Amada por uns e odiadas por outros. Esta é Margaret Thatcher, ex-primeira ministra que governou a Inglaterra durante 1979 e 1990. A Dama de Ferro, apelido no qual ela ficou conhecida por tomar decisões fortes, teve um governo bastante polêmico e divide opiniões até hoje. E se para alguns futebol e política não se misturam, no governo Thatcher essas atividades andaram lado a lado. A PL Brasil explica por que Margaret Thatcher ser tão odiada em Liverpool.
Durante a década de 1980, várias pessoas poderosas no Reino Unido tipificavam os torcedores exclusivamente como hooligans. Para piorar, a ordem era simples: tomar todas as medidas mais duras possíveis. E Thatcher fez isso.
Isso porque naquela época os sindicatos eram a base das torcidas organizadas dos clubes ingleses. E a Dama de Ferro sempre quis combatê-los. Então ela tinha uma chance real de acabar com o poder dos sindicatos e, teoricamente, colocar um fim na violência nos estádios – mas isso não aconteceu.
Thatcher x Liverpool
Thatcher se elegeu prometendo acabar com os sindicatos e diminuir os subsídios do governo para a indústria. A Dama de Ferro temia outra epidemia de greves como correu nos anos 1970.
Então, a regra usada por ela era basicamente assim: se não deu lucro suficiente, a indústria vai fechar. Não importavam as consequências dessa medida.
E essa decisão não caiu bem em Liverpool. Isso porque a terra dos Beatles tem uma tradição de ser diferente do restante da Inglaterra. É uma cidade trabalhista, sindical e bem esquerdista. Ou seja, tudo que Thatcher odiava e sempre quis combater.
Além disso, há outra característica do local que acabou se tornando um problema: sua localização. Liverpool fica a mais de 300 quilômetros de Londres. Para se ter ideia da distância, durante os anos 1960, o trajeto da cidade até a capital inglesa de carro durava de seis a sete horas.
Com isso, Liverpool foi criando a sua própria cultura, se distanciando ainda mais de Londres. Em um texto publicado pelo Trivela, Anna Carolina Fagundes, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de East Anglia, em Norwich, comentou como ocorreu esse isolamento.
“Londres é um país em si mesmo. O governo fica lá, tudo fica lá. E os caras de Londres veem Liverpool como caipira. Eles têm sotaque próprio, cultura própria, comida própria. Mesmo depois dos Beatles e do rock and roll britânico, há a imagem de que tudo ‘para cima’ é caipira. Então a primeira reação foi: os caipiras estão se matando, dane-se. Quando as notícias começaram a chegar, viram que foi um pouco mais sério”.
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E não era apenas Londres que enxergava a terra dos Beatles desta forma. Thatcher também adotou uma política mais “londrina” em seu governo, deixando de lado cidades importantíssimas, como o caso de Liverpoool.
Cumprindo a promessa de campanha, Margaret Thatcher fez de tudo para vencer os sindicatos. E conseguiu. Além disso, ela privatizou inúmeros setores da indústria, o que causou desemprego e uma revolta gigante na população – especialmente a de Liverpool.
Em matéria publicada pela BBC, Joe Bennett, ex-funcionário da fábrica
Bird’s Eye – localizada em Kirkby, comunidade de Liverpool – e integrante do sindicato ASTMS (Associação de cientistas, técnicos e gerentes), revela a reação dos trabalhadores ao saberem que a fábrica onde trabalhavam estava sendo fechada por Thatcher, deixando cerca de mil pessoas desempregadas.
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“Era como se o sal estivesse sendo esfregado em nossos ferimentos. Todos nós culpamos o governo Thatcher.”
E o caos causado pela Dama de Ferro não parou por aí. Em documentos divulgados em 2011, afirmavam que pessoas do seu governo a aconselharam para deixar Liverpool “em declínio” e “não gastar recursos muito escassos com a cidade.”
Thatcher fez algumas visitas a Liverpool. Na maioria das vezes, não divulgava o horário e entrava pela porta dos fundos dos locais. A estratégia era não causar mais tumultos.
Mas isso nem sempre era possível. Em alguns casos, a notícia vazava e os manifestantes cercavam o local onde ela estava. Eles entoavam insultos e atiravam tomates e papéis higiênicos na direção dela. A cidade nunca aceitou a Dama de Ferro.
Toxthet e o apoio de Thatcher a repressão policial
Mas essa realidade mudou brutalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o povoado foi atacado e teve que passar por uma reconstrução. E não conseguiu voltar ao seu antigo patamar.
O bairro que anteriormente era sinônimo de riqueza virou o oposto. As mansões tiveram que ser divididas e se tornaram casas populares; prédios abandonados e ruas cada vez mais desertas; e, por último, ruas tomadas pelo mau cheiro de lixos e fezes de animais.
