Por que a torcida do Liverpool vaia o hino da Inglaterra?

7 minutos de leitura

Quando é tocado o hino da Inglaterra, que tem como uma de suas frases “Deus, salve a rainha”, os torcedores do Liverpool geralmente vaiam a canção.

E isso gera repercussão. Especialmente quem não é de Liverpool e não sabe o contexto daquelas vaias, tratou a atitude dos torcedores como uma falta de respeito. Alguns comentários até falando que, se Liverpool se separasse da Inglaterra, seria melhor. E automaticamente isso já explica muita coisa…

A partir disso, a PL Brasil contextualiza os motivos que fazem a torcida do Liverpool vaiar.

Por que a torcida do Liverpool vaia o hino da Inglaterra?

Liverpool é um local diferente do restante da Inglaterra. É uma cidade trabalhista, sindical, com muitos imigrantes. Além disso, a terra dos Beatles é distante de Londres. Por isso, acaba criando a sua própria cultura.

Em um texto publicado pelo Trivela, Anna Carolina Fagundes, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de East Anglia, em Norwich, comentou como ocorreu esse isolamento.

“Londres é um país em si mesmo. O governo fica lá. Tudo fica lá. E os caras de Londres veem Liverpool como caipira. Eles têm sotaque próprio, cultura própria, comida própria. Mesmo depois dos Beatles e do rock and roll britânico, há a imagem de que tudo ‘ao Norte’ é caipira.

E é necessário entender como começou. São vários fatores que contribuem para Liverpool ser desta forma e os torcedores reagirem ao hino daquela maneira. E tudo se inicia ainda no século 19, com a Fome das Batatas.

Os imigrantes de Liverpool

OLI SCARFF/AFP via Getty Images

Você pode pensar: o que diabos batatas tem a ver com vaias de torcedores do Liverpool ao hino da Inglaterra na peleja diante do Manchester City?

É simples: as raízes emigratórias começam a ser criadas em Liverpool a partir da Fome das Batatas, que foi um acontecimento onde irlandeses passavam por situações adversas e houve emigração em massa, sendo a terra dos Beatles um dos principais destinos.

Os novos imigrantes foram tratados de forma hostil por outras cidades, criando um sentimento de nós contra eles. A cidade de Liverpool, que acolheu os irlandeses, teve boa parte dos seus moradores sendo não-reconhecidos como compatriotas de inúmeros ingleses da época.

Em 1911, quando alguns trabalhadores de Liverpool estavam em uma greve de transporte, o então secretário do interior, Winston Churchill, mandou seus homens para a cidade na intenção de conter uma multidão que estava nas ruas. Na ação dos policiais, dois jovens morreram.

Oito anos depois, em 1919, uma greve na polícia de Liverpool fez a elite inglesa temer uma revolução na terra dos Beatles – que não ocorreu. A Segunda Guerra também é impactante na cidade de Liverpool. Isso porque boa parte dos povoados viviam bem financeiramente, com mansões enormes e o comércio dando lucro. Entretanto, com os ataques, as comunidades mudam de forma consideravelmente. Dão lugar ao mau cheiro e ruas desertas.

O pesadelo Thatcher em Liverpool

Christopher Furlong/Getty Images

Na década de 1960, com a ascensão da música e arte na cidade, o povo de Liverpool se conecta com essas atividades, transformando aquilo em uma das coisas peculiares do local.

De 1979 e 1990, Liverpool vive um inferno. O pior de seus pesadelos e que até hoje a cidade não perdoa e nunca vai. Duas palavrinhas resumem este período: Margaret Thatcher.

Thatcher se elegeu prometendo acabar com os sindicatos e diminuir os subsídios do governo para a indústria. A Dama de Ferro temia outra epidemia de greves como ocorreu nos anos 1970.

Então, a regra usada por ela era basicamente assim: se não deu lucro suficiente, a indústria vai fechar. Não importavam as consequências dessa medida. E essa decisão não caiu bem em Liverpool.

Isso porque a terra dos Beatles já tinha raízes de imigrantes, sindicais, trabalhistas. Tudo que a Dama de Ferro sempre abominou durante seus discursos. Era óbvio que Liverpool não aceitaria aquilo.

