Historicamente, a cultura do futebol brasileiro foi vendida como aquela que entrega um jogo esteticamente agradável, com dribles, demonstração de habilidades individuais e grandes sequências de passes curtos em progressão — o “jogo bonito“. Recentemente, há uma crítica em relação aos jogadores brasileiros terem perdido isso no futebol europeu, principalmente na Premier League.
Apesar de ser possivelmente a liga de mais alto nível do planeta, o Campeonato Inglês recebe críticas por “engessar” alguns de nossos jogadores.
Mais do que a diferença de desempenho entre clube e seleção, é necessário analisar diversos fatores para encorpar esse debate: o contexto dos times em que o jogador atuou, o modelo de jogo de cada equipe e da Seleção, e como os números podem nos auxiliar nessa análise. Afinal, a Premier League de fato “engessa” os jogadores brasileiros?
As diferenças entre Brasileirão e Premier League
Uma forma de tirar a “prova real” desse debate é comparar como esses jogadores agiam quando atuavam no Brasil em relação ao seu tempo na Inglaterra — e a comparação fica mais palpável quando é feita entre as duas temporadas que separam o Brasileirão da Premier League.
Uma boa maneira de fazer essa análise é comparando números relacionados a dribles e duelos ofensivos. Desta maneira, é possível entender se o jogador tentou mais ou menos e se teve mais sucesso em termos percentuais. Com base nesses números. colocamos na equação também o contexto do jogador e da equipe.
Um exemplo claro é o de Gabriel Martinelli. No Ituano, o atacante jogou apenas uma edição do Campeonato Paulista antes de ir ao Arsenal. Em sua primeira temporada nos Gunners, evidentemente não estava pronto para o nível exigido, mesmo atuando em 14 rodadas do Campeonato Inglês. Óbvio que os números não vão favorecê-lo, por isso é importante ter o contexto.
Contexto na análise: esquecido, mas necessário
Fatores extracampo, que geralmente são pouco valorizados quando há a análise de um jogador, também são cruciais. Antony claramente melhorou quando saiu do São Paulo e foi para o Ajax, mas regrediu ao chegar na Inglaterra — agora sabemos que, fora de campo, a situação em que ele esteve envolvida influenciava isso tudo.
Existem também os casos em que os números evidenciam que, ao invés de “perder” a magia, há quem “ganhou” — mas os números também podem ser nebulosos nesses momentos. Danilo, que trocou o Palmeiras pelo Nottingham Forest em janeiro de 2023, era um volante no Brasil e jogou várias partidas como ala-esquerdo ou até meia aberto pela direita. Claro que se encontraria em mais situações para o drible e jogadas individuais.
E o contexto também entra em jogo quando falamos de determinadas posições. Existem os zagueiros cuja especialidade passa pelo momento com a bola no pé: passes, lançamentos, progressões e controle de espaços nas costas da defesa. Outros são defensores mais “clássicos”. Evidentemente há uma diferença na progressão ou não de certos atributos desses atletas.
Nossos atacantes perderam o brilho?
Os números sozinhos não contam a história completa, mas ajudam a elucidar a situação. Estatisticamente, ao longo dos anos na Inglaterra, os nossos atacantes têm tido uma média superior em relação a gols marcados, gols esperados, assistências, finalizações, taxa de acerto nos chutes, dribles e sucesso nas jogadas individuais, se comparado ao seu período no Brasil. Até mesmo ao longo das temporadas dentro do próprio futebol europeu há crescimento.
Existem os casos injustos de comparar, como o de Gabriel Martinelli, como citado acima. Profissionalmente, foi apenas um rápido Campeonato Paulista — que teve destaque, evidentemente — antes de chegar ao Arsenal. Outro caso é o de Matheus Cunha, que nunca jogou futebol profissional no Brasil. Quer dizer que ele perdeu o brilho já na adolescência? Não é bem assim…
Gabriel Jesus: é sim um típico brasileiro
Alguns dos casos mais palpáveis e recentes entre os que estão atualmente no Campeonato Inglês ilustram isso. O de Gabriel Jesus é um tapa na cara se analisarmos os números friamente, comparando seu último ano no Palmeiras, em 2016 (já contando os jogos com a seleção brasileira), e sua primeira experiência na Premier League, a metade final da temporada 2016/17.
As estatísticas de Gabriel Jesus por clube
Uma análise especial de Gabriel Jesus já foi feita quando nos questionamos sobre a necessidade do Arsenal contratar outro centroavante, dada a sua autodenominada “pouca especialidade em fazer gols”.
Ainda assim, seus números no Arsenal seguem mostrando que é um jogador tipicamente brasileiro: tem uma média superior no número total e na taxa de acerto de seus dribles. O ponta rabisqueiro se tornou atacante no Palmeiras porque fez gols, comprovou isso no início no City, se tornou um ponta mais de linha de fundo e do lado do pé dominante no fim da passagem em Manchester e voltou a ser um atacante bem abrasileirado nos Gunners: sai da área, dribla, tem a bola mais vezes e cria para os outros.
Richarlison: mudança de posição influencia números
Outro caso de um jogador que levou tempo até se adaptar e, no fim das contas, manteve médias próximas. Ao passo que se tornou mais centroavante do que ponta, seus números de dribles evidentemente caíram, mas a taxa de acerto seguiu boa até sua ida ao Tottenham, onde viveu recentemente o momento mais difícil da carreira, também por questões físicas e psicológicas.
As estatísticas de Richarlison por clube
Antony: a ‘magia’ resiste às polêmicas?
Este tem questões extracampo que evidentemente refletem dentro de campo, e seu momento como jogador do Manchester United não é bom desde que chegou. Ainda assim, dizer que foi outro que perdeu o brilho é irreal, e os números mostram crescimento ou ao menos estatísticas próximas ao seu grande momento no Ajax, quando atingiu seu auge na carreira até então.
As estatísticas de Antony por clube
João Pedro: a Inglaterra fez bem
Outro caso de adaptação e evolução clara. Melhorou na criação e, apesar de ter números menores em relação à pontaria, seguiu se mostrando um bom driblador, com volume nas tentativas de jogada individual e aumento nos acertos, bem como mais sucesso como artilheiro.
As estatísticas de João Pedro por clube
Willian: driblador eficiente
Willian, por exemplo, é um caso até mais específico. Voltou ao Brasil após anos em alto nível e, apesar de sofrer com lesões, ainda assim era um dos principais dribladores do Brasileirão durante seu retorno ao Corinthians — seus 8,74 dribles por 90 minutos, bem como a taxa de acerto de quase 60%, são excelentes. O retorno à Inglaterra, apesar de ver o número cair, também por conta da idade, manteve uma média bastante positiva, além de ter aumentado o sucesso nessa área do jogo.
As estatísticas de Willian por clube
Uma análise semelhante pode ser feita em relação a meio-campistas e volantes que deixaram o Brasil rumo ao futebol inglês.
Bruno Guimarães: menos toques, mais eficiência
Trata-se de exemplo claro: evoluiu na Europa, se tornou o centro do jogo do Lyon e virou um jogador mais completo no Newcastle. Passou a tocar menos na bola por estar em uma liga mais dinâmica e física, mas também por desenvolver a noção de progredir o jogo com mais velocidade — e ainda assim, aumentou sua quantidade de dribles mesmo mantendo a eficácia.
As estatísticas de Bruno Guimarães por clube
Douglas Luiz: o auge
O jogador revelado pelo Vasco vive seu auge na Inglaterra e, apesar de ter diminuído o número de dribles em termos quantitativos, sua taxa de acerto é muito superior, bem como seu sucesso em duelos e em todas as ações que tem no jogo. Se tornou um jogador mais assertivo e, mesmo assim, ainda toca mais na bola do que nos tempos de Vasco.
Estatísticas de Douglas Luiz por clube
Danilo: contexto parece atrapalhar
O caso de Danilo é outro que deve ser visto com cautela. Um volante no Palmeiras com boa pressão alta e que conseguia sair da marcação em regiões mais baixas para progredir o jogo, virou um meia, muitas vezes jogando aberto no Nottingham Forest — e isso não é necessariamente positivo.
Estatísticas de Danilo por clube
Nesse cenário, Danilo não consegue demonstrar suas melhores capacidades, tem dificuldades nos indicadores de desempenho da nova posição e, de quebra, joga no time que menos tem a bola na Inglaterra: o Forest teve rasteiros 37% de média de posse de bola na temporada passada. Em 2022, o Palmeiras teve 54%. Por outro lado, seus números ofensivos envolvendo gols, assistências e dribles melhoraram — isso quer dizer que melhorou?