Entre 1971 e 1981, a população de Toxthet caiu mais de 1/3. Era a representação bruta da queda da qualidade de vida em Liverpool, que já vinha sofrendo pelo fato do comércio marítimo optar por outros portos mais perto dos compradores. Além disso, outro agravante: a crise na indústria começava a aflorar e o desemprego aumentar.
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E se as pessoas já estavam sem trabalho em Toxthet, isso aumenta ainda mais quando Margaret Thatcher está no governo. Durante os anos de 1980 e 1981, o bairro obteve quase 40% de homens desempregados. E a situação ficaria ainda pior no restante da década.
Isso porque o índice de pessoas negras sem trabalho atingiu a casa dos 80%. E como o povoado era praticamente formado por indivíduos negros e na sua maioria imigrantes, o caos social estava completo.
E o descontrole social em Toxthet começa pela polícia, que tinha como característica abordagens arbitrárias e racistas.
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Já no governo Margaret Thatcher, as ruas de Toxthet se tornam palco de uma batalha furiosa entre os moradores do bairro e os policiais – que continuavam cometendo as mesmas arbitrariedades.
O tumulto começou no dia 03 de julho de 1981, quando a polícia da comunidade perseguia um jovem negro suspeito de roubar a motocicleta em que estava. Durante a perseguição, o rapaz caiu do veículo. E aí a confusão estava feita.
Enquanto ele estava no chão, os policiais tentaram prendê-lo. Mas a população não deixou, pois os moradores suspeitavam de mais uma prisão arbitrária – algo bem comum na época.
Segundo relatos publicados, havia 40 pessoas em defesa do jovem negro. Cerca de oito viaturas chegaram como reforço.
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Os policiais ameaçavam e empurravam os moradores. Até que, de repente, um bastão da polícia arremessado atinge um cidadão. Como resposta, os habitantes responderam com pedras e tijolos.Durante o caos, o jovem, supostamente suspeito pelos policiais, conseguiu escapar. Mas as autoridades não deixaram barato. Em meio a confusão, prenderam de forma brutal o garoto Leroy Cooper, outro rapaz negro que tinha familiares envolvidos anteriormente com a polícia.
E isso foi a gota d’água para os moradores daquela comunidade. A resposta de tantos anos de sofrimento, isolamento e violência policial e racial foi responder com a mesma moeda, gerando um confronto violento que durou dias.
De um lado, os moradores usando pedras, tijolos e coquetel molotov; do outro, policiais com gases lacrimogêneos e carros acelerados para dispersar a multidão. A fúrias dos habitantes aumentou ainda mais com os métodos usados pelas autoridades.
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E esse ódio se multiplicou por 100. Isso porque os policiais procuraram imediatamente o governo para pedir táticas mais duras, equipamentos melhores e uma forma de repressão ainda mais legalizada.
E ao receber o pedido, Margaret Thatcher afirmou ao parlamento que, se os policiais realmente quisessem, ela estaria de acordo com o uso de canhões de água, gás lacrimogêneo e balas de plástico.
Isso revoltou os moradores de Liverpool e outras cidades até hoje, que sofreram com a repressão policial apoiada pelo governo.
Hillsborough e a falta de humanidade de Thatcher com às vítimas
A tragédia de Hillsborough é um dos capítulos mais tristes e agoniantes do futebol inglês. No dia 15 de abril de 1989, durante a semifinal realizada entre Liverpool e Nottingham Forest, 800 pessoas ficaram feridas e 96 morreram. Uma dor imensurável e que dura até hoje.
Na época, o futebol inglês era bem diferente do que é hoje. A violência nos estádios era um problema praticamente sem solução. E, além disso, ainda existia o despreparo das autoridades e a incompetência para resolver as falhas.
Uma série de erros causaram o desastre. O primeiro: local da partida. O estádio de Hillsborough, localizado na cidade de Sheffield, já sofria com graves problemas de infraestrutura. Entretanto, inexplicavelmente, recebia inúmeros jogos decisivos.
Em seguida, colocaram a torcida do Liverpool no menor setor do estádio – mesmo os Reds sendo maioria. Era óbvio que iria dar problema. Mas as autoridades preferiram ignorar e negligenciaram aquilo. E custou muito caro.
Com o passar do tempo, o número de pessoas foi aumentando. Mas os policiais não souberam organizar a entrada dos torcedores. E na tentativa de colocar todo mundo para dentro, abriram o portão do setor Leppings Lane. E isso foi um problema.
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Isso porque o setor já estava completamente lotado. E, com a entrada dos torcedores, o local ficou com o dobro de pessoas em relação à sua capacidade. Resultado: um desastre histórico.
O jornalista inglês e correspondente da BBC aqui no Brasil, Tim Vickery, comenta que o desastre de Hillsborough antecipou as medidas necessárias para o futebol inglês.
“Até Hillsborough acontecer, você tinha que passar com a carteirinha de identidade na catraca. Isso não havia como dar certo. Não tínhamos tecnologia para isso”
O jornalista ainda comenta que Margaret Thatcher não gostava do futebol e tentava atacá-lo de todas as formas.
