Na vida de Matheus Nunes, futebol sempre foi coisa de mãe para filho — sem envolver qualquer “progenitor”. É assim que Catia Regina, mãe do jogador do Manchester City, identifica o pai biológico do filho. Assim como mais de 110 milhões de crianças brasileiras, Matheus é um filho da mãe, e só. E foi dela, ao longo da infância e início da adolescência na zona oeste do Rio de Janeiro, que veio a paixão por jogar futebol.
— Eu só fazia coisas que os meninos faziam. Eu não brincava de bonecas, eu brincava com as coisas dos meninos, então eu jogava futebol e eu joguei até engravidar da minha filha, depois eu tive que parar – revelou a mãe do jogador em entrevista exclusiva à PL Brasil.
Catia foi a base para que o Matheus Nunes não abandonasse o sonho de jogador futebol ainda que nunca tenha frequentado as categorias de base de um grande clube no brasil.
Hoje, Matheus Nunes vive o ponto mais alto da carreira: parte constante da seleção portuguesa, recém-chegado ao Manchester City, comandado por Pep Guardiola – admirador do futebol do luso-brasileiro desde que este era uma revelação do Sporting, um dos maiores clubes de Portugal.
Não faltaram, porém, percalços na história do meio-campista: vontade de desistir, lesões que mudaram seu destino e até mesmo ter repetido de ano foram fatores cruciais para que a vida de Matheus chegasse a esse ponto. E um das grandes personagens dessa história e a mãe, que nunca se casou com um português – fato reforçado por ela.
Desde os primeiros contatos com a reportagem, Catia não escondeu que uma das motivações para conceder a entrevista seria “desmentir algumas histórias”. E assim ela fez.
— São algumas mentiras. Uma é que eu vim para Portugal com o meu marido português- eu nunca fui casada com um homem português! Meu agora ex-marido é inglês, então isso é mentira e isso saiu no Brasil, é fogo – contou, sem esconder sua indignação.
— Outra mentira é que ele (Matheus Nunes) trabalhava na padaria da família, porque eu nunca tive uma padaria. Ele trabalhou em uma pastelaria, que é do “padrinho” dele, um amigo, não era nada da família. E falam que ele trabalhava lá para ajudar a família financeiramente, mentira também! – completou a mãe de Matheus.
A motivação para o trabalho, que será melhor explicada a seguir, não teve a ver com ajuda financeira, mas sim com responsabilidade. Isto porque o padrasto inglês, e não português, era engenheiro. E foi ele o pivô da ida da família a Portugal quando Matheus tinha 13 anos. Junto de sua mãe e os dois irmãos, se estabeleceram em Ericeira, cidade de cerca de 13 mil habitantes no litoral lusitano, a 55 km de distância da capital Lisboa — onde o jovem meio-campista daria seus primeiros passos no futebol.
A vida de Matheus Nunes no Brasil
Existem poucos registros da vida de Matheus Nunes no Brasil – e isso quer dizer muito sobre a sua carreira. Mais do que o próprio Matheus, ninguém pode falar melhor sobre sobre os primeiros passos do então garoto carioca do que a sua mãe.
A voz firme e o semblante cerrado delatam a mãe forte que criou três filhos sozinha na maior parte do tempo.
A família vivia no bairro do Recreio dos Bandeirantes, a princípio conhecida por ser uma região nobre da cidade, mas que também tem reflexos de desigualdade e, por isso, não deixava de ser perigoso para uma mãe solteira.
— Era perigoso enquanto eu não conhecia o meu ex-marido. Nós já vivemos em favela — não por muito tempo, não passamos uma vida lá, mas vivemos em favelas. Vivemos em vários lugares e era perigoso, porque o Rio de Janeiro é perigoso, né? E acho que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo sabe que o Rio de Janeiro é perigoso – começou.
“Era bem difícil. Foi uma vida normal, mas uma vida complicada“, continuou. O “sotaque português” bastante enraizado confirma: ela conseguiu.
