Podia não parecer, mas algo sempre acontecia quando Paul Scholes pegava na bola. Livre, dava um jeito de botar velocidade no jogo, com uma arrancada certeira ou um lançamento mortal, uma bola que saía veloz, mas que dava um jeito de cair mansa no pé do seu atacante.
A classe de Paul Scholes
Marcado, se entrelaçava na bola, interpondo os botes adversários com a rapidez das suas canelas pequenas, mas duras, que davam e recebiam pancadas na mesma medida.
Incapaz de roubar a bola, sequer de chegar perto dela, o marcador solta o fôlego, hesita, o que já é tempo o bastante para o camisa dezoito sair do aperto e, aí sim, dar seus golpes precisos.
Isso quando não sumia do meio-campo, circulando por sabe-se lá onde, até aparecer sozinho na entrada da área. A última coisa que o goleiro adversário via era sua perna direita indo de encontro com a bola.
Com Scholes em seu meio-campo, muita coisa aconteceu no Manchester United. 27 delas, para ser mais exato, onze vezes na Premier League e duas na Champions League. Fez acontecer muito mais durante as 718 partidas pelo United – o terceiro na lista dos que mais vestiram a camisa do time Manchester -, único clube da sua carreira de dezenove anos.
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Repetindo muitos dos feitos citados lá em cima, Scholsey fez a maioria de seus 155 gols pelos Red Devils. Foram 107 só na Premier League, onde também deixou 55 assistências, completou mais de nove mil passes e acertou mais de mil lançamentos.
Sua técnica apurada e a capacidade que tinha para conduzir um jogo marcaram época, além de um exemplar comprometimento com a equipe. Pertence a um grupo de jogadores que jogam de maneira tão eficiente que beiram a discrição.
Scholes exercia um estilo de jogo que não é exatamente popular, mas é certamente reconhecido. Zinedine Zidane dizia que não cansava de ver o meia jogar, e que era “quase impossível de marcar”. O francês, inclusive, se arrepende nunca ter conseguido jogar ao seu lado.
Xavi Hernández, outro colega de posição, é outra fã declarado do “gênio tímido”.
“Ele é um modelo, o melhor meia que eu vi nos últimos quinze, vinte anos”, disse o espanhol ao The Guardian, em 2011.
A simpatia do mundo da bola foi conquistada não apenas pelo sucesso em campo, mas por uma personalidade tímida, mas autêntica, como hoje acontece com Kanté e Iniesta, por exemplo.
O garoto do cabelo vermelho e da camisa vermelha
Essa dualidade sempre esteve presente na vida de Paul Scholes, até porque o futebol sempre esteve na sua vida. E era por ele que o franzino rapaz de Salford conseguia expressar o que socialmente não conseguia.
Com a bola no pé, a timidez se tornava foco, a magreza, agilidade, o tamanho virava um valioso centro de gravidade baixo e até a asma – sim, Scholes era um volante com asma – era uma oportunidade para pensar melhor a jogada, em quando gastar seu precioso fôlego.
Quando essa sua “voz” futebolística chegou aos ouvidos de Brian Kidd, um dos responsáveis pelas categorias de base do United, era quase tarde. O jovem Paul já fazia parte da academia do Oldham Athletic, clube no qual faria uma passagem-relâmpago como treinador mais de duas décadas depois.
Lá, dividia campo com Gary e Phill Neville e Nicky Butt, que ajudariam não só em sua adaptação ao Manchester, mas também no convencimento para se transferisse ao clube vermelho, depois da indicação do olheiro Mike Coffey.
Mike acompanhava o garoto desde a época do colégio, quando dividia seu tempo entre a bola de futebol e a de críquete.
O entusiasmo do scout era tão grande que conseguiu convencer não só Kidd, mas o próprio Alex Ferguson, que foi pessoalmente assistir ao meia, na época com dezessete anos – três anos depois, portanto, de ter assinado seu primeiro contrato com o United.
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“Sem chances, ele é um anão”, teria dito o treinador, à primeira vista. “Se ele não se tornar um jogador de futebol, nós todos temos que desistir”, retificou, um ano depois. “Um jogador perfeito, e apesar dos inúmeros bons jogadores que treinei na minha carreira, ele está entre os melhores, sem dúvida”, se declarou, no ano passado.
As limitações físicas não foram um obstáculo páreo para o talento de Paul Scholes, mas foram um obstáculo, ainda assim, ultrapassado, inclusive, com a valiosa ajuda do igualmente valioso back staff do United, que acreditou no seu potencial até o fim.
Já imaginou se ele tivesse continuado no Oldham? Onde iria chegar? O suporte do clube a um franzino jogador inglês no fim dos anos oitenta foi imprescindível, uma gestão muito à frente do seu tempo, o que ajuda a explicar o sucesso absoluto do time nas décadas seguintes.
