Tive a oportunidade de ler um capítulo do livro How to Win the Premier League: The Inside Story of Football’s Data Revolution (“Como Ganhar a Premier League: Os Bastidores da Revolução dos Dados no Futebol” (tradução livre), ainda sem previsão de publicação no Brasil), recém-lançado por Ian Graham, e também algumas entrevistas concedidas a veículos britânicos para promovê-lo. Leitura tão boa que faço questão de compartilhar minhas visões por aqui.
Durante 11 anos, Ian foi diretor de pesquisa do Liverpool e, se tudo o que li é verdade, acabou por ser peça-chave na montagem do elenco que conquistou a Premier League sem pertencer ao Manchester City. Algo que, desde 2017/18, apenas os Reds conseguiram – e uma única vez, na temporada 2019/20.
Eu sei que há muitos livros por aí, mas este parece fazer bastante sentido — Ian provavelmente teve tempo para escrevê-lo após deixar o clube no ano passado para lançar uma empresa de consultoria esportiva chamada “Ludonautics”.
A importância dos dados para o Liverpool em 2019/20
Se fosse necessário resumir o sucesso daquele Liverpool, eu diria que ele aconteceu pela aceitação dos dados. Ian contou que, com Brendan Rodgers (técnico até 2015), a resistência à abordagem era grande, mas Jürgen Klopp, mesmo sem ter conhecimento algum do tema, mostrou-se aberto a ouvir o que os especialistas tinham a dizer e a implementar na sua rotina de trabalho.
E assim o Liverpool começou o seu processo de recrutamento, espalhado por algumas temporadas, e capitaneado pelo diretor esportivo Michael Edwards, com quem depois Klopp se desentendeu. Ed saiu e voltou agora com um cargo maior na estrutura do FSG, Fenway Sports Group, empresa dona do Liverpool.
Segundo Graham, toda a análise estava focada em “como podemos aumentar nossas chances de marcar um gol ou diminuir nossas chances de sofrer?”. A partir daí surgiam os nomes, e é bom ressaltar que nem todos foram primeiras opções.
Definitivamente não foi o caso de Mohamed Salah, a quem o Liverpool já vigiava desde os tempos de Basel. Na época, porém, o Chelsea o levou oferecendo mais.
Em 2017, surgiu nova oportunidade, com o egípcio na Roma. A concorrência dentro da Premier League foi bem menor pelo período de pouco destaque no Chelsea. Este foi o primeiro diferencial: Graham estava convicto que a transferência havia “falhado” por razões diferentes que não atestavam exclusivamente a qualidade de Salah.
Por exemplo: Salah competiu, na época, por tempo de jogo com Eden Hazard, e outros nomes como Kevin De Bruyne e Romelu Lukaku também não triunfaram num Chelsea com suas particularidades.
— Não nos importamos em parecer estúpidos. Essa era a diferença entre nós e muitos clubes naquela época. Nós apenas nos preocupamos em tomar a decisão certa e acreditamos no processo — disse Graham.
Salah foi taxado como um atacante multifuncional por poder correr com a bola, passar, criar e chutar. “Ele se encaixava em todas as caixinhas”. O Liverpool estava convicto que ele era o cara e ainda poderia melhorar consideravelmente.
E, assim, chegou por 37 milhões de libras. Na mesma janela, o Arsenal contratou Alexandre Lacazette por 46,5 milhões de libras, o Chelsea contratou Álvaro Morata por 58 milhões, e o Manchester United contratou Romelu Lukaku por 75 milhões (mais 15 milhões em bonificações).
Sintomático, eu diria.
Até a publicação desta coluna, Salah marcou 159 gols e deu 70 assistências em 265 jogos de Premier League. Um deboche!
Há outros exemplos em que Ian Graham se orgulha, como o de Andy Robertson, que foi bancado como terceira escolha mesmo participando da defesa de um Hull City que havia sido rebaixado sofrendo 80 gols na temporada 2016/17.
O francês Benjamin Mendy estava no topo da lista, mas o interesse do Manchester City de imediato afastou o Liverpool da jogada por contas das cifras. O ítalo-brasileiro Emerson Palmieri, então na Roma, era o segundo, mas lesionou o joelho no fim da temporada. Hoje ele está no West Ham.
E aqui entra a figura de Klopp, que não se importou com a ausência de valências defensivas de Robertson.
— Ele resolveu isso dizendo que queria que seus laterais atacassem e, se houvesse fraquezas, as poderia resolver dando coberturas em outros setores. Em vez de exigir o jogador perfeito, estava disposto a encontrar soluções criativas para maximizar os pontos fortes — relata Graham no livro.
Robertson custou apenas 8 milhões de libras e é titular até hoje.
Com o zagueiro Joel Matip o processo foi parecido, uma vez que ele não estava bem avaliado na Bundesliga, embora os dados dissessem o contrário. Chegou no fim de seu contrato com o Schalke 04 e também teve sua relevância no período.
Klopp também foi fundamental pelo seu estilo
A fama de ser um time “heavy metal” e o carisma do alemão tornaram o Liverpool um lugar atrativo. Quando Klopp afirmou que gostava muito de Sadio Mané, Graham respondeu com a frase “música para os meus ouvidos”, pois seu modelo estatístico indicava o mesmo.
Mané foi um dos primeiros titulares a chegar com Klopp. O atacante do Southampton tinha outras propostas, como do Manchester United, mas optou pelo Liverpool porque ele e seu estafe acreditavam na habilidade de Jürgen em formar algo especial.
Mané é talvez um capítulo à parte, pois o Liverpool descobriu, ainda na época de Brendan Rodgers, que ele “não gostava muito de treinar e tinha uma personalidade difícil”. Michael Edwards entrou em cena quando decidiu investir no atleta mesmo assim, pois sua habilidade, adequação ao sistema e finanças pesavam mais na balança.
No fim das contas, Mané “foi um dos jogadores mais inteligentes, decentes, profissionais e trabalhadores que já contratamos”. Palavras de Graham.
Mané fez 18 gols na campanha do título da Premier League e entrou para a seleção da temporada. Deixou o clube como ídolo.
E o fator sorte?
Se Neymar não tivesse sido comprado pelo Paris Saint-Germain por um valor recorde de 222 milhões de euros em 2017, o Barcelona não teria ficado tão desesperado para, meses depois, ter batido na porta do Liverpool por Philippe Coutinho.
O meia brasileiro saiu por 135 milhões de euros e praticamente financiou as chegadas transformadoras do zagueiro Virgil van Dijk (84 milhões) e do goleiro Alisson (62 milhões). O clube já mirava os dois há algum tempo, mas não tinha o dinheiro necessário para investir.
É justo dizer que os dois foram (e ainda são) pilares do Liverpool, mas eu não duvido que, caso o orçamento fosse outro, Graham, Edwards e Klopp teriam dado um jeito: