Marcelo Bielsa alcançou mais um feito em sua respeitosa carreira: transformou o Leeds United, um time de meio de tabela da segunda divisão, numa das histórias mais bonitas do futebol atual. O resultado da loucura foi inevitável: os Whites estão de volta à Premier League, após 16 anos.
“As pessoas em geral não têm a medida da dificuldade que é fazer uma campanha como essa na segunda divisão da Inglaterra. E ele (Bielsa) conseguiu isso em dois anos seguidos no Leeds United. Mas o que mais me agrada é o aspecto contracultural, a ideia de vencer por intermédio de um tipo de futebol diferente do tradicionalmente utilizado em um determinado lugar. Eu acho que essa é a grande vitória dele (em clubes)” – André Kfouri
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Quando o argentinou assumiu o clube, há duas temporadas, foi um choque. Bielsa já havia negado convites de clubes da Premier League, mas aceitou o desafio de tentar retornar com um clube gigante para a elite inglesa. Loucura, diriam alguns. “Considerei a força do projeto esportivo e institucional”, disse o comandante em sua apresentação.
Dois anos depois existe uma relação muito especial entre clube, treinador e cidade. Uma nova cultura foi instaurada ao longo do tempo de trabalho. Em seu primeiro dia de trabalho, ele fez com que os jogadores do clube juntassem todo o lixo e fizessem outros trabalhos por três horas. É o tempo médio que um trabalhador da cidade se esforça para ter dinheiro e comprar um ingresso para o jogo.
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Bielsa também dispensou o hotel cinco estrelas. Ele mora num local simples, pago com seu dinheiro, em cima de um café, longe do centro da cidade. Por vezes é visto no supermercado fazendo compras ou no café, localizado abaixo de onde mora, analisando vídeos e vendo partidas de futebol em seu computador. O trajeto para o trabalho é uma caminhada diária 45 minutos – o caminho, por vezes, é invadido por algum fã que pede por uma foto.
O argentino trouxe de volta um ambiente de otimismo, como há muito não se via. Depois de muito tempo, o Leeds United voltou a ter uma identidade, muito diferente do que foi durante seu passado. Por muito tempo, um estigma ao redor dos Peacocks: o jogo sujo. Os times de Don Revie ficaram marcado com esse termo, em função das atuações do clube.
Após o trabalho de Marcelo Bielsa, esse termo se tornou algo do passado – mesmo que a torcida já tivesse se apossado do termo com certo orgulho. O Leeds United apresenta um estilo de jogo completamente diferente do kick and rush. Dono da bola, controlando as ações do jogo e sempre buscando o gol. É assim que atualmente os Whites buscam o resultado.
Bielsa: de Buenos Aires ao Leeds United
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Para que isso se tornasse possível, foi necessário um processo. Andrea Radrizzani comprou o clube em 2017 e ajeitou as finanças. Depois de campanhas medianas, quis sonhar alto e trazer um dos nomes mais importantes do futebