A Argentina tentou vender o seu campeonato este ano como “a liga dos campeões do mundo”. Não ia colar, óbvio. Dos 23 jogadores do elenco no Catar, somente o terceiro goleiro joga no país. Nada a ver.
Mas imagina uma vitória brasileira na Copa do Mundo rolando agora na Austrália e Nova Zelândia. Aí é outra história. Das 23 atletas convocadas por Pia Sundhage, sete jogam no Brasil, inclusive titulares como Tamires, Luana e a goleira Letícia, mais a atacante Bia Zaneratto, às vezes titular, às vezes no banco. O time ganhando a Copa — ou até fazendo uma campanha emocionante — o pessoal no Brasil teria um grande incentivo para ir aos estádios ver as heroínas de perto.
Uma pena.
Pena didática, porque ajuda a mostrar uma realidade com frequência ofuscada. Fica normal no futebol os clubes reclamarem sobre as seleções. Tiram os jogadores, desgastam eles sem dar nadinha em troca.
Uma Copa do Mundo serve como uma enorme propaganda para o futebol. Quantas pessoas começaram a sua ligação com o esporte assistindo uma Copa, e somente depois pegaram o hábito de ir para os estádios?
Não se aplica a todos os torcedores, claro, mas é verdade sobre muitos. E tem um grande exemplo. Sem a campanha da seleção inglesa na Copa da Itália, teria sido muito mais difícil levantar o projeto da Premier League.
Vamos voltar ao tempo. Em 1989 o desastre de Hillsborough pareceu confirmar a impressão que o futebol inglês estava morrendo. O esporte estava matando pessoas numa escala industrial. Incêndio de Bradford, a tragédia de Heysel, o ar geral de descaso….
Sabe-se agora que Hillsborough representou o fundo do poço, que ia ter uma reação, com grandes mudanças (e perdas além de ganhos) que transformaram o futebol inglês no fenômeno global de nossos tempos.
Não aconteceu de noite para o dia. Foi um processo. Inicialmente, quando foi lançado em 1992, ficou difícil identificar algo de diferente na Premier League, especialmente no campo. Eram os mesmos jogadores britânicos jogando o mesmo futebol britânico. Levou um tempinho para o dinheiro novo atrair grandes jogadores dos quatro cantos do mundo, levou um tempinho para melhorar os gramados para permitir um espetáculo de qualidade.
O que mudou de cara foi o custo de ir. Porque os estádios foram reconstruídos, com a velha tradição de ficar em pé substituído por uma nova cultura de assistir sentado, e um aumento salgado dos ingressos. Então, no início você estava pagando bem mais para ver o mesmo futebol. Coisa de otário, não é?
Poderia ter dado errado, pelo menos nas primeiras temporadas. Não deu — e isso tem muito a ver com a seleção inglesa da Copa de 1990.
Premier League e a Copa de 90
Pouca gente no mundo tem bons motivos para lembrar da Copa da Itália, nem os alemães, que ganharam a Argentina em um cenário considerado a pior final de todos os tempos. A média de gols foi historicamente baixa. Poucos jogos memoráveis.
Acontece que em quase todos os jogos bons a Inglaterra estava presente. Até um 0 a 0 com a Holanda foi emocionante. O time jogava bem e era bastante carismático – especialmente o meio armador Paul Gascoigne, um talento tão natural e espontâneo que cativou a nação. Na semifinal, um empate de 1 a 1 com a Alemanha que terminou — lógico — com a vitória teutônica nos pênaltis. Gascoigne recebeu um cartão amarelo que iria afastar ele da final, caso o time se classificasse.
Ele chorou, e a Inglaterra chorou com ele. A campanha na Itália tratou-se de um caso glorioso do quase — coisa que para a mentalidade inglesa fica impossível resistir. Foi impressionante; muita gente se apaixonou pelo futebol pela primeira vez. Outros ex-devotos de repente lembraram porque antes tinham ficado apaixonados, e a velha chama incendeia de novo. E com todos os heróis jogando em casa, dava para vê-los a cada semana.
E, de repente, aquelas novas e caras cadeiras nos estádios se encontraram com bundas cujos donos estavam dispostos a pagar para sentar em cima delas. Nasceu a Premier League — uma caloteira que nunca reconheceu a dívida que tem com a seleção inglesa de 1990.