Durante sua adolescência e juventude, era realmente difícil imaginar que o meia progredisse em sua carreira futebolística. Até Gary Neville, um de seus mais longevos colegas, admitiu que não pensava que a camisa dezoito teria o dono que teve.
“Ele não conseguiria aguentar. Ele não seria capaz de aguentar fisicamente tudo o que estava acontecendo ao redor dele no campo”, explicou o ex-lateral, ao podcast “Quickly Kevin, Will He Score?”
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Para Neville, o contraste com o físico de caras como Nicky Butt e a velocidade de outros como David Beckham piorava a situação. “Mas o clube via ele como um jogador”, complementa.
O mérito da comissão técnica na transformação e progressão de Scholes, porém, deve ser dividido com o próprio atleta, que segundo Neville, “parou de beber e comer tortas” e aí sim passou a evoluir como profissional.
“Sua mudança em dois ou três anos foi absurda”, finaliza ou antigo capitão do United. “Ao fim da minha carreira percebi que ele é o melhor com quem já joguei”. Palavras fortes, justificáveis.
De fato, é enorme o salto que Scholes dá no futebol, da reserva dos juniores a titular absoluto do profissional, o verdadeiro queridinho de Alex Ferguson, que colocou o craque na restrita lista de world class players que treinou.
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Na biografia de Ferguson, o nome do meia é de longe o mais citado, junto das palavras “talento” e “futuro”. O “professor” via no jogador a combinação perfeita entre dotes técnicos, mentais e profissionais.
Diz o livro que o escocês chegou ao ponto de pedir conselhos e segundas opiniões sobre questões do dia-a-dia, como a permanência ou não de Van Nistelrooy na equipe.
Scholes, o Gênio Tímido, do Manchester United
As páginas, ainda assim, só são reveladoras em questão aos bastidores. A importância de Paul Scholes era facilmente vista dentro de campo, seja na marcação, na organização ou na definição.
Sua partida de estreia, por exemplo, já dava uma amostra de, bom, tudo isso que falamos acima. Começando como titular num confronto de Copa da Liga Inglesa contra o Port Vale, o meia, usando a camisa dez, fez os dois gols da virada do United.
O primeiro, pressionando e roubando a bola na entrada da área adversária, concluindo com frieza e categoria por cima do goleiro; o segundo infiltrando-se na área na hora certa para cabecear, da entrada da pequena área.
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Esses atributos seriam utilizados, e muito, na histórica temporada de 1999, quando o United conquistou a tríplice coroa. Scholes atuou em 51 partidas, um recorde da sua carreira.
Nenhuma delas, infelizmente, foi a final da Champions League contra o Bayern de Munique. Talvez com a sua presença haveria bem menos sofrimento…Pelo menos esteve presente no levantamento das outras duas taças, tendo até feito o gol do título da FA Cup, contra o Newcastle.
A sua melhor temporada, porém, deve ser a de 2002/2003. No fino da bossa, da bola e da forma, o meia desfilou em campo em diversas partidas, como essa contra o Liverpool, e essa outra contra o Tottenham, além, é claro, de seu hat-trick contra o Newcastle.
Aliás, os gols do “Gênio Tímido”, como passou a ser chamado pela torcida, além de variações como “Gênio Ruivo”, merecem um capítulo à parte. Em 2002/2003, foram vinte, de um total de 155 na carreira, com muitos e muito chutes de fora da área, além de maliciosas infiltrações na área.
Mas vamos deixar Scholes e suas pernas falarem por si, como esse contra o Barcelona, em 2009, este contra o Bradford, em 2000, ou mesmo este de 2006 contra o Aston Villa. Ah!
As duplas
O que não podemos deixar de falar é sobre as duplas que Paul Scholes formou em sua carreira. Com uma mentalidade extremamente coletiva e um estilo bastante específico, mas fluído, o meia ajudou a eternizar algumas duplas de meio-campo, advento quase sempre utilizado por Ferguson em suas táticas e formações.
Em dezenove anos de carreira, foram muitas parcerias no clássico 4-4-2 do treinador, mas sobressaem-se as formadas com Robbie Keane e Michael Carrick, as mais vitoriosas e mais completas.
Com Keane ao seu lado, foram quinze títulos conquistados, sendo seis campeonatos ingleses. O irlandês jogava mais recuado, fazendo o trabalho sujo na marcação, além de exercer um fundamental papel de liderança dentro de campo.
Ao lado de Carrick, Scholes e o United faturaram sete títulos, cinco deles da Premier League. Herdando a camisa dezesseis do próprio Keane, o Carrick tinha um estilo ainda defensivo, mas sua sincronia com Scholes na saída de bola e construção de jogo era inigualável.
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Junto de Keane, o jovem Paul Scholes formava o coração de um United feroz, no auge de sua corrida pela hegemonia inglesa. Com Carrick, o camisa dezoito completava a sustentação de um “frio” Manchester, que já defendia seu domínio nacional.
