Por que os donos de clubes da Premier League estão causando revolta na França

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O modelo “multiclubes” tem se tornado uma realidade cada vez mais presente no futebol. Na Premier League não é diferente. Todd Boehly, proprietário do Chelsea, também é dono do Strasbourg, da França. Já o Manchester City é o clube matriz do Grupo City, que conta com 14 clubes ao redor do mundo.

O jornal inglês “The Athletic” publicou uma reportagem mostrando o quanto os donos da Premier League estão prejudicando o futebol francês.

Nove dos 18 clubes da Ligue 1 fazem parte de grupos multiclubes. Na Ligue 2, há dois clubes. Além da relação entre Chelsea e Strasbourg, o Lorient faz parte do grupo Black Knight Football and Entertainment, que também possui a franquia de hóquei no gelo Vegas Golden Knights NHL e outro clube da Premier League, o Bournemouth.

Frequentemente, os proprietários dos multigrupos fomentam a ideia de que esse modelo de gestão traz oportunidades no mercado, com uma vasta rede de olheiros e especialistas em contratações para fornecer os clubes. Entretanto, a ideia não tem sido bem digerida pelos torcedores.

Poucas pessoas em Strasbourg haviam ouvido falar da BlueCo até junho do ano passado, quando o consórcio, liderado por Todd Boehly e Clearlake Capital, pagou 76,3 milhões de euros por 99,97% do clube francês. O investimento foi divulgado pelos proprietários como “estratégico” para aumentar a presença do time francês no cenário europeu e que visa “criar oportunidades e partilhar experiências.

Porém, o que se vê na prática é um Strasbourg na 13ª posição do Campeonato Francês e uma imensa insatisfação por parte da torcida. A torcida organizada Ultra Boys 90 passou os últimos meses protestando contra a BlueCo, alegando que os multiclubes estão matando o futebol.

Meia hora depois do início do jogo entre Strasbourg e Nice no último domingo (28), pelo Campeonato Francês, torcedores estenderam uma faixa enorme no Stade de la Meinau, escrito: “Non a la multipropriete (Não à multipropriedade)”. Além de vários gritos fervorosos, haviam bandeiras com o slogan “Fora BlueCo!”

— É a satelização. O clube já não tem o mesmo propósito, a mesma alma. E do jeito que as coisas estão, em alguns anos, todos os clubes da Ligue 1 serão assim — disse Charly Oswald, torcedor do Strasbourg, ao “The Athletic”.

Ângelo e Andrey Santos

O Strasbourg gastou 50 milhões de euros em cinco jogadores — Abakar Sylla (Club Brugge), Emanuel Emegha (Sturm Graz), Saidou Sow (Saint-Etienne), Junior Mwanga e Dilane Bakwa (Bordeaux). Além desses, dois brasileiros foram cedidos pelo Chelsea: Ângelo Gabriel e Andrey Santos.

A BlueCo também ajudou a apoiar uma reforma de 160 milhões de euros do Stade de la Meinau, que deverá ser concluída em 2026.

Mas muitos torcedores sentem que seu clube agora é administrado quase inteiramente para benefício do Chelsea. Todas as sete contratações mencionadas acima têm 21 anos ou menos. Em várias ocasiões nesta temporada, eles colocaram em campo escalações com idade média abaixo de 23 anos. Isso é empolgante por um lado, mas nem tanto se esses jogadores estiverem sendo desenvolvidos apenas para fins de vitrine ou sendo preparados para o time principal do grupo, que joga a Premier League.

Andrey Santos chegou ao Strasbourg em janeiro para ganhar experiência no time titular, já que não conseguiu o mesmo na Premier League, quando estava emprestado ao Nottingham Forest. Apesar de ser uma grande promessa, o brasileiro ainda não se destacou da forma que os olheiros do Chelsea esperam.

— Para alguém que não jogou muito nos últimos seis meses, acho que ele está bem. Ele tem muitas qualidades. Infelizmente faltou um pouco de rigor técnico para sermos ainda mais decisivos, mas é um jogador muito interessante e creio que está em evolução. Ele está progredindo e isso é bom — disse Patrick Vieira, técnico do Strasbourg, sobre Andrey Santos.

Chelsea
Ângelo e Andrey Santos, do Chelsea, no Strasbourg (Foto: Icon Sport)

City Group x Troyes

Quando foi anunciado em setembro de 2020 que o Troyes, clube da segunda divisão francesa, havia sido comprado pelo Grupo City, muitos de seus torcedores sentiram que seus sonhos haviam se tornado realidade.

— Ficamos felizes. Precisávamos de investimento financeiro e pensamos que conseguiríamos alguns jogadores realmente bons do City Group e isso nos ajudaria a ter sucesso, a voltar à Ligue 1 e permanecer lá — disse Benjamin Rund ao “The Athletic”.

O Troyes foi de fato promovido à Ligue 1 em sua primeira temporada sob a direção do Grupo City e terminou em 15º, entre 20, em 2021/22.

Mas depois veio o rebaixamento em 2022/23, com apenas quatro vitórias em 38 partidas, com a queda da primeira divisão, seguida por uma campanha terrível desta vez que os deixa em grave risco de cair para a terceira divisão.