O uso de várias palavras típicas de Portugal, as expressões coloquiais e a rapidez na fala são marcas registradas da carioca que já deixou o Brasil há 12 anos. Catia não fala que um amigo goleiro ajudou Matheus – era o amigo guarda-redes. Se embaralhou na lembrança de qual ano escolar Matheus estava quando chegou a Ericeira, não porque não lembra, mas porque o sistema escolar é diferente.
Apesar das diferenças culturais, rapidamente superadas, levar a família para Portugal foi uma espécie de conquista para Catia. Isso porque, na Europa, ela poderia criar os filhos com mais segurança se comparada à vida que tinha no Rio de Janeiro. A mudança veio certo tempo depois de conhecer seu agora ex-marido.
— Eu era uma mulher com três filhos, sozinha, que trabalhava para criá-los. Depois, quando o Matheus estava com 9 anos, eu conheci o meu agora ex-marido — que não é português, é inglês! — reforça.
Ida a Portugal
Mas por que Portugal, afinal? “Porque eu não falo inglês, apesar de ter estado tantos anos com um inglês, e porque estamos dentro da União Europeia – e até então o Reino Unido também fazia parte da União Europeia”, explicou Catia.
— E porque era tudo mais fácil (ao estar na União Europeia). E, óbvio, para trazer uma vida mais segura para para os três menores que eram o Mateus e as minhas duas meninas, que hoje estão com 12 e 14 anos.
As duas meninas, inclusive, “são 100% portuguesas”. Praticamente não tiveram nenhum tempo de formação no Brasil, falam com “sotaque português” e estão completamente imersas na cultura. Inclusive, no dia da entrevista, nas semanas finais de setembro, estavam para voltar de férias da escola.
Além das duas mais novas, Matheus tem mais uma irmã e um irmão, ambos mais velhos, com quem dividiu a atenção da mãe na infância carioca. A irmã, inclusive, continua no Rio até hoje, bem como outros familiares, mas a ideia de Catia era levar os filhos mais novos a um lugar mais seguro.
Catia assegurou que nenhum tipo de violência foi cometida com a sua família, mas o sentimento de angústia e a ideia de tentar prover mais segurança e uma educação de maior qualidade para os filhos – bem como a possibilidade, por conta de seu relacionamento na época – foi crucial para a família Nunes desembarcar em Ericeira.
Mas nem tudo são flores de início. Imagine-se com 13 anos tendo que largar família e amigos, basicamente toda a sua vida, para ir não só para outra cidade, mas outro continente. Matheus não gostou a princípio.
— Ele foi obrigado, era criança. É a realidade. Não vou falar que ‘Não, ele quis vir’, mentira. Ele tinha 13 anos, ele não se mandava. Ele veio porque ele não tinha outra alternativa – relembra Catia.
Ela tenta nos colocar na pele do filho – “Você já foi criança, deve imaginar como é” – e entende que Matheus teve de largar tudo no Brasil e se acostumar com uma nova realidade, mesmo “sem querer”.
— Por mais que seja ainda uma criança, para ele é uma vida inteira para trás, todos os amigos, todas as coisas. Ele sentiu, eu senti, todos sentem.
Matheus, um menino “muito adaptável”, não demorou muito para se adequar à nova vida, mesmo que houvesse grande diferença cultural. A primeira foi vista já na escola: o calendário português é diferente do brasileiro — por lá, o ano escolar começa em agosto.
Por conta disso, por exemplo, Matheus teve de “perder” praticamente dois anos de escola. Estava indo para a oitava série, mas começou seu ano, com 13 anos, na sexta. Mas novas amizades lusitanas foram a base do garoto no novo país, o introduzindo à cidade, à cultura e, claro, ao futebol.
E apesar de falarmos, teoricamente, a mesma língua, a dificuldade do brasileiro em Portugal foi vivida na pele do menino. O sistema escolar quis “aportuguesar” o sotaque de Matheus e, para isso, uma professora indicou que assistisse a telejornais e lesse jornais impressos. A mãe não gostou da ideia e mostrou que sua conexão com o filho era grandiosa no processo:
— Eu não vou dizer nada disso para o Matheus. ‘Eu conheço meu filho e eu posso te garantir, anota o que eu estou a te dizer, porque você vai voltar no fim do ano e ver que meu filho não aceita ficar para trás, não aceita perder e não aceita sentir-se inferior a ninguém’. Ela ficou olhando a minha cara, como ‘essa mulher é maluca’ – disse.
Mais do que uma ideia de “aportuguesar” o garoto carioca, é possível perceber também um resquício de preconceito e talvez até eurocentrismo por parte da professora. Uma ideia de que o estrangeiro que chega ao seu país em busca de melhores condições de vida seria “pior” ou “menos inteligente” que você – o que, convenhamos, também ocorre no Brasil.
Nada disso se provou. Matheus terminou o ano como um dos melhores alunos não só da sua sala, mas de todo o colégio, e manteve boas notas. A professora em questão ficou boquiaberta: “Você não tem outro Matheus lá para deixar para mim, não? Porque eu não quero perder esse”.
Futebol é coisa de mãe, e não de ‘progenitor’
Matheus começou de maneira “tardia” no futebol. Não só na carreira, mas também em como foi encorajado a perseguir esse sonho. Apesar de ter uma figura masculina na forma do seu padrasto, foi a mãe quem deu o empurrãozinho para o menino seguir de verdade a carreira nos gramado.
Por outro lado, a história de Matheus Nunes contraria os processos do futebol moderno. No Brasil, sua experiência no futebol era nas famosas “escolinhas particulares” — em que os pais pagam para que o filho treine e jogue. Não fez categoria de base e chegou a Portugal sem nenhum “currículo”.
Os primeiros passos do menino no esporte vieram em uma escolinha do Flamengo, seu time do coração. Ele treinava normalmente e, no final de semana, lá ia Catia pagar mais uma vez para que ele jogasse nas partidas do final de semana, porque “se não pagasse, não jogava”. Flamenguista, Matheus mudou para a escolinha do Fluminense um tempo depois, mas seguia no mesmo esquema de pagar para jogar.
Mas mais do que a paixão pelo esporte vinda da mãe e passada para o filho, a introdução do garoto à bola veio como uma forma de “medicamento” para se livrar de remédios de tarja preta:
Catia conta que Matheus era elétrico quando criança e, depois de diagnósticos, descobriu que ele tinha um quadro de hiperatividade. A sugestão do médico foi medicá-lo, mas com remédios de tarja preta. A mãe repudiou a ideia de cara.
Remédios tarja preta são aqueles que afetam o sistema nervoso central para curar algum tipo de problema, e podem causar dependência ou até mesmo levar à morte se usados de maneira descontrolada. Um tarja preta comum em casos de hiperatividade é a Ritalina.
— Quando o Matheus nasceu, ele era uma criança hiperativa. Eu lembro-me que o pediatra passou medicamentos tarja preta e eu falei que não. ‘Eu não vou dar isso ao meu filho, eu não vou viciar um filho numa coisa louca dessa’. O médico dizia que era para manter mais calma, mas não, meu filho nunca vai tomar isso e ponto final – contou a mãe.
E foi aí que Catia o colocou para a jogar futebol, assim como fez com o irmão, cinco anos mais velho. Como uma forma de “terapia” que o livrou de remédios fortes e controlados, a bola proporcionaria outras montanhas-russas de emoções no jovem carioca.
“Desistência do futebol” e troca de escola mudaram tudo
Já em Portugal, Matheus jogava futebol desde o primeiro mês que pisou na Europa. Um amigo de condomínio, o “guarda-redes”, o convidou para jogar no Ericeirense, time da cidade. O carioca já tinha feito testes em um grande clube português, que a mãe preferiu não revelar, e não passou. Então aceitou o convite do amigo.
