Manchester United: a história do último rebaixamento

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A ideia de que o Manchester United poderia fazer uma temporada tão ruim ao ponto de sofrer um rebaixamento na Premier League parece risível. Trata-se de um dos maiores clubes do mundo e um dos mais valorizados.

A diferença de potencial de investimento para praticamente todos os outros participantes do campeonato provavelmente impediria tamanha calamidade.

A grandeza do United não foi suficiente para evitar a queda na temporada 1973-74. A diferença de poderio financeiro entre os clubes talvez não fosse tão grande naquela época, mas os Red Devils já eram muito grandes.

Donos de um estádio espetacular, torcida numerosa e apaixonada, grandes ídolos e conquistas importantes. Aquele rebaixamento do Manchester United foi marcante para todo o futebol inglês.

Não foi o primeiro do Manchester United, mas foi, com certeza, o mais importante. Por três motivos, basicamente. Primeiro porque foi o último. Segundo porque aconteceu apenas seis anos após um dos maiores títulos de sua história, a Copa Europeia em 1968.

E terceiro porque desencadeou uma renovação dentro do clube que foi fundamental para consolidá-lo no topo do futebol inglês e mundial desde então.

Essa história é contada pelo ótimo documentário “Too Good To Go Down” (“Grande Demais para Cair”, em tradução livre), lançado em novembro de 2018 na Inglaterra (sem lançamento confirmado no Brasil).

A queda começou do topo

O Manchester United sofreu seu primeiro rebaixamento no Campeonato Inglês pela primeira vez em 1894, apenas oito anos após ter disputado sua primeira partida competitiva e quando ainda se chamava Newton Heath (nome original quando de sua fundação em 1878).

Depois disso caiu em 1922, 1931 e 1937. Então emendou mais de 30 anos seguidos na elite, com cinco títulos da primeira divisão, duas Copas da Inglaterra, três Community Shield (Supercopa da Inglaterra) e uma Copa Europeia (hoje chamada de Champions League).

Um dos principais nomes desse período de vitórias (especialmente nas décadas de 1950 e 1960) foi Sir Matt Busby. Ele foi o treinador do United em todos os títulos citados acima.

Ele foi responsável pela montagem do time que ficou conhecido como “Busby Babes”, composto por jogadores jovens e de muito talento. Foi um dos pilares da reconstrução da equipe após o Desastre de Munique, em 1958 (quando o avião do clube caiu próximo à cidade alemã matando oito atletas e deixando vários outros feridos – inclusive Busby).

Um ano após o Manchester United derrotar o Benfica por 4 a 1 na final da Copa Europeia de 1968 em Wembley (tornando-se o primeiro time inglês a vencer o torneio), Matt Buby decidiu aposentar-se da função de treinador. Ele assumiu cargo de diretor no clube.

Começou então uma busca pelo substituto de Busby. Uma busca que se mostraria muito mais complicada do que o clube e seus torcedores poderiam imaginar.

Aposta em casa: o período Wilf McGuiness

O primeiro escolhido para suceder Busby foi Wilf McGuiness. Apontado por Matt, ele foi jogador do Manchester United e da seleção inglesa. Encerrou a carreira precocemente, aos 22 anos, após fraturar a perna.

Passou então a buscar a carreira de treinador. Fez parte da comissão técnica da seleção inglesa campeã da Copa do Mundo de 1966. Mais tarde assumiu cargo de auxiliar no Manchester United e passou a treinar equipes de base do clube.

Promover alguém de dentro para o cargo de treinador da equipe principal foi considerado algo revolucionário na época. Havia uma certa crença de que o United possuía todas as ferramentas necessárias para dar sequencia às suas conquistas.

O elenco contava com grandes jogadores, como Bobby Charlton, George Best e Denis Law. McGuiness teria o conhecimento necessário sobre o time para operar essas ferramentas e subir garotos da base para complementar o grupo.

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Acontece que os grandes jogadores já não estavam entregando grandes atuações com tanta constância. Best tinha comportamento extracampo cada vez mais complicado.

Era necessário iniciar uma renovação. McGuiness era muito inexperiente (tinha menos de 32 anos quando assumiu o posto) e não soube conduzir o processo da melhor maneira.