Leia mais: Por que Margaret Thatcher é odiada em Liverpool?

Cumprindo a promessa de campanha, Margaret Thatcher fez de tudo para vencer os sindicatos. E conseguiu. Além disso, ela privatizou inúmeros setores da indústria, o que causou desemprego e uma revolta gigante na população – especialmente a de Liverpool.

Em matéria publicada pela BBC, Joe Bennett, ex-funcionário da fábrica Bird’s Eye – localizada em Kirkby, comunidade de Liverpool – e integrante do sindicato ASTMS (Associação de cientistas, técnicos e gerentes), contou sobre a reação dos trabalhadores ao saberem que a fábrica onde trabalhavam estava sendo fechada por Thatcher, deixando cerca de mil pessoas desempregadas.

“Era como se o sal estivesse sendo esfregado em nossos ferimentos. Todos nós culpamos o Governo Thatcher”.

margaret-thatcher-primeira ministra
Crédito: Pixabay

E o caos causado pela Dama de Ferro não parou por aí. Em documentos divulgados em 2011, afirmavam que pessoas do seu governo a aconselharam para deixar Liverpool “em declínio” e “não gastar recursos muito escassos com a cidade.”

Thatcher acabou com o bem estar social de Liverpool. Desemprego aumentando como nunca, bairros de imigrantes e negros com cerca de 81% das pessoas sem trabalho… Não poderia dar certo.

Uma das coisas que a cidade de Liverpool repudia até hoje foi a forma como a Dama de Ferro ajudou os policiais da época no combate aos moradores. Isso porque os soldados procuraram imediatamente o governo para pedir táticas mais duras, equipamentos melhores e uma forma de repressão ainda mais legalizada.

E ao receber o pedido, Margaret Thatcher afirmou ao parlamento que, se os policiais realmente quisessem, ela estaria de acordo com o uso de canhões de água, gás lacrimogêneo e balas de plástico.

Tragédia de Hillsborough

tragédia de hillsborough stadium torcedores PAUL ELLIs Collection AFP
(Credit Paul Ellis Collection AFP)

Outro ponto para entender o motivo da cidade ser distante é a Tragédia de Hillsborough, onde 97 torcedores dos Reds foram mortos e mais de 800 ficaram feridos, durante a semifinal realizada entre Liverpool x Nottingham Forest, no dia 15 de abril de 1989.

Uma série de erros causou o desastre. O primeiro: local da partida. O estádio de Hillsborough, localizado na cidade de Sheffield, já sofria com graves problemas de infraestrutura. Entretanto, inexplicavelmente, recebia inúmeros jogos decisivos.

Em seguida, colocaram a torcida do Liverpool no menor setor do estádio – mesmo os Reds sendo maioria. Era óbvio que iria dar problema. Mas as autoridades preferiram ignorar e negligenciaram aquilo. E custou muito caro.

Com o passar do tempo, o número de pessoas foi aumentando. Mas os policiais não souberam organizar a entrada dos torcedores. E na tentativa de colocar todo mundo para dentro, abriram o portão do setor Leppings Lane. E isso foi um problema.

Isso porque o setor já estava completamente lotado. E, com a entrada dos torcedores, o local ficou com o dobro de pessoas em relação à sua capacidade. Resultado: um desastre histórico.

Leia mais: Conheça Bobby Duncan, primo de Gerrard e promessa do Liverpool

E se você pensa que os responsáveis foram punidos imediatamente após a tragédia está enganado. Durante 23 anos, os torcedores do Liverpool foram vistos como baderneiros e assassinos de seus amigos. E mesmo que esse sentimento fosse rejeitado na cidade, era o que boa parte do mundo acreditava.

Isso porque uma farsa de narrativas foi montada para criminalizar às vítimas. Algo que era bem cômodo para o governo, que não tinha capacidade para resolver os problemas e optou por jogar a culpa no torcedor.

Uma das táticas da farsa foi a alteração de provas que tiravam a culpa da polícia, como por exemplo, imagens das câmeras do estádio. Além disso, mudaram cerca de 100 depoimentos para não incriminar os policiais. Todas essas informações estão presentes no relatório oficial de Hillsborough.

