Tim Vickery: sucesso ‘quase inacreditável’ da Premier League é o ‘casamento’ entre o velho e o novo

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O sucesso da Premier League e, obviamente, um triunfo com a forte colaboração da televisão. O que está pagando os salários astronômicos das estrelas multinacionais ou bancando os estádios maravilhosos não é somente a economia inglesa, cada vez mais precária — são, em grande parte, as vendas globais dos direitos de transmissão. O mundo quer desfrutar do show e consegue através da telinha.

Impressionante, então, é como o futebol inglês historicamente era tão resistente, e até hostil, para a mídia eletrônica — e não somente a televisão. Na minha infância, adolescência e até como jovem adulto, nem o rádio transmitia o jogo inteiro. Fazia somente o segundo tempo, devido ao medo dos clubes de perder bilheteria.

Jogos ao vivo na televisão eram uma raridade preciosa

Somente com a Copa do Mundo a cada quatro anos para trazer abundância. A partir do meu primeiro jogo — a final da FA Cup em 1971 — dá para lembrar claramente todos os jogos que passaram ao vivo, porque eram tão poucos; a final da FA Cup e da Liga dos Campeões (como é chamado atualmente), às vezes a Recopa também, e algumas poucas partidas da seleção, sempre incluindo o encontro anual entre Inglaterra e Escócia. E só. Mais ou menos de cinco a sete jogos por ano. Fora isso, só compactos breves.

Lentamente, e com enormes doses de desconfiança, começou a mudar 40 anos atrás. Em 1983 houve um acordo para finalmente pisar em terra proibida e transmitir durante a temporada uns 10 jogos da primeira divisão. 

A gente não sabia, nem sonhava, mas quando a galera foi para o sofá assistir Tottenham x Nottingham Forest no dia 2 de outubro, as portas para um novo mundo estavam abrindo.

Nem todos ficaram felizes. O então técnico do Tottenham, Keith Burkinshaw, era um velho romântico e detestava as interferências da modernidade. Ficou bem incomodado com a capacidade do televisão de mudar o horário do jogo. No final da temporada, depois de conquistar a Copa da Uefa (hoje Liga Europa), renunciou, reclamando que “antigamente tinha um clube do futebol ali.”

Felipe ganha de Gabriel Magalhães pelo alto em partida entre Nottingham Forest e Arsenal - Foto: PA Images / Icon Sport
Felipe ganha de Gabriel Magalhães pelo alto em partida entre Nottingham Forest e Arsenal – Foto: PA Images / Icon Sport

Uma olhadinha para o futuro — e um modelo muito mais baseado em cima de negócios do que cultura e tradição — deixava Burkinshaw apavorado. Mas, de qualquer maneira, o futuro estava chegando. Na mesma época, por volta de 1983, o empresário midiático australiano Rupert Murdoch estava começando a investir em televisão por satélite. Seria o fim de um cenário inglês de três canais. E menos de uma década depois, quando foi lançado a Premier League, já era um show feito pela televisão de Murdoch, bancado por seu canal Sky.

De uma certa maneira, o que aconteceu depois, aquele sucesso quase inacreditável da Premier League, tem um pouco de Murdoch e um pouco de Burkinshaw… Vou tentar explicar. Quarenta anos atrás era comum ouvir que o futebol inglês estava morrendo. E realmente, parecia sem grandes perspectivas. 

As tragédias nos próximos anos — o incêndio de Bradford, as brigas fatais de Heysel, o desastre previsível de Hillsborough — mostraram um esporte antiquado incapaz de se reformar.

Mas a visão “Murdochiana”, de esporte somente como negócios, sempre corre o risco de ser vulgar e vazio, ciente do preço de tudo e do valor de nada. O que dá conteúdo para as transmissões, o que estabelece uma conexão humana, são as imagens das pessoas dentro dos estádios, carregando uma sensação nítida de uma torcida onde a cultura de identificação com o time vem passando de geração em geração. O jogo não se trata de uma pelada entre super ricos, mas de uma disputa entre clubes com um poder de representação que vai fundo dentro de uma sociedade.

O sucesso da Premier League é uma síntese bizarra de Burkinshaw e Murdoch, onde o novo dá certo porque as raízes do velho são tão fortes.

Tim Vickery
Tim Vickery

Tim Vickery cobre futebol sul-americano para a BBC e para a revista World Soccer desde 1997, além de escrever para ESPN e aparecer semanalmente no programa Redação SporTV. Foi declarado Mestre de Jornalismo pela Comunique-se e, de vez em quando, fica olhando para o prêmio na tentativa de esquecer os últimos anos de Tottenham Hotspur.