Willie Morgan, atleta da equipe naquela época, avalia no documentário “Too Good To Go Down” que o jovem técnico tentou forçar uma renovação drástica. Ele tirou vários jogadores do time titular, incluindo Charlton e Best, para colocar garotos que ainda não estavam prontos.

Wilf foi perdendo o comando do vestiário e a confiança de torcida e diretoria. Em dezembro de 1970, na metade de sua segunda temporada à frente da equipe principal, ele foi demitido. Matt Busby assumiu interinamente para tirar os Red Devils da parte de baixo da tabela e terminar em 8º lugar.

Oscilação e perda de vestiário: o período Frank O´Farrell

Para a temporada 1971-72 o United decidiu apostar em um técnico um pouco mais experiente. Frank O’Farrell veio do Leicester City, clube que dirigiu por duas temporadas na segunda divisão inglesa.

Na primeira, terminou em terceiro e levou o time à final da Copa da Inglaterra, sendo derrotado pelo Manchester City. Na segunda conquistou o título e o acesso à primeira divisão.

Seu começo no Manchester United foi bom. O time chegou a liderar o campeonato. Mas a boa fase durou apenas até o Natal. Depois disso foram muitas derrotas e os problemas dentro do vestiário voltaram a aparecer.

George Best reclamava publicamente da defesa, envelhecida, que sofria muitos gols. O’Farrell decidiu tirá-lo da equipe titular para um jogo contra o Wolverhampton. Essa decisão pegou muito mal, especialmente após a derrota por 3 a 1 em pleno Old Trafford.

Um problema relevante que havia no Manchester United, e é debatido no documentário “Too Good To Go Down”, era a atuação de Matt Busby como general manager.

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Ele ainda era muito próximo e tinha muito carinho pelos jogadores que havia treinado e com os quais havia conquistado grandes títulos. Não era incomum que esses jogadores, quando tinham algum problema com o técnico, o procurassem para reclamar. Busby, ao invés de bancar as decisões de seu treinador, costumava dar razão para os atletas.

Na metade final daquele campeonato o United perdeu 11 de seus 18 jogos e terminou, novamente, em 8º lugar. Ao final da temporada George Best chegou a anunciar sua aposentadoria, aos 26 anos. Doze dias depois mudou de ideia e seguiu no clube.

Frank O’Farrell permaneceu no comando para a temporada 1972-73. Logo no início tomou a decisão de colocar Bobby Charlton na reserva. Não deu certo. Foram muitas derrotas e logo o Manchester United se viu entre os últimos colocados no campeonato.

Uma das partidas mais marcantes daquela temporada (e também a derradeira de O’Farrell no United) foi uma visita ao Crystal Palace, em Londres, em dezembro de 1972.

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O time londrino era um concorrente direto na luta contra o rebaixamento. Os Red Devils foram completamente dominados e humilhados em uma derrota por 5 a 0.

Jornais chamaram aquele de um dos dias mais tristes da história do Manchester United. Críticas não foram poupadas a Busby e Louis Edwards, o presidente do clube.

Tommy Docherty, então treinador da seleção escocesa, estava no estádio assistindo ao jogo. Como ele mesmo revelaria, Busby o chamou para conversar ali mesmo, definindo que ele substituiria Frank O’Farrell. O anúncio oficial foi feito dias mais tarde. O’Farrell era padrinho de dois dos filhos de Docherty.

Docherty teve impacto positivo na equipe. Ele conseguiu salvar do rebaixamento, terminando o campeonato em 18º lugar. Mas havia muito trabalho a ser feito para a temporada seguinte.

O clube decidiu iniciar uma renovação. Bobby Charlton e Denis Law foram transferidos. Um dos mais importantes jogadores da história do United, Law ficou sabendo de sua transferência para o Manchester City pela imprensa. Algo que o deixou chateado. Ele ainda seria um personagem importante para o time naquela temporada.

George Best havia decidido, mais uma vez, aposentar-se. Mas o começo ruim dos Red Devils no campeonato fez com que Matt Busby o convencesse a voltar.

