A ciência por trás do milagre do Leicester City

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Que o Leicester City entrou para a história do futebol pelo seu milagre e ganhou milhares de novos torcedores nessa temporada, ninguém parece mais ter dúvidas. Mas qual é o segredo do clube que mostrou ao mundo inteiro que futebol, apesar de muito influenciado, não se faz apenas com dinheiro?

Como a ciência pode ter influenciado a equipe de Jamie Vardy e companhia, ajudado o técnico Claudio Ranieri nessa jornada pelo título de um dos mais difíceis campeonatos mundiais?

O jornalista Alistair Magowan, da BBC Sport, descobriu que o milagre do Leicester pode ter sido mais calculado do que podemos imaginar.

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Ao contrário do que muitos pensam, não foram só os dirigentes e o técnico que fizeram a diferença no milagre do Leicester. A ciência esportiva e a equipe médica dos Foxes tiveram um papel fundamental na jornada do Leicester durante o campeonato.

A utilização de tecnologia de ponta não é novidade no futebol e obviamente o Leicester não é a única equipe da Premier League a fazer uso dela. Mas então, qual é o grande diferencial da equipe comandada por Ranieri nessa caminhada até o título? São dois os fatores que distinguem os Foxes dos outros clubes do campeonato.

O primeiro são as câmaras de gelo que atingem a temperatura negativa de 135ºC, e ajudam na rápida recuperação muscular dos atletas. O segundo – e mais surpreendente – são os copos de suco de beterraba que contribuem ao potencializar o desempenho dos jogadores.

Entretanto, de nada serviria todo esse conhecimento se do outro lado estivesse um técnico que não faz uso dele, o que, segundo Darren Burgess, ex-preparador físico do Liverpool, na maioria das vezes é o que acontece. O Leicester, felizmente, tem como comandante Ranieri, que faz questão de ouvir sugestões e dicas.

O resultado disso? O clube do interior da Inglaterra foi o que menos sofreu com lesões nessa temporada, de acordo com o site Physioroom.com. O que é ótimo para uma equipe que não possui muitos recursos e que possui um jogo rápido baseado no contra-ataque.

O TIME DAS ARRANCADAS (E DAS POUCAS LESÕES)

Quando Ranieri chegou ao Leicester no último verão europeu, o dono do clube deixou claro que a equipe herdada era totalmente confiável. “Ele ficou muito surpreso com a forma como trabalhamos com os jogadores aqui”, disse Craig Shakespeare, assistente-técnico dos Foxes.

A equipe provou a Ranieri toda sua capacidade e importância na construção de um time que depende muito da velocidade. De acordo com o Opta (empresa de estatísticas esportivas), os campeões da Premier League armaram mais contra-ataques e marcaram mais gols nesse quesito que qualquer outro clube em 2015/16.

Para conseguirem atingir esses picos de velocidade, os jogadores devem ter todo o condicionamento físico necessário para não correrem o risco de se lesionarem. Vardy é o maior exemplo da equipe neste aspecto. O artilheiro detém o recorde de velocidade entre o elenco- 35.44 km/h -, além de conseguir arrancadas de mais de 500 metros em todas as partidas dos Foxes.

Mas como construir toda essa força e condicionamento necessário para essas corridas? Primeiro, os jogadores devem fortalecer os tendões da parte posterior da coxa por meio de um aparelho parecido com o leg-press das academias, que é customizado para que eles consigam levantar de 350 a 500 quilos.

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Os atletas também fazem uso de um equipamento chamado NordBord, muitas vezes utilizado também após os jogos, que permite desenvolver e melhorar a força dos tendões.

Próximo ao fim de semana, os jogadores também são submetidos a exercícios de arrancada para, assim, expô-los aos picos de velocidade.

“Dados de GPS nos mostraram que, apesar de jogarmos em áreas maiores para permitir que os jogadores alcancem uma maior velocidade, isso se deve mais às circunstâncias. Um zagueiro poderia fazer isso buscando a bola que vem lançada por cima, mas sem isso, eles estavam carencendo de exposição”, disse Matt Reeves, chefe de preparação e condicionamento físico do Leicester.