O primeiro ano foi difícil por motivos burocráticos. O brasileiro Matheus era tido como um jogador extracomunitário e, quando foi ser federado pelo novo clube, a Fifa não permitiu.
Jogadores extracomunitários são aqueles que não fazem parte da União Europeia. Cada campeonato tem um limite de quantos extracomunitários podem fazer parte do time.
Os limites de jogadores estrangeiros que podem atuar no futebol português são determinados pelo art.º 104.04 do Regime de Provas Oficiais da Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Nas competições distritais e categorias não seniores, que era o caso do Ericeira, cada clube pode inscrever dois jogadores estrangeiros e utilizar apenas um. Matheus rodou nessa regra.
A entidade achou que o jovem carioca já havia sido federado por um clube brasileiro, o que não aconteceu, e isso levou a uma troca incansável de documentos e e-mails.
— Isso durou basicamente um ano. O Matheus treinava de segunda a sexta e, no fim de semana, ele ia para bancada assistir os jogos. Não podia jogar porque ele não era documentado – lembrou a mãe.
O então marido de Catia, inglês e, naquele momento, cidadão europeu – uma vez que ainda não havia ocorrido o Brexit – fez uma grande carta de desabafo e cobrança à Fifa para liberar o garoto. A entidade cedeu e o jovem passou a fazer parte do time de juniores do Ericeirense, os “iniciados” do clube.
Foi lá que começou outra “mentira” sobre a vida do garoto: o trabalho na padaria. Matheus conheceu seu “padrinho” no Ericeirense – ele era jogador do time principal e, muito mais velho, se tornou um grande amigo. O “padrinho” é de amizade, não de batizado ou relação familiar, e é ele quem tinha a padaria onde o jovem trabalhou.
Mas Matheus também não trabalhou para ajudar a pagar as contas de casa, como foi amplamente divulgado. A situação não era de necessidade, mas era bem tensa: tudo por conta da escola.
Quando ia entrar no Ensino Médio, aos 18 anos, Matheus queria mudar de escola, porque todos os amigos também tinham mudado. Ele era um dos melhores alunos de todo o colégio, então a mãe não quis assinar o documento para transferi-lo. “Eu não queria, mas preciso confiar no meu filho. Não confio nos amigos dele, mas confio nele”, disse Catia, que decidiu pela mudança.
A nova escola, no entanto, trouxe tempos difíceis: Matheus “chumbou” – a expressão portuguesa para repetir de ano. A mãe, decepcionada, disse para o filho voltar ao antigo colégio, onde tinha grande destaque. “Não vou, mãe, eu chumbei, tenho vergonha”, respondeu.
A outra ideia era que ele pelo menos continuasse onde estava. “Não vou voltar, não quero”. A resposta de Catia foi a que muitas mães brasileiras da sua geração falariam: “Então você vai trabalhar!”.
— Tu vai trabalhar, Matheus. Tem casa, comida, roupa lavada, tem amigos, tem suas farras, as “raparigas” (garotas) com quem tu fica. E eu não vou ficar bancando isso.
Catia ligou incansavelmente para o “padrinho” de Matheus, que jogava no Ericeirense e tinha a padaria, para colocar o menino para trabalhar. Foram dois meses de ligações – e, enquanto isso, o jovem ajudava em uma marisqueira aos finais de semana.
— Matheus nunca precisou ajudar a família. Nossa família não era carente. Meu ex-marido é engenheiro. Ele foi trabalhar porque precisava aprender a ter responsabilidade financeira.
O cuidado da mãe para o crescimento pessoal do filho é ilustrado em como continuou o apoiando no futebol mesmo o tendo “forçado” a trabalhar. “Os jovens querem, mas eles não param para pensar no esforço que os pais têm de fazer para aquilo chegar até as mãos deles”, concluiu a mãe de Matheus.
Ele, por sua vez, não foi o maior fã da ideia. “Mãe, eu não conduzo (dirijo)”, foi uma das desculpas. “Vai de bicicleta, arruma uma carona. Tu não quer voltar para o colégio, né?”, retrucou Catia. Matheus ficou cerca de cinco meses na padaria antes de dar um passo que o faria quase desistir do futebol.
O meio-campista fez testes no Oriental, de Lisboa, um time da terceira divisão. Ele estava indo bem, mas se lesionou. Ficou duas semanas fora, em tratamento com fisioterapeuta, e quando voltou, recebeu a notícia de que não precisariam mais dele.
A recusa não foi bem recebida. Matheus ficou muito chateado, frustrado e, aos 18 anos, se achava velho demais para engrenar no futebol — então decidiu dizer à mãe que desistiria da carreira. E levou um sermão homérico. “Posso falar da minha maneira, com todas as palavras?”, me perguntou Catia antes de contar os detalhes da conversa que teve com o filho.
— Vou desistir, porque agora já tenho 18 anos. Daqui a pouco já estou com 19, não vai mais acontecer. Eu vou arranjar um trabalho normal viver uma vida normal, e o futebol vai vai ficar só no sonho – disse Matheus Nunes à mãe na época.
— Mãe, você não sabe nada de futebol. As coisas não acontecem como acontece dentro da tua cabeça. Nós vivemos na Europa tantos anos e você ainda tem aquela cabeça pequena de que acha que eu vou conseguir chegar em algum lugar. Os meninos já estão em seleção com 14, 15 anos. E agora não vai haver oportunidade, não vai mais acontecer – argumentou o filho.
— Você tem que desistir dos amigos de copo, das noitadas na farra, porque isso que te desvia do teu objetivo, tu não vai desistir. Vai pegar teu rabinho, vai enfiar no meio das pernas e vai voltar para o Ericeirense – replicou Catia.
Matheus não gostou, mas, mesmo envergonhado, voltou ao clube da cidade. Subiu de divisão com a equipe e, depois, seu antigo técnico do Ericeirense, Luís Freire, que tinha assumido o Estoril, o contratou para a equipe do litoral. Ali começaria sua história de grande ascensão.
A relação com a Premier League é antiga
O atual jogador do Manchester City ouviu muitos “nãos” durante a adolescência antes de se transferir para o campeão da tríplice coroa por 60 milhões de euros. E a sua história poderia ter sido bem diferente.
Quando voltou ao Ericeirense, antes mesmo de ir para o Estoril, Matheus já chamou atenção dos olhos mais afiados dos scouts do futebol europeu. Ele foi convidado para fazer um teste no Leicester em 2016 e chegou a ir à Inglaterra na época.
O sucesso improvável dos Foxes, no entanto, foi “ruim” para o garoto de 18 anos. A equipe estava ocupada demais comemorando o histórico título da Premier League e não deu atenção ao meio-campista, que voltou a Portugal.
Matheus ainda rodou pelos CTs de grandes da Europa: fez testes no Lille, da França, no Braga e no Benfica, mas as coisas não andaram como ele gostaria.
Anos depois, ele regressaria à Premier League como a contratação mais cara da história do Wolverhampton, por 45 milhões de euros em 2022 — agora, esse posto foi tomado pelo xará Matheus Cunha, que custou 50 milhões de euros na última janela de transferências.
A batalha por um espaço
Crescer no futebol depende de muitos fatores. Grande parte, evidentemente, é do próprio jogador: esforço, talento, dedicação e estar aberto a ouvir o próximo. Mas ele não controla tudo.
Mais do que a sua parte, o atleta ainda tem que viver com as incertezas que o cercam: o contexto do clube em que está inserido, a pessoa que gere a sua carreira, as decisões de terceiros no clube e muito mais. No fim, o clássico “QI” (quem indica), que alavanca tantas carreiras fora do campo, acabou sendo o refugo de Matheus.
