Dois dos principais brasileiros na Premier League atualmente são companheiros de time no Newcastle: Joelinton e Bruno Guimarães. O primeiro virou um queridinho da torcida assim que deixou de ser atacante para virar meio-campista dos bons, enquanto o segundo chegou do Lyon com status de ídolo em potencial.
[são 6 ou 7 brasileiros? Aqui constam 6]
Apesar de a história dos Magpies não ser repleta de brasileiros — apenas sete ao todo — os dois últimos foram muito bem recebidos. E isso tem um motivo enraizado nas similaridades culturais entre Newcastle upon Tyne, localizada no nordeste da Inglaterra, e experiência de vida de muitos jogadores brasileiros.
Isso é o que aponta um ex-jogador do clube e atual membro da direção do Newcastle United, com quem a reportagem da PL Brasil conversou no fim do ano passado. O papo com o dirigente aconteceu em off devido à regra do clube de não permitir entrevistas sem aprovação prévia.
Com base nessa comparação, a PL Brasil foi explorar melhor a relação entre o clube, que tem dois brasileiros como ídolos, e a cidade que os recebeu e entender porquê ela tem um quê de casa.
Histórico brasileiro ‘combina’ com Newcastle
Uma cidade com cerca de 300 mil habitantes e a 450 quilômetros ao norte de Londres, de grande força industrial ao longo dos anos e que, por isso, é dominado por uma classe trabalhadora. Em Newcastle upon Tyne, um povo menos abastado busca refúgio emocional no único time grande da cidade que, por todo o contexto, privilegia jogadores de raça.
Os moradores de Newcastle defendem que a região é por muitas vezes ignorada e inferiorizada pelo centro do país, concentrado na capital Londres. Em campo, o sentimento pode ser resumido como “nós” (de Newcastle), os desafortunados, contra “eles” (dos grandes centros), os poderosos. E o espírito de luta está enraizado na população.
Gustavo Duarte, engenheiro carioca que trabalha em Newcastle, chegou à cidade a trabalho, em agosto de 2020. Ele concorda com a comparação e acredita que o principal motivo é como o local se desenvolveu.
— Tem um pouco dessa relação (histórica), na minha visão, nos times do Newcastle que se deram bem e conseguiram conquistar algumas coisas. Sempre foram times muito aguerridos, que mesmo que não tivessem a melhor técnica do mundo, compensavam no campo com garra e determinação — contou Gustavo.
Os negligenciados se unem
Os brasileiros talentosos e raçudos
O pernambucano Joelinton sentiu logo o carinho da torcida mesmo que o início de sua passagem no clube tenha sido ruim. Antes centroavante, o atleta ex-Sport fez só 10 gols em 89 jogos, mas pelo seu esforço em campo para se adaptar à Premier League, recebeu o reconhecimento da torcida.
— Ainda quando ele jogava no ataque e não estava indo muito bem, a torcida cantava para apoiá-lo porque ele mostrava que estava tentando, e isso é o que é importante para nós.
A situação melhorou quando o técnico Eddie Howe chegou ao clube em 2021 e tirou Joelinton do ataque para colocá-lo no meio-campo. A mudança tática elevou o nível do jogador, que logo virou queridinho da torcida.
— O Joelinton está muito bem. Ele e o Bruno (Guimarães), uau. São os favoritos da torcida. E ele (Joelinton) cresceu muito desde que mudou de posição, é outro jogador! — comentou o ex-jogador dos Magpies.
E mesmo que os jogadores brasileiros sejam conhecidos mundo afora pela sua técnica e capacidade de improvisação, segundo o diretor do clube, é o traço de personalidade aguerrido, de “sempre lutar contra algo maior”, que é bem visto na torcida.
Assim como Joelinton, Bruno Guimarães tem a trajetória comum a muitos jogadores brasileiros. Nascido em São Cristóvão, bairro de classe média/baixas na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi criado com pouco dinheiro em casa. Seu pai, Dick Gomez, era taxista, dono do carro número 39 na cooperativa — daí, a numeração que Bruno utiliza na camisa desde os tempos de Athletico.
— Estou muito feliz, já sou ídolo para alguns aqui, é bem bacana o carinho que a torcida tem por mim, pelo meu pai. — disse o brasileiro em outubro do ano passado.
E não só os brasileiros
Até mesmo quem não era necessariamente sul-americano acabava caindo nas graças se tivesse esse background. Foi o caso de Allan Saint-Maximin, francês de pais imigrantes do Caribe e da Guiana Francesa que viva nas regiões menos abastadas de Paris.
Em anos anteriores, quem representou essa união e ganhou status de lenda foi Fabricio Coloccini, argentino revelado pelo Boca Juniors e que ficou de 2008 a 2016 no clube, conhecido pela sua raça exacerbada, o estereótipo do zagueiro argentino.
Mas, para os torcedores, nem tudo se resume a de onde você vem. Gustavo lembra o caso de paraguaio Miguel Almirón, jogador querido pela torcida dos Magpies, que ainda têm suas ressalvas.
— O Almirón é esforçado. Tecnicamente, não é no nível do Bruno, por exemplo, mas ele também não é um cara muito aguerrido, às vezes cai em um lance mais fácil, tenta simular falta… Então ele não tem o carinho que a torcida tem pelo Bruno.
Enquanto a garra é valoriza, lances como catimba, simulações e firulas não são bem vistas na Inglaterra. Mas, para a torcida do Newcastle, isso vai além do desrespeito com o adversário: é um desrespeito à cultura de grande esforço e raça do time e da região
Relação cultural e diferenças com o Brasil
E se há a crítica pelas “firulas” em solo inglês, no Brasil, os gritos da torcida provavelmente seriam por motivos diferentes e positivos — os cantos de “olé” em apoio aos dribles mirabolantes.
As diferenças culturais não se limitam ao apreço por comportamentos diferentes, mas em todo o entorno da cultura futebolística nas cidades.
Londres é a cidade com mais clubes de futebol no mundo — na temporada passada, eram 17 nas diferentes divisões do Campeonato Inglês. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, têm quatro grandes cada. Esses números fomentam rivalidades e, consequentemente, dividem essas cidades.
Isso não acontece em Newcastle: é o único clube relevante da cidade.
O rival mais próximo, Sunderland, fica a cerca de 30 km de distância. Se compararmos a distância entre os estádios de Palmeiras e Corinthians (26km), não é muita coisa. Mas no contexto inglês. falamos de cidades e histórias diferentes.
E a imersão da cidade no dia a dia do clube também foi uma forma de Gustavo interagir e cultivar uma vida social longe de casa. Para ele, inclusive, os ingleses “gostam mais de futebol do que os brasileiros”:
— Foi uma forma de entrar em contato não só com a cultura local, mas também com meus colegas de trabalho. Todo mundo ama futebol. Eu particularmente acho que eles gostam mais de futebol do que a gente. Eles veem tudo quanto é jogo.
Segundo Gustavo, no Brasil, “a gente gosta de ver o nosso time ganhar” e, quando isso para de acontecer, os estádios ficam mais vazios. “Aqui é muito diferente: mesmo quando o time estava muito mal, era muito difícil conseguir ingresso”.
Newcastle rico e menos acessível?
Gustavo acompanha todos os jogos do clube e, inclusive, marcou presença no St. James’ Park na campanha da equipe que rendeu o vice-campeonato da Copa da Liga no ano passado. No entanto, nem sempre consegue ir ao estádio devido à disputa por ingressos ter aumentado.
— Desde a compra do clube pelo Fundo de Investimentos da Arábia Saudita (em novembro de 2021), ficou mais difícil ir ao estádio. Eu fui em alguns, uns três ou quatro, mas não foram jogos da Premier League, eram da Copa da Liga. Consegui ir nas quartas de final, contra o Leicester, foi bem emocionante – conta Gustavo.
Em uma cidade que vive em função do seu único clube, mesmo uma ocasional alta de preços não vira motivo para os torcedores deixarem de comparecer ao estádio — pelo contrário, cria um senso de urgência para pegar o ingresso logo.
E mesmo que os season tickets, os “ingressos de temporada”, que garantem ida a todos os jogos do clube na temporada em questão, tenham ficado 5% mais caros em 2023/24, ainda são os mais baratos da liga: a partir de 438 libras (aproximadamente R$ 2.722).
Isso é um reflexo de uma cidade orgulhosa de sua história, que respira o clube e, nos últimos anos, aprendeu a abraçar brasileiros por nos acharem “tão batalhadores” quanto eles mesmos.
Bruno Guimarães e o amor recíproco à cidade
A PL Brasil apurou, em janeiro deste ano, que apesar do enorme interesse de gigantes clubes da Europa, Bruno Guimarães deseja permanecer no Newcastle.
— O Bruno ama o Newcastle, ama a cidade e quer continuar lá — garante uma fonte ouvida pela reportagem.
Adaptado e feliz, o brasileiro, inclusive, comprou um imóvel novo na região recentemente e rejeitou o Liverpool no início da temporada, pouco antes de os Reds travarem uma batalha com o Chelsea no mercado pelo volante Moisés Caicedo. O próprio jogador negou a investida na época, antes mesmo de diretoria dos Toon responder ao time de Jürgen Klopp.
Ser brasileiro hoje em Newcastle upon Tyne tem sido uma experiência prazerosa, dentro e fora de campo.
— Você vai no estádio e tem bandeira do Brasil em tudo que é lado. Vai na cidade e fala que é brasileiro, todo mundo ama você. Então para ser brasileiro em Newcastle está ótimo hoje em dia, vou ser sincero — revela Gustavo.