Em uma quinta-feira típica no centro de treinamento dos Foxes, os jogadores, mesmo cansados após o treino, são enfileirados para darem tiros de velocidade de 40 metros. Isso pode soar estranho. Parece até mesmo uma receita de “como fazer seus jogadores se lesionarem”, mas é totalmente o oposto.

Com essa exposição, os atletas correm menos risco de se machucarem nos jogos. Os dados sobre lesões somente parecem confirmar a eficácia do método.

Já falamos sobre os aparelhos e as técnicas utilizadas para evitar que os jogadores se machuquem, mas quais são os benefícios de tomar copos de suco de beterraba? Segundo cientistas da Universidade de Exeter, na Inglaterra, o suco melhora a performance dos atletas na hora das arrancadas, além de favorecer a tomada de decisões deles.

Apesar do estudo apontar uma melhora de apenas 3.5%, isso parece ser o suficiente para um atacante como Vardy conseguir chegar na bola antes dos defensores.

LOUCOS POR CONTROLE

A eliminação precoce da equipe de -Ranieri das copas nessa temporada deu à equipe de cientistas desportivos do clube uma vantagem: a de planejar e controlar os treinamentos dos Foxes ao longo da semana. O que isso significa? Que os jogadores não precisam treinar muito e assim estarem sujeitos à contusões.

Isso pode até parecer óbvio em princípio, mas a opção do Leicester por incluir um processo de recuperação de 48 horas após os jogos, além de um dia de folga no meio da semana, não é algo seguido por outros clubes de futebol.

Absolutamente tudo é monitorado, incluindo a densidade do gramado, que pode estar muito duro ou muito macio, com a duração do treinamento adaptada de acordo com as condições.

Enquanto isso, os movimentos dos jogadores são gravados por coletes com GPS, que captam a distância percorrida, intensidade, aceleração, desaceleração e mudanças de direção. Se os atletas treinam arduamente e precisam ficar de fora de certas sessões, Ranieri está disposto a ouvir os especialistas que o rodeiam.

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“Alguns treinadores conseguem obter bons resultados sem recorrer a esse tipo de tecnologia”, disse Burgess. “Mas é ótimo ser ajudado por dados na gestão de jogadores, principalmente se eles estão em um jogo de alta pressão”, completou.

Além de todos esses dados, os jogadores ainda devem preencher diariamente um questionário em um tablet. Eles devem responder como o corpo está após o treinamento do dia anterior e, se alguns atletas reclamam de algo em comum (como uma leve dor no quadríceps, por exemplo). Então a equipe ajusta o próximo treinamento para evitar problemas similares.

O questionário também pergunta como o jogador dormiu e se sofreu algum distúrbio à noite, para assim poderem ajustar o que os jogadores irão comer e beber no dia para assegurar um bom descanso noturno.

“Você pode se deixar levar por toda essa a informação, então, às vezes, você não pode só perguntar como o atleta está se sentindo”, contou Reeves. “Nós temos uma abordagem bastante holística e tentamos torná-la mais pessoal ao compreendermos cada um individualmente”, explicou.

O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO

Quando Vardy lesionou o quadril em novembro, parecia que sua corrida por gols em jogos consecutivos tinha chegado ao fim. O fato dele ter continuado a jogar deve-se a crioterapia, técnica da fisioterapia que faz uso de baixas temperaturas em regiões do corpo. No caso do atacante, ele entrava em uma câmara de gelo a 135ºC negativos por até quatro minutos.

“É absolutamente congelante, mas ajuda na recuperação”, afirmou Vardy. “Eu acredito que nem mesmo os homens mais inteligentes do mundo sabem o nome das coisas que eles estão fazendo, mas eles têm trabalhado comigo durante toda a semana”, brincou.

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A câmara funciona de forma similar a uma banheira com gelo, com o sangue sendo enviado de volta ao coração antes que o sangue oxigenado chegue ao músculo dos jogadores. Como isso afeta o corpo todo, Dave Rennie, fisioterapeuta do Leicester, diz que o método é mais eficiente, principalmente quando o tempo entre um jogo e outro é curto.

“Os atletas gostam porque é um gelo seco, então eles não sentem tanto quanto a banheira de gelo”, disse Reeves. “Os jogadores normalmente saem de lá leves e se sentindo bem. Isso também influencia o sono deles nas duas próximas noites”, completou.

A equipe médica do Leicester também acelera o processo de recuperação dos músculos usando bolsas com bastante gelo para massagear os atletas. “Parece louco, mas isso ajuda a diminuir a temperatura do corpo. Além disso, tem o mesmo estímulo que uma massagem, deixando uma grande mancha vermelha na pele dos jogadores”, contou Reeves.

“Na mente dos jogadores, isso é como se fosse um sinal visual de que o processo de recuperação começou”, explicou.

O PSICÓLOGO RANIERI E A FESTA DO LEICESTER

Seja recompensando sua equipe com pizza por um clean-sheet (quando a defesa não é vazada) ou se recusando a falar sobre a provável conquista do título até os últimos jogos, Ranieri tem sido ótimo ao manter seus jogadores focados e unidos durante a temporada.

“Existem dois psicólogos no clube. Um sou eu e o outro é Claudio. O jeito que ele conversa com seus atletas tem sido exatamente da mesma forma que conversa com a imprensa. É tudo sobre focar no processo e não no resultado.

Em algumas ocasiões ele me deixou de queixo caído com suas palavras”, contou à BBC Sport Ken Way, psicólogo de desempenho do Leicester.

O psicólogo afirma que Pearson foi o responsável pela criação dessa equipe de bastidores dos Foxes e que é dele o crédito pela cultura no clube onde os jogadores são responsáveis por suas ações. Os gols resultados de arrancadas são apresentados ao grupo e os atletas assistem a clipes de performance uns dos outros.

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“É sobre capacitar os jogadores a tomarem suas próprias decisões ao invés de tentar se impor sobre eles. Isso ajuda no espírito de luta do grupo”, disse Reeves.

O elenco do Leicester também tem se divertido. “Evitar o rebaixamento na última temporada foi uma grande pressão”, conta Way. “Isso vale também para nós. Quando vencemos o Manchester City por 3 a 1, nós rimos uns com os outros e pensamos ‘o que mais pode acontecer nessa temporada?’”.

O vídeo que mostra a celebração da equipe na casa de Vardy deu a todos uma boa noção do vínculo que existe entre a equipe.

Way conta que grandes personalidades como Wes Morgan, Christian Fuchs, Robert Huth e Vardy têm sido fundamentais para o espírito de equipe do elenco.

“Os fãs têm cantado que ‘Jamie Vardy está festejando’ durante toda a temporada, mas, mesmo que eles levem o trabalhado dele muito a sério, realmente tem sido uma festa no campo de treinamento. Todos estão curtindo o passeio”, disse Way.

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ALGUÉM SEGUIRÁ O EXEMPLO DO MILAGRE DO LEICESTER?

Dados de GPS, banhos de gelo e arrancadas quase não são ideias revolucionárias em um esporte que, hoje em dia, emprega muitos cientistas esportivos. Assim como Burgess assinala, Sam Allardyce conseguiu bons resultados quando foi técnico do Bolton Wanderers aliando ciência, tecnologia e esporte, terminando entre os dez primeiros colocados da Premier League em quatro temporadas consecutivas (2003-2007).

Na atual temporada, os Trotters foram rebaixados à terceira divisão numa terrível crise financeira. Enquanto alguns clubes trabalham separadamente, as equipes nos bastidores do Leicester trabalharam juntas para tornar o clube um vencedor, mesmo que competissem com times com muito mais recursos.

“É a união entre a ciência desportiva, equipes médicas, o departamento técnico e os jogadores em prol do que pretendemos alcançar”, afirmou Reeves.

“Quase sempre a ciência desportiva não é utilizada com todo seu potencial, mas nós vimos os resultados com o Leicester. Eu ficaria surpreso se, agora, outros clubes pulassem nesse barco”, disse Burgess.

“É por isso que eu tenho apoiado o Leicester. Esta é uma das maiores surpresas da história do esporte. Esperançosamente, irá mudar as crenças do futebol sobre o bom impacto que a ciência esportiva pode causar”, finalizou.

Matéria originalmente produzida por Alistair Magowan, da BBC SPORT. Para ler a versão em inglês, clique aqui.
Ana Luiza Honma
Ana Luiza Honma

Jornalista graduada pela Universidade Federal de Uberlândia