As atuações de Best já não convenciam. Seu comportamento pouco profissional também não ajudava. Após não ser convocado para um jogo da FA Cup ele finalmente deixou o clube em definitivo.

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Ficou claro, desde o início daquele campeonato, que o United brigaria contra o rebaixamento. No último dia de transferências de meio de temporada, com o time já na lanterna, Docherty tentou uma cartada derradeira. Contratou o meio-campista Jim McCalliog, do Wolverhampton.

Em “Too Good To Go Down”, McCalliog afirma ter ficado chocado com o clima que encontrou no vestiário em Manchester. “Não havia líder e a tensão era enorme”, disse.

Com McCalliog o United chegou a conquistar três vitórias seguidas, já em abril de 1974. Mas o empate contra o Southampton (concorrente direto) e a derrota para o Everton significaram que uma vitória contra o Manchester City, na penúltima rodada, era uma obrigação.

Em um Old Trafford completamente lotado, o clássico de Manchester manteve-se empatado em 0 a 0 até os 36 minutos do segundo tempo. Foi então que Denis Law, o ídolo do United que havia sido informado de sua transferência do clube pela imprensa, no início da temporada, marcou um gol de calcanhar.

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Law não comemorou. Pelo contrário, ele parecia visivelmente triste após o gol. Torcedores invadiram o gramado e o juiz determinou o fim da partida. O Manchester United estava rebaixado com uma rodada de antecedência.

Em entrevistas, Law sempre refutou ter sido o responsável por decretar o rebaixamento de seu ex-clube. De fato, a vitória do Birmingham contra o Norwich e o empate do West Ham contra o Liverpool, naquela mesma rodada, já eram o suficiente para rebaixar o United, independente do resultado do clássico.

Mas o gol de calcanhar de Law, em Old Trafford, segue sendo a imagem mais icônica daquela campanha de queda.

“Eu morri mil mortes com aquele rebaixamento”, disse Tommy Docherty. “Eu ainda acho que éramos muito grandes para cair, mas caímos e não podemos argumentar contra isso”, completou.

O Manchester United terminou o campeonato em 21º lugar (penúltimo), com 32 pontos. O campeão foi o Leeds, com 62 pontos.

Diferente de episódios anteriores de rebaixamento, em 1974 o Manchester United já era consolidado, e reconhecido, como um dos maiores clubes do mundo. Tinha estrutura, títulos, dinheiro e grandes atletas. O suficiente para não ter que passar por um vexame como aquele.

Decisões equivocadas, técnicas e administrativas, levaram a seguidas temporadas muito fracas e, finalmente, à queda para a segunda divisão. O Manchester United não pareceu ser muito grande para cair.

O único caminho é para cima

Após a queda o momento era de mudanças. Não na comissão técnica. Tommy Docherty foi mantido para comandar a reestruturação do futebol do Manchester United. O atacante Stuart Pearson, do Hull City, foi a principal contratação para a disputa da segunda divisão.

Mais do que simplesmente voltar à elite do futebol inglês, era preciso que o time voltasse a ter confiança para jogar “ao modo United”. Ofensivamente, com velocidade e sempre buscando dominar os adversários.

Docherty trabalhou para isso e os resultados vieram. O título da segunda divisão foi conquistado com facilidade, devolvendo entusiasmo aos torcedores, que acompanharam a equipe por todo o país, nas partidas fora de casa.

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Logo na primeira temporada de volta à primeira divisão, Docherty e seus comandados conseguiram um ótimo 3º lugar no campeonato, além de um vice-campeonato da FA Cup. No ano seguinte veio a conquista da Copa da Inglaterra.

O Manchester United nunca mais correu risco de queda e ainda viria a conquistar inúmeros títulos, mantendo-se como um dos maiores do futebol mundial.

Tommy Docherty, por outro lado, acabou deixando o United pela porta dos fundos. Após a conquista da FA Cup, em 1977, descobriu-se que ele mantinha um caso amoroso por mais de dois anos com a esposa de um membro de sua comissão técnica (fisioterapeuta). Alegando violação dos termos de conduta, o clube decidiu por demiti-lo.

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Bruno Desidério

Jornalista. Paulista que mora no Rio de Janeiro. Futebol e música são meus negócios