Uma pena que os responsáveis pela seleção inglesa não acreditaram nessa capacidade coletiva de Scholes, preterido na maioria das vezes por Gerrard e Lampard. Era por vezes jogado à meia esquerda, o que teria sido o motivo de sua aposentadoria precoce da seleção, e que é veementemente negado pelo atleta.
Autêntico ou complicado?
Foi em 2004, aos 29 anos, que Paul Scholes anunciou o fim do seu ciclo na seleção da Inglaterra. Na época, falou que a distância da família era algo que pesava muito para ele, o que todo mundo pensou ser uma um eufemismo para a questão da posição.
E quando ele recusou uma possível convocação à Copa do Mundo de 2010? Ele alegou não ser a melhor opção, e que havia melhores escolhas do que ele. A opinião pública mais uma vez não acreditou nele.
Mas quem o conhece sabe que as duas justificativas são perfeitamente plausíveis, ainda que não inteiramente verdadeiras. O inglês é descrito como um cara muito “família”, e falando sobre suas motivações, sempre as descreveu de forma simples, de viver pela rotina do treino para a casa e de casa para o treino.
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Entretanto, o jogador viria a admitir que tinha problemas com os “jogadores egoístas” na seleção inglesa, o que, no fim, só reforça seu posicionamento na negativa para a Copa de 2010.
No entanto, Sven-Goran Eriksson, técnico da Inglaterra a Copa de 2006, alertou para o problema que o meia tinha com a temperatura fora da Inglaterra, o que pode ter influenciado na recusa à sua terceira Copa do Mundo (atuou em 1998 e 2002).
Para ser justo, problemas físicos também foram preponderantes. Além da asma, o inglês tinha um problema crônico no joelho, e depois de 2006, começou a também ter problemas na visão.
De qualquer maneira, as recusas só reforçam a autenticidade de Scholes, que nesta altura já pode ser traduzida pelo foco que tinha apenas no jogo, e a quase repulsa que tinha pela rotina de um atleta profissional de futebol.
A nova voz
Apesar de ser um jogador diferenciado, seja dentro, seja fora de campo, Paul não fugiu da mazela enfrentada pela maioria dos boleiros: a dificuldade de abandonar o jogo.
Depois de anunciar a aposentadoria dos gramados, em 2011, não conseguiu resistir ao chamado de Ferguson em 2012. A equipe colecionava meio-campistas no departamento médico e o rival Manchester City disparava rumo ao título inglês.
O meia então voltou aos gramados por mais uma temporada, e arrebentando, diga-se de passagem. Seu impacto na equipe foi enorme, mas não chegou a impedir o título do City. Serviu, no entanto, para calar os críticos de seu súbito retorno.
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Em 2013, aos 38 anos, despediu-se de vez dos gramados, acompanhando a aposentadoria de Fergie. Desde então, Paul Scholes parece buscar uma nova voz, uma nova maneira de lidar com o afastamento de sua atividade vital.
Uma delas foi se afastar da sina de “tímido”. Desde a primeira aposentadoria, seguiu os passos de muitos ex-jogadores ao manifestar-se de forma recorrente na mídia sobre o ex-clube e o futebol em geral.
Chegou a ser colunista do jornal “The Independent” e comentarista do canal “BT Sport”, posto que deixou para ser técnico do Oldham Athletic, o clube que rejeitou na infância, e onde exerceu a profissão por apenas 31 dias, ainda em 2019.
Foi também parte da comissão técnica do United, em 2014, e já recebeu um convite de Solskjaer para repetir a função. Atualmente, faz parte do grupo proprietário do Salford City, clube de sua cidade natal. Os outros membros desse grupo você conhece, já que fizeram parte da famosa “Turma de 92”.
Ao mesmo tempo, é investigado pela FA por supostas apostas ilegais, que teriam sido feitas já quando tinha uma porcentagem do time, o que é contra as normas da Federação.
Legado
Independente da construção da sua voz atual, na linguagem da bola seu legado é bastante consagrado, definitivo, extenso, até.
Não só abriu as portas da Premier League para jogadores com menor potência física, como também influenciou toda uma geração de meio-campistas, na Inglaterra e no Mundo.
Paul Scholes https://t.co/U301mtgHsQ
— Toni Kroos (@ToniKroos) December 11, 2017
Sua versatilidade dentro do setor central, sua habilidade de jogar em pequenos espaços e atacar os grandes espaços, a maneira como lia o tempo da jogada, tudo isso virou referência na posição.
Paul Scholes pavimentou o caminho na Premier League para caras como Modric, Fábregas, David Silva. Phil Foden é de outra geração, mas também muito que agradecer ao eterno camisa dezoito, por encantar seu chefe, Pep Guardiola.