“O Homem das Cavernas”: uma ode ao futebol inglês

Por trás de uma interessante aventura na Idade da Pedra, “O Homem das Cavernas” é uma verdadeira ode ao futebol inglês. A animação de 2018 está recheada de referências e alusões ao esporte bretão. E a PL Brasil agora explica tudo isso. Contudo, caso ainda não tenha assistido ao filme (disponível no Prime Video), saiba que traremos alguns spoilers ao longo do texto.

O futebol no stop motion de Nick Park 

“O Homem das Cavernas” é criação de Nick Park, roteirista, diretor e produtor conhecido e aclamado por suas animações em stop motion. Nick Park é, na verdade, um dos principais expoentes dessa técnica cinematográfica. Além do filme aqui destacado, ele é responsável pelas produções de A Fuga das Galinhas, Wallace & Grommit e Shaun, o Carneiro – todas fruto de parceria com o estúdio Aardman Animations, sediado em Bristol.

Embora não seja um torcedor fanático, o cineasta nascido em Preston é fã de futebol e há tempos tinha o projeto de levá-lo para as telas. Por trás do stop motion, a ideia central era promover um embate entre a Idade da Pedra e Idade do Bronze. Nessa perspectiva, como elemento central do conflito, entra o futebol, orgulhosamente reivindicado como invenção inglesa.

E é justamente nesse sentido que a narrativa traz tantas alusões, explícitas ou não, à história futebol inglês – e a tantos outros elementos da cultura britânica. Para tanto, a abordagem do “beautiful game” passa por rivalidades históricas, lances memoráveis, jogadores marcantes e narradores icônicos do imaginário popular britânico.

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Goona, o futebol feminino e uma comemoração histórica

Logo de imediato, um elemento que chama a atenção em “O Homem das Cavernas” é o protagonismo futebolístico de uma personagem feminina. Trata-se de Goona, cuja voz pertence à Maisie Williams (a Arya Stark, de Game of Thrones), que se torna a grande heroína da narrativa.

O arco em torno dela é a luta por uma oportunidade no futebol, no qual são preteridas as mulheres. Aqui, a semelhança com a realidade não é mera coincidência, embora Nick Park tenha declarado que o protagonismo da personagem é mais fruto de um encaixe no enredo. Mesmo assim, o destaque não parece ter sido uma escolha ao acaso, sobretudo no momento em que o futebol feminino começa a se tornar tão revelante na Inglaterra.

De todo modo, fato é que Goona teve um enorme apelo do público e da crítica e trouxe um grande brilho à história. No filme, além de ensinar as técnicas do esporte aos homens (e mulheres) das cavernas, quase como uma treinadora, ela lidera a equipe em campo na partida contra o Real Bronzio.

Por sinal, Goona supostamente é uma referência clara e objetiva da narrativa a um elemento futebolístico inglês. Isso porque se acredita que o nome da personagem esteja diretamente relacionado à palavra Gooner (uma derivação de Gunner). O termo se refere aos torcedores do Arsenal, clube de Londres historicamente conhecido como Gunners.

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Além disso, há uma outra alusão a eventos reais envolvendo Goona em duas cenas nas quais ela comemora um gol deslizando de joelhos no gramado. Em ambas, incorpora-se o mesmo elemento, uma celebração marcante do futebol inglês nos últimos anos, já protagonizada por diversos jogadores, e também treinadores.

Dentre os técnicos, a derrapada em campo mais lembrada talvez seja de Paolo Di Canio, então comandante do Sunderland, em clássico contra o Newcastle, em 2013. Já entre os representantes jogadores figuram Didier Drogba (em 2012 contra o Bayern de Munique), Emmanuel Adebayor (em 2009 contra o Arsenal) e Thierry Heny (em 2002 contra o Tottenham).

Mas o atleta mais associado à comemoração é provavelmente outro, Ole Gunnar Solskjaer, atual treinador do Manchester United. O ex-atacante dos Red Devils foi de joelhos no gramado do Camp Nou após seu histórico gol contra o Bayern de Munique na final da Champions League 1998/1999. Aliás, essa seria mais uma explicação bastante lógica e simbólica para a escolha do nome da protagonista.

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Memórias do futebol

homem das cavernas filme

Já na abertura do longa, descobrimos que a história se passa perto de Manchester, cidade que abriga os rivais Manchester United e Manchester City. E a imagem do dérbi realmente fica bastante evidente no jogo decisivo da trama, quando colocados frente a frente os vermelhos e os azuis.

Além disso, durante a cena, a equipe da Idade da Pedra é referenciada como Early Man United, o que de imediato também nos remete aos Red Devils. Aliás, Early Man era o título originalmente esboçado para estampar o filme. Todavia, sem o United, a produção final ficou sendo Early Man – a nós traduzido como “O Homem das Cavernas”.

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Tratado de forma épica, o referido jogo ocorre no Royal Bronzio, “o solo sagrado”, em mística semelhante à que cerca o lendário Wembley. E suas arquibancadas de madeira podem levar os telespectadores a lembrar de Craven Cottage, casa do Fulham e um dos poucos estádios ingleses que até hoje mantém preservada a estrutura centenária.

Nelas, em meio a bandeiras e torcedores a caráter, alguns cantos são reconhecíveis. É possível distinguir com certa clareza, por exemplo, a repetição de “you're going down the mine”. Na trama, uma alusão ao trabalho nas minas, o verso é referência a “you're going down”, entoado contra os rivais para indicar um rebaixamento de divisão.

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No mais, dentre tantos elementos memoráveis do futebol inglês, também se destaca a reação de Hognob (Porção) após o gol de Goona contra o Real Bronzio. É outra alusão a uma comemoração icônica, mas dessa vez bastante específica. Trata-se da imitação de robô feita por Peter Crouch em 2006, após balançar as redes pela seleção inglesa, e repetida por ele em 2017, ao marcar seu 100º gol na Premier League, pelo Stoke City.