Uma bola de neve de indicações começou ainda no Ericeirense, com Luís Freire, fazendo a ponte para Matheus ir ao Estoril em 2018, aos 20 anos, inicialmente para jogar pelo time sub-23. Muitos acreditam que, nessa idade, já seria “velho demais” para dar o salto ao mais alto nível. Não foi o que aconteceu.
O seu treinador no sub-23, Alexandre Santos, foi para o Sporting um ano depois e sugeriu a contratação do meio-campista sem titubear. Em entrevista ao jornal lusitano “Diário de Notícias”, ele revelou a conversa que teve para indicar o jogador:
— Disse-lhes que o Matheus Nunes era um grande talento. Se ele sem formação revela capacidades natas para interpretar o jogo, bem orientado e num clube estruturado como o Sporting explodirá.
Matheus praticamente se formou como jogador sem fazer categoria de base, não surgiu com um grande empresário e nem tinha um grande clube do Brasil no seu currículo de juniores quando, em 2019, foi contratado pelo gigante Sporting. A “bola de neve do bem” começou com o seu talento e suor.
Mãe protetora cuida da carreira do filho?
Matheus pensou em desistir e em muitas vezes duvidou de si mesmo, mas não foi só ele que teve esse pensamento “pessimista”. Amigos da família também não colocavam tanta fé no garoto. Parece que só a mãe acreditava que ele seria uma estrela, mesmo quando ninguém mais compartilhava desse sentimento.
— Catia, tu precisa acalmar. O Matheus é bom, joga bem, mas ele não é algo tão grandioso assim, ele não vai chegar a uma coisa tão grande porque precisa do clube certo, a pessoa certa. Tu precisa acalmar um pouco porque você vai acabar ficando muito frustrada – era o que Catia ouvia antes de Matheus “dar certo”.
No entanto, apesar de sempre acreditar e apoiar o filho, a mãe nunca se envolveu na parte burocrática e de negócios do futebol. Atualmente, Matheus trabalha com alguns dos maiores empresários do mundo: o português Jorge Mendes e a empresa brasileira TFM, comprada recentemente pela Roc Nation Sports, empresa do rapper Jay-Z.
— Eu não sei exatamente como Jorge Mendes chegou no Matheus. Os donos do Estoril tinham ligação com a TFM, e quando o Matheus foi vendido do Estoril ao Sporting, foram eles que fizeram o papel de empresários. Mesmo que não tivesse nenhum contrato assinado (de agenciamento), foram eles (TFM) que alavancaram a carreira dele.
Agora a distância do filho causa saudade dos momentos diários, da troca do dia a dia, e é justamente por isso que a mãe não quer se aborrecer conversando sobre burocracias de negócios — quer simplesmente matar a saudade. “Porque sobre os problemas do futebol, já tem muita gente que fala”, disse.
— A carreira é dele e quem tem que estar envolvido nisso é ele. Eu sou a mãe e eu eu conheço o meu limite – reforçou Catia.
Catia tem o semblante e a fala de uma mãe orgulhosa. Lembrou com sorrisos das voltas para casa do filho durante as pausas para a Data Fifa e como ele sempre se reconecta com seu lar: a família e o país que o acolheu.
Matheus Nunes “rejeitou” a seleção brasileira?
Matheus tornou-se homem em Portugal. Virou jogador profissional em terras lusitanas. Chegou ao estrelato em Lisboa. Seria justo defender outra seleção que não a portuguesa?
Matheus foi criticado por certos grupos por ter “escolhido” a seleção de Portugal em detrimento do Brasil, mesmo tendo sido convocado por Tite quando ainda estava no Sporting. Sua mãe se enfurece com a narrativa que é propagada sobre o assunto.
O meia era destaque do alviverde de Lisboa quando, no final de agosto de 2021, foi chamado para a equipe de Tite. Foi Juninho Paulista, coordenador da seleção brasileira, quem ligou para Matheus Nunes para falar da convocação para a seleção brasileira. A família estava reunida, coincidentemente, e comemorou à beça.
