconceito, xingamento, ofensa são destrutivos e tendem a minar a autoestima, a própria autoimagem.
A FA está fazendo o suficiente pela saúde mental das jogadoras?
A Federação Inglesa (FA) fechou uma parceria em 2018 com a Mind (ONG da Inglaterra voltada para a saúde mental), que durou até 2022. Isso rendeu a criação do “On Your Side”, um projeto para a realização de palestras para falar sobre a saúde mental e levantar fundos para a ONG, com acesso para todos os jogadores da Premier League, WSL e EFL.
Todos os atletas da Inglaterra também têm acesso a uma rede com mais de 200 conselheiros da Sporting Chance Clinic (organização de suporte à saúde mental para atletas) desde o início da parceria com a Mind. Essa colaboração permanece mesmo após o fim do projeto com a ONG. Os jogadores possuem uma linha 24h por dias, sete dias por semana, por telefone, e-mail ou atendimento residencial.
A Federação Inglesa exige que os todos os times tenham atendimento com um psicólogo apenas nas categorias de base.
Mas as medidas e a forma que os clubes abordam o tema são suficientes? De forma simples e direta, não.
— Colocar à disposição um serviço ainda é pouco para cuidar da saúde mental porque nós precisamos tratar disso no cotidiano. Nós precisamos de pessoas, de profissionais capacitados. Então, uma série de medidas leva a um contexto de mudanças. É uma iniciativa louvável, mas se mostra insuficiente — opina Garbin
A luta de Molly Bartrip e o Create the Space
Em fevereiro de 2022, a zagueira Molly Bartrip, do Tottenham, escreveu um forte, corajoso e sensível relato sobre a sua luta contra a depressão.
Tudo começou quando ela tinha 13 anos e sofreu uma lesão no tendão um dia antes de sua estreia no time juvenil da seleção da Inglaterra durante um treino realizado na Holanda. Isso abriu uma porta na sua mente e ela passou a lutar contra anorexia, depressão e crises de ansiedade.
— Não era como se eu tentasse lutar contra o que quer que estivesse acontecendo comigo. Eu não tentei comer. Eu apenas deixei piorar cada vez mais. Eu me tornei completamente fria para qualquer um que tentasse ajudar. Eu disse e fiz coisas das quais me arrependerei pelo resto da minha vida, para proteger meu segredo — destaca Bartrip, em um relato publicado no site “The Players Tribune”.
Bartrip recebeu ajuda dos familiares e amigos, mas trava uma batalha com a saúde mental que dura anos. Hoje, como jogadora dos Spurs, ela está bem e quer utilizar a sua voz para mudar o futebol.
— Sou uma jogadora de futebol profissional. Jogo pelo Spurs. Estou saudável e feliz. Mas eu poderia facilmente não estar aqui. Todo mundo sabe que quando você está doente, quando você está lutando contra uma doença mental, você precisa de todos. Você precisa de todo o apoio que puder obter, quer você pense que precisa ou não.
A zagueira inglesa é uma das apoiadoras do “Create the Space”, ao lado de Ben Chilwell, do Chelsea, Beth Mead, do Arsenal, e Viviane Miedema, do Manchester City.
O “Create the Space” é um programa do Common Goal, uma organização de caridade criada por Juan Mata, ex-jogador de Manchester United e Chelsea. O programa visa criar um espaço dentro do futebol para que atletas se expressem sobre a saúde mental, por meio de ações comunitárias e eventos.
— Saúde mental não deveria ser um assunto proibido, deveria ser tão aberto quanto falar de uma lesão. Agora considero minha vulnerabilidade como uma força. Quero que o futebol se torne um espaço seguro e espero que, do nível mais alto até a base, seja isso que possamos alcançar com o Create the Space — Molly Batrip em entrevista ao site do “Common Goal”.
O que a Federação Inglesa e os clubes precisam fazer
Na visão de Garbin, não há uma solução única para os clubes e a Federação enfrentarem esse problema, mas um conjunto de medidas. Ela cita que existem formas de os times abordarem o tema da saúde mental, como em falas coletivas ou individuais, durante os treinamentos ou em momentos de descontração.
Para a mudança acontecer, a profissional acredita que o primeiro passo é que tanto clubes como Federação realizem medidas de gestão de cuidados de pessoas, como no funcionamento de uma empresa. Então, nesse contexto, cada clube precisa criar mecanismos institucionais que possibilitam o espaço para o diagnóstico de transtornos mentais e avaliar as medidas necessárias para tratá-los.
— Nós não falamos que quem cuida de saúde mental é o psicólogo e o psiquiatra. Nós falamos que a saúde mental diz respeito a todo profissional. Ela diz respeito ao professor, ela diz respeito à chefia. Precisamos compreender a saúde mental e lidar com ela de forma multidisciplinar, integrando a abordagem, porque nós podemos criar vínculos diferentes — acrescenta Andreia Garbin.
Mas as ações vão além da institucionalidade, como explica a professora Garbin. É preciso criar espaços onde as atletas se sintam confortáveis para falar sobre o assunto e educar os profissionais do clube para reconhecer sinais de que algo não está certo, como choro, isolamento ou atrasos constantes.
— A escuta atenta e qualificada leva à identificação dos problemas, que às vezes será só o desabafo, vindo com a resposta ‘é verdade’ e seguindo a conversa. A preparação dos profissionais para essa escuta e não para a minimização, porque às vezes a gente minimiza com apenas aquele tapinha no ombro, é primordial — complementa Andreia Garbin.
Toda preparação dos clubes passa pela compreensão dos diferentes cenários em que o ser humano vive — como no caso do futebol feminino, a questão do gênero. Esse papel vai além do treinador, mas precisa ser trabalhado e desenvolvido em todos os setores de um clube.
— É possível cuidar. É possível que nós tenhamos outras iniciativas criativas. A gente espera que surjam sempre novas possibilidades para relações mais afetivas, respeitosas e o afeto é um afeto solidário, afeto humano, é que nós queremos para a vida — finaliza Andreia Garbin.
Busque ajuda psicológica
Se você está se sentido solitário ou precisa conversar de forma sigilosa, sem julgamentos, críticas ou comparações sobre alguma situação difícil, procure ajuda. O CVV (Centro de Valorização da Vida) é um serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para as pessoas que queiram e precisem conversar. Tudo é sob total sigilo e anonimato.
Você pode entrar em contato com o CVV pelo telefone 188.
Você também pode procurar apoio nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e nas UBS (Unidades Básicas de Saúde) de sua cidade. Esses serviços públicos prestam trabalhos de amparo à saúde mental da população.
O disque saúde pode ser acionado pelo telefone 136.