“É brincadeira alguém falar que essa mulher salvou o futebol inglês. Ela nunca se importou com o futebol. Se fosse por ela, não havia nem torcedores nos estádios.”
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E se você pensa que os responsáveis foram punidos imediatamente após a tragédia, está enganado. Durante 23 anos, os torcedores do Liverpool foram vistos como baderneiros e assassinos de seus amigos. E mesmo que esse sentimento fosse rejeitado na cidade, era o que boa parte do mundo acreditava.
Isso porque uma farsa de narrativas foi montada para criminalizar às vítimas. Algo que era bem cômodo para o governo, que não tinha capacidade para resolver os problemas e optou por jogar a culpa no torcedor.
Uma das táticas da farsa foi a alteração de provas que tiravam a culpa da polícia, como por exemplo, imagens das câmeras do estádio. Além disso, mudaram cerca de 100 depoimentos para não incriminar os policiais. Todas essas informações estão presentes no relatório oficial de Hillsborough.
Em texto publicado pelo Trivela, Daniel Hunt, torcedor do Liverpool, afirma como essa farsa se instalou na sociedade.
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“O sistema da Inglaterra preferia que Liverpool não existisse. É preciso entender o preconceito com Liverpool. Não é uma cidade inglesa comum. Tem muitos irlandeses, imigrantes de vários lugares do mundo, é muito esquerdista. Liverpool sempre foi um pé no saco do sistema britânico. Quando houve as mentiras, aquela propaganda, já havia um preconceito. Havia a reputação de (moradores da cidade) serem criminosos, maliciosos. Não explica o que vimos, mas explica um pouco a hostilidade e como isso foi facilmente aceito. Era a confirmação.”
E sabe quem foi um dos propagadores dessa farsa? O jornal The Sun! fez uma das capas mais repugnantes da história. Na capa, o diário afirmava até que os torcedores tinham urinado nos policiais e saqueado vítimas. A construção dessa matéria se deu em acordos feitos entre as autoridades policiais e os repórteres do jornal.
E obviamente Liverpool não aceitou isso. Desde esse dia, toda a cidade repudia o jornal e ele é boicotado.
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Após sofrer várias derrotas na justiça, as famílias das vítimas se reuniram novamente em 2009 para criar um grupo de investigação independente sobre Hillsborough. Eles conseguiram coletar provas e abrir um novo caso.
E após 23 anos de luta, o governo britânico finalmente assumiu a culpa e pediu desculpas as famílias. Três anos depois, David Duckenfield, chefe policial em Hillsborough, se posicionou pela primeira vez.
“Todos sabiam a verdade, os torcedores e a polícia sabiam da verdade, que nós abrimos os portões”
Após anos de investigações, finalmente um desfecho. Em 2016, a Justiça inglesa finalizou a apuração e concluiu que houve crime de negligência dos responsáveis pela segurança.
Mário Marra, jornalista dos canais ESPN, revela que o descaso de Margaret Thatcher em relação à punição aos responsáveis e às vítimas de Hillsborough foi a gota d’água da cidade Liverpool com a Dama de Ferro.
“Todo mundo estava cansado de saber que tinha coisa errada ali. Que tinha coisa de indenização e que era melhor jogar a culpa em outros e não assumir. Ali ela foi leviana. Ali ela foi má. Muita gente morreu ali. Além da dor de muitas pessoas que ficaram vendo a memória dos seus sendo tratada daquela forma. E era conveniente para ela e para o governo aceitar uma versão que era totalmente descabida.”
Morte e reações em Liverpool
“Você não se importou quando mentiu. Nós não nos importamos com a sua morte”. Esta frase estava escrita em um cartaz no Anfield, durante uma partida realizada entre Liverpool e Reading, poucos dias após a morte de Margaret Thatcher, vítima de um derrame cerebral.
A frase do cartaz estava fazendo alusão à postura da Dama de Ferro durante as investigações sobre a tragédia de Hillsborough. A torcida do Liverpool não perdoou a forma como a ex-primeira ministra tratou o caso. Antes mesmo dela morrer, alguns fãs do Liverpool cantavam uma música com a seguinte letra:
“Quando Maggie Thatcher morrer, nós vamos comemorar.”
Margaret Thatcher morreu na semana onde teria uma homenagem para as vítimas de Hillsborough, em Liverpool. Brendan Rodgers, técnico do time na época, afirmou que o único motivo era homenagear a memória dos 96 mortos naquele desastre.
“É o único minuto de silêncio que deveria haver neste fim de semana. Estamos entrando em um período de recordação aqui para 96 pessoas que morreram indo para um jogo de futebol e para as famílias que sofreram por muitos, muitos anos.”
Por fim, um vídeo dos moradores de Liverpool comemorando a sua morte.