Voltando para casa com seu então marido na época, Catia passou a se indagar, apesar de toda a felicidade pelo filho. “Matheus representando o Brasil… Você acha isso certo?”, perguntou. “Não”, respondeu o marido. Ela também não concordava com isso.
A mãe do meio-campista foi logo pesquisar sobre a convocação e descobriu que, por conta das restrições da Covid-19, sete jogadores da seleção brasileira ficaram “presos” no Reino Unido e não foram liberados.
“Por isso convocaram o Matheus, porque os jogadores da Seleção, os mais famosos, estão presos lá”, entendeu a mãe do jogador, que guardou a informação para si e não quis fazer a cabeça do filho.
Dias depois, ela perguntou sobre a situação. “O Sporting não quer liberar, mãe. Não tenho a vacinação completa, teria que fazer quarentena e perder jogos importantes”, explicou Matheus. Não foi ele que não escolheu o Brasil, mas o clube português que não o liberou.
Curiosamente, Matheus não ficou frustrado por não poder se juntar à delegação brasileira. “É estranho, fico meio perdido. Não posso ir contra os meus superiores – eles não querem liberar e eles têm razão”, contou à mãe.
Dias depois, Fernando Santos, o então técnico de Portugal, ligou para o jogador e o convocou. Matheus se sentiu mais seguro com a conversa e por ter sido chamado pela seleção portuguesa. Mesmo que inconscientemente, sabia que pertencia mais às terras lusitanas.
— Não foi uma escolha como parece. Fico indignada porque eu canso de ver: ‘O padeiro que rejeitou a seleção brasileira’… O povo gosta de vender notícia, então põe lá qualquer coisa para chamar atenção. Mas não pensam que aquele jogador tem família, é um ser humano, não é uma máquina – pontuou Catia.
Volta ao Brasil?
A pouca identificação de Matheus com o Brasil é ilustrada no turbilhão de sentimentos e acontecimentos envolvendo as seleções, mas também na relação da família com o país. A mãe nunca mais voltou ao Rio de Janeiro – ou nenhuma outra cidade brasileira – desde que se despediu, 12 anos atrás.
“Você é uma despatriada, está cuspindo no prato que comeu” é o que a mãe do jogador já leu e ouviu sobre sua situação. Mas ela é segura: “o Matheus, hoje, não viveria no Brasil”.
— Eu acho que ele perdeu-se do Brasil; tem familiares — minha filha vive aí, tem tio, os primos — mas houve um descolamento. E não há nada forçado, nada obrigatório, foi natural – disse a mãe do jogador.
Apesar de ter se descolado do país, Matheus ainda gosta do Brasil e visita o Rio de Janeiro com alguma periodicidade. Esteve no Cristo Redentor no ano passado com amigos portugueses, por exemplo. Mas a ótica da mãe se confirmou com uma pergunta ao filho: “Matheus, tu viveria no Brasil hoje?”. “Não, mãe, definitivamente não”.
O jogador do Manchester City criou outros vínculos e estabeleceu outras raízes fora do Brasil, assim como a própria mãe. Catia lamenta o fato de nunca mais ter visto familiares pessoalmente desde que se mudou, mas bate o pé: não pretende voltar.
— Costumo dizer para as pessoas virem aqui (para Portugal). Vai matar dois coelhos uma paulada só: vai matar a saudade de mim e tu ainda vai vir para a Europa. Então vem, porque eu não vou – brincou.
Mas ela entende que Matheus ainda tem certa ligação com o Brasil – afinal, aprendeu a gostar de futebol no Rio de Janeiro e era uma criança que torcia para o Flamengo. E se recebesse o convite do time do coração?
— Existe essa possibilidade (de jogar no Flamengo) porque ele continua sendo flamenguista. Isso não mudou. O meu outro filho mais velho é flamenguista doente também. Eu acho que ele iria, sim, se ele fosse chamado para o Flamengo. Mas mais lá para frente – sugeriu a mãe.