Já em meio aos jogadores da animação, o que mais que se sobressai certamente é Jurgend, por muitos visto como representação de Jurgen Klinsmann, astro alemão que passou pelo Tottenham nos anos 1990. Além da semelhança visual, acentuada pelo uso de uma faixa nos longos cabelos louros, o personagem incorpora característica bastante associada ao ex jogador: a simulação de faltas.

O futebol é inglês

Quanto ao mencionado Real Bronzio, o time do Lord Nooth é uma interessante alegoria aos grandes clubes europeus. E, se não restrita, pelo menos bastante endereçada ao Real Madrid. O próprio nome da equipe, por óbvio, já nos remete ao clube merengue. De forte influência real – como os madridistas durante a ditadura de Franco – o Real Bronzio reúne os melhores futebolistas do mundo, tal qual um esquadrão galático.

Aí até há uma sátira, quando Dino diz que os jogadores são “overpaid“, portanto supervalorizados, algo mais que evidente nos últimos anos. Nesse passo, ao retratar a internacionalização do futebol, o filme aproveita para criar um conflito entre os criadores históricos do jogo, os ingleses, e as potências esportivas que assumiram o protagonismo a nível mundial.

Até por isso, acentuando esse choque, a voz dada por Tom Hiddleston ao Lorde Nooth assume um nítido acento francês. Ainda assim, a maior rivalidade no cenário de fato é entre Inglaterra e Espanha, como introduz a alusão ao Madrid. Isso porque, no futebol, foi à sombra sobretudo do espanhóis que os britânicos estiveram na última década.

No Brasil, para a promoção de “O Homem das Cavernas”, a distribuidora Paris Filmes tentou transportar a rivalidade para um contexto local, de brasileiros e argentinos. Aliás, tal perspectiva é até reforçada por aspectos originais da produção, como referência quase clara à bandeira da Argentina nos cômodos de Lord Nooth.

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De todo modo, na ideia como concebida, questiona-se quem verdadeiramente deveria dominar o futebol. Assim, há uma valorização das origens do esporte, à medida que evidencia a tradição inglesa. Sob a liderança de Dug (Eddie Redmayne), chega-se à conclusão, portanto, de que, tendo crescido longe de suas raízes, o futebol deve ser resgatado por seus criadores, em um tom carregado de “football is coming home“.

Nesse sentido, em diversas cenas são utilizados termos em referência ao Lorde Nooth, mas que, na verdade, remetem ao Campeonato Inglês. Os mais óbvios são “Premier Leader“, de notória semelhança com Premier Legue, e “Premiership”, justamente como era conhecida a primeira divisão inglesa antes de sua era moderna.

Além disso, junto aos elementos já destacados, a alusão a narradores que marcaram época na Inglaterra reforça a imagem do futebol como herança nacional. Os locutores interpretados por Rob Brydon parecem ter sido inspirados em Des Lynam e Alan Hansen, mas também com traços dos icônicos Brian Moore, John Motson e Barry Davies.

Copa do Mundo e FIFA

Em meio a inúmeras referências às transmissões esportivas, há uma em específico que a nós pode passar despercebida, mas certamente não aos ingleses. Ao fim do jogo, quando um pato gigante invade o gramado, um dos narradores diz “a giant duck is on the pitch, he thinks it is all over; it is now“.

A alusão aqui é à icônica reação de Kenneth Wolstenholme, então comentarista da BBC, ao quarto e último gol da Inglaterra (o terceiro de Geoff Hurst), na final da Copa do Mundo de 1966, já nos acréscimos. Assim, no imaginário inglês, a maior glória nacional do esporte é marcada justamente pela frase “they think it is all over; it is now“.

Aliás, na animação os homens da cavernas vencem o Real Bronzio vestindo camisas vermelhas e calções brancos. Não por acaso, esse é exatamente o uniforme dos Three Lions na decisão em 1966, em Wembley, contra a Alemanha Ocidental.

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Por uma feliz coincidência, graças a um avanço surpreendente na produção, o filme estreou em 2018, semanas antes da Copa do Mundo. Já de modo aí sim proposital, o troféu do longa se assemelha e muito ao que atualmente representa o torneio mundial da Fifa.

A entidade, por sinal, é personagem importante da narrativa, ainda que disfarçadamente, por óbvio devido a questões legais. Mesmo assim, fica fácil notar que a sonoridade de Ofeefa, a rainha da Idade do Bronze, é idêntica à da entidade máxima do futebol. E a alusão é sim totalmente proposital.

Há até cena de implícita crítica à entidade, quando Lord Nooth se refere à Ofeefa como “aquela bruxa velha”. E ele ainda acrescenta: “ela não sabe o que acontece aqui”. Ora, aí se questiona a estrutura do futebol, que muitos acreditam estar corrompida. E, como visto, é realmente esse o tom que prevalece na narrativa, de deturpação do esporte como concebido pelos ingleses, à medida que afastado de seus fundadores.

Por isso, em contrapartida, revela-se como solução do enredo justamente a ideia de resgatar as raízes do esporte, isto é, o futebol verdadeiramente inglês. Conforme propõe “O Homem das Cavernas”, necessário sim preservar o passado. Contudo, não para se prender a ele, e sim reproduzi-lo, a fim de construir uma nova história. Afinal, como mostra a trama, “football is coming home”.

Rafael Moro Brandão
Rafael Moro Brandão

Estudante de Direito na Universidade de São Paulo. Fanático por futebol e apaixonado pelas histórias que o esporte proporciona.