João Gomes é um caso parecido com o de Bruno Guimarães, mas ainda em estágios iniciais da sua trajetória na Europa. No Flamengo era o principal pivô da progressão de bola da defesa ao ataque. Nos Wolves, divide esse papel e, consequentemente, recebe menos passes por jogo, mesmo que seu aproveitamento seja semelhante. É uma questão de amadurecimento natural, não de “perda de brilho”.
Lucas Paquetá: menos brasileiro?
Paquetá é um exemplo para os dois lados, a depender da ótica. Saindo de um meia criativo e driblador no Flamengo, aumentou seus números ofensivos no Lyon após passagem frustrante no Milan. Isso mudou na Premier League: no West Ham, joga para um treinador mais conservador, em um time que tem muito menos a bola e adotou uma função com mais responsabilidades defensivas — e tem ido muito bem nela, por sinal.
Não foi a Inglaterra que tornou Paquetá menos “brasileiro”, nem a Premier League. Talvez o contexto em que está inserido: seu treinador, o elenco do West Ham e as aspirações do clube. E mesmo assim, é um dos principais jogadores do time.
Estatísticas de Lucas Paquetá por clube
Situação diferente para os zagueiros
Afinal, a Premier League tira o brilho até mesmo os zagueiros? Pelo contrário: na grande maioria, são os que têm a tal magia que vão para lá. Casos como Thiago Silva, Igor Julio e Murillo são exemplos de defensores muito conhecidos pela sua qualidade em passes, condução e leitura de jogo.
O jovem ex-Corinthians é um caso evidente de que as qualidades típicas do jogador brasileiro seguem sendo muito requisitadas, independente da posição. Ele dobrou seus dribles, aumentou consideravelmente o número de corridas seguidas e também cresceu em duelos ofensivos e passes para frente. Isso tudo mesmo jogando em um time que mal tem a bola e é consideravelmente frágil.
Estatísticas de Murillo por clube
Quem não entrou na contagem
Mesmo com diversos exemplos, ainda existem outros que não são tão simples de colocar na comparação. Citamos Gabriel Martinelli e Matheus Cunha antes, mas nomes como o próprio Thiago Silva, na Europa há muito tempo, é outro que os dados dos tempos de Brasileirão são mais difíceis de mensurar.
Além disso, os outros jogadores que tiveram pouco ou nenhum tempo no Brasil, como Vinícius Souza e Igor Julio, não fariam uma comparação justa. Aliás, são mais exemplos de que, mesmo não jogando por aqui, não perderam a essência do jogador brasileiro.
E, obviamente, os goleiros também não entram na contagem. Números irrisórios de dribles e duelos ofensivos não diriam nada sobre sua brasilidade ou a perda dela.
A comparação geral
Existem casos que são muito claros de evolução de um jogador desde que saiu do Brasil, como Bruno Guimarães, mas que ainda assim são permeados pelo debate da “perda da essência” do futebol brasileiro. O próprio Bruno, que mesmo sendo um jogador melhor, é questionado por resolver jogadas com menos toques ou “tentar menos jogadas de efeito” do que antes.
E ainda há exemplos de um aumento estatístico “mentiroso”. Danilo dribla mais e com maior precisão, chuta mais e acerta mais seus chutes, marca mais gols e até intercepta mais desde que chegou ao Forest — mas em um contexto completamente diferente do que seria o ideal para o seu futebol. Acabam sendo números não tão impactantes assim.
Diversos fatores podem fazer com que um jogador perca o brilho. Paquetá teve grandes problemas de adaptação no Milan e se reencontrou no Lyon antes de manter o bom futebol na Premier League. Richarlison com problemas pessoais, psicológicos e até físicos no Tottenham ilustra isso também.
O futebol inglês não mina os talentos brasileiros e nem os restringe. Talvez os molde para o mais alto nível de uma forma em que estes talentos não estavam acostumados. Falar que grandes dribladores e criadores como Willian, Firmino e Coutinho, por exemplo, não foram brilhantemente brasileiros durante suas grandes passagens na Premier League seria heresia — e talvez esse discurso seja mais um desespero nostálgico para encontrar uma identidade que, no fim das contas, nem no futebol brasileiro é mais encontrada.
*Os dados referentes à temporada 2023/24 foram contabilizados até as rodadas seguintes da última convocação, no início de dezembro de 2023.