Leia mais: A luta histórica de 5 jogadores negros contra o racismo na Inglaterra

O jornal The Sun fez uma das capas mais repugnantes da história. Na capa, o diário afirmava até que os torcedores tinham urinado nos policiais e saqueado vítimas. A construção dessa matéria se deu em acordos feitos entre as autoridades policiais e os repórteres do jornal.

E obviamente Liverpool não aceitou isso. Desde esse dia, toda a cidade repudia o jornal e ele é boicotado.

O jornalista e comentarista dos canais ESPN Mário Marra revela que o caso revela que o descaso de Margaret Thatcher em relação à punição aos responsáveis e às vítimas de Hillsborough foi a gota d’água da cidade Liverpool com a Dama de Ferro.

“Todo mundo estava cansado de saber que tinha coisa errada ali. Que tinha coisa de indenização e que era melhor jogar a culpa em outros e não assumir. Ali ela foi leviana. Ali ela foi má. Muita gente morreu ali. Além da dor de muitas pessoas que ficaram vendo a memória dos seus sendo tratada daquela forma. E era conveniente para ela e para o governo aceitar uma versão que era totalmente descabida.

Com alguns pontos históricos, dá para entender o motivo pelo qual Liverpool acaba não sendo igual as outras cidades e possui um olhar diferente para a maioria da Inglaterra, que na maioria das vezes olhou com outros olhos para a terra dos Beatles.

Política e futebol se misturam? Sim

Falando do Liverpool, há uma grande ligação com movimentos sindicais e ideologias de esquerda – que também estão relacionadas à cidade. Um dos maiores técnicos da história dos Reds, Bill Shankly, foi um dos primeiros a relacionar o clube com a política. Veja uma de suas grandes frases.

“O socialismo em que acredito é que todos trabalhem uns para os outros, todos tendo uma parte das recompensas. É como vejo o futebol, a maneira como vejo a vida”, disse Shankly.

Outro exemplo: em 1965, quando o Liverpool foi campeão da Copa da Inglaterra pela primeira vez, a torcida dos Reds, no mesmo Wembley de domingo, não cantava o hino da Inglaterra. Eles trocaram o “Deus, salve a rainha” por “Deus, salve nosso time”. Não é algo novo.

O Liverpool também sempre foi um clube progressista. É um dos muitos clubes que apoia de forma oficial a parada LGBT que acontece na Inglaterra. Consequentemente, também anda lado a lado com a cidade. Os Reds também serviram como refúgio ao caos instalado na década de 1980, onde empilharam taças nacionais e internacionais.

Nos dias de hoje, o técnico Jürgen Klopp também é um cara de esquerda. Ele já afirmou que, se tem uma coisa que ele nunca vai fazer em sua vida, é votar na direita. Sobre o Brexit, por exemplo, o treinador já se manifestou contrário à saída do Reino Unido da União Europeia.

Na estreia da Premier League 2018/2019, por exemplo, o técnico alemão ganhou uma imagem sua ao lado de outros técnicos lendário da história do Liverpool em uma homenagem que também faz referência à propaganda comunista de dezenas de anos atrás, onde Karl Marx e Friedrich Engels apareciam enfileirados.

Leia mais: O calvário do Liverpool: 8 temporadas seguidas na segunda divisão

É importante destacar que, na visão da torcida do Liverpool, vaiar o hino não é um sinal de desrespeito, mas sim de protesto. Manifestações contra falhas históricas que acabaram danificando a cidade, que começaram desde Churchill e foram ampliadas por Margaret Thatcher.

Também é um protesto à monarquia, que segundo eles beneficia apenas uma parte de privilegiados e acaba ignorando o povo. Os scousers, como são conhecidos os moradores de Liverpool, afirmam que o hino representa a elite, onde eles não estão inseridos. Suas raízes são trabalhistas e ninguém mudará.

É simples apontar que os torcedores foram desrespeitosos na hora de vaiar o hino, onde ainda há parte da imprensa que tenta culpar os fãs de todo jeito.

Liverpool vai continuar incomodando a elite inglesa como fez em todos esses anos. Não abrirá mão da sua cultura, do seu povo, do seu jeito mais progressista e de outras coisas. Eles só querem respeito e justiça.

Lucas Holanda
Lucas Holanda

Jornalista em formação, olindense e apaixonado por futebol.