Sob a propriedade do Grupo City, o Troyes gastou muito mais dinheiro no mercado do que qualquer momento de sua história, contratando dois jovens brasileiros — Metinho, do Fluminense, e Savinho, do Atlético-MG — além de talentoso equatoriano Jackson Porozo, do Boavista-POR, o sueco Amar Fatah, do AIK-SUE, e Mama Balde, nascido em Guiné-Bissau e que joga no Dijon, da terceira divisão francesa.

— Alguns jogadores realmente talentosos. Mas o Metinho assinou há três anos e nunca o vimos. Ele está emprestado à Holanda (no Sparta Rotterdam). Sávio assinou há dois anos, mas nunca o vimos em Troyes e nunca o veremos — disse Rund.

Savinho nunca chegou a atuar pelo Troyes. Passou a temporada passada emprestado ao PSV Eindhoven e agora joga pelo Girona, que também pertence ao Grupo City. O brasileiro já está confirmado para jogar a Premier League com o Manchester City na próxima temporada e o clube da segunda divisão francesa recebera mais de 20 milhões de libras, mas nunca terá o talento à sua disposição.

— São as nossas duas maiores transferências e nunca jogaram por nós. Contratámos jogadores extraordinários, mas um deles joga numa equipa de topo da La Liga. E para mim é a prova de que o nosso clube agora é apenas um negócio. É, “Vamos contratar um jogador e tentar lucrar o mais rápido possível”. Mas aqui em Troyes estamos em dificuldades. Estamos passando por um momento muito difícil — afirmou Rund.

ESP: Girona FC - Rayo Vallecano. La Liga EA Sports. Date 26
Savinho vai se juntar ao Manchester City na próxima temporada (Foto: IconSports)

Qual o objetivo do Grupo City, afinal?

O “The Athletic” pontuou que o projeto “multiclubes” não se trata de encontrar um local de aperfeiçoamento para os jogadores do Manchester City, muitos dos quais permaneceram no clube ou foram emprestados a outras equipas inglesas. A prioridade tem sido encontrar diferentes clubes onde colocar as dezenas de jovens jogadores promissores contratados pelo Grupo City de todo o mundo, mas especialmente da América do Sul.

O objetivo final tem sido desenvolver jogadores para o Manchester City, time matriz do grupo, mas até agora tem sido mais fácil falar do que fazer, tal é o padrão exigido pelo técnico do time, Pep Guardiola. Mas, em muitos casos, os jogadores acabaram sendo vendidos com fins lucrativos. Um dos muitos exemplos é Douglas Luiz, que ingressou nos Citizens vindo do Vasco da Gama em 2017 e passou duas temporadas emprestado ao Girona antes de ser vendido ao Aston Villa, também da Premier League, em um acordo de £ 15 milhões em 2019.

A meta do Troyes dentro do Grupo City foi comprometido pelo rebaixamento na temporada passada. Em casos como o de Savinho, a Ligue 2 foi considerada inadequada para o desenvolvimento do jogador por ser considerada menos técnica e mais física do que a primeira divisão francesa.

Agora, o time luta para não cair para a terceira divisão, algo que seria um golpe duro para o Grupo City, que diz que redobrará seus esforços para consertar as coisas, algo que não convence Rund.

“Sentimos que o clube perdeu identidade. Sentimos que estamos perdidos no meio do oceano.”

Alarme para donos de clubes da Premier League

Quem é Sheikh Mansour, dono do Manchester City?
Sheik Mansour, o dono do Manchester City (Foto: Icon Sport)

A Uefa soou o alarme no seu relatório anual de licenciamento de clubes em fevereiro do ano passado, escrevendo que o fenômeno dos multiclubes “tem o potencial de representar uma ameaça material à integridade das competições europeias de clubes” e de “distorcer a atividade de transferência, com uma percentagem crescente de transferências dentro de grupos de investimento e preços adequados aos investidores e não a valores justos”.

Mas o presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, parecia quase relaxado sobre o assunto numa entrevista ao podcast “Overlap”, de Gary Neville, um mês depois, sugerindo que talvez devesse flexibilizar as regras sobre propriedade de vários clubes, em vez de as endurecer.

Manchester City e Girona estão quase classificados para a Champions League da próxima temporada e o Grupo City espera conseguir convencer a Uefa de que são clubes suficientemente distintos em estrutura e operação, para que possam competir entre si. A entidade já abriu uma brecha na regra de que times de mesma propriedade não possam jogar a Liga dos Campeões na mesma temporada, quando RB Leipzig e Red Bull Salzburg estiveram presentes na principal competição continental de clubes do mundo.

Na França, a oposição à multipropriedade aumenta. Na semana passada, a Associação Nacional das Torcidas e torcedores de todo o país protestaram contra o fenômeno, alertando que a identidade e a alma do futebol francês e europeu estão ameaçadas.

Em nenhum lugar de França esta ameaça é sentida com mais intensidade neste momento do que em Troyes. Numa cidade de livros ilustrados, os torcedores queriam abraçar o conto de fadas: acreditar que eram “o clube da Cinderela que teve a sorte de ser resgatado por um belo príncipe”. A realidade, ao enfrentar a ameaça de um segundo rebaixamento consecutivo, é bem diferente.

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Romulo Giacomin

Formado em Jornalismo na UFOP, passou por Mais Minas, Esporte News Mundo e Estado de Minas. Atualmente, escreve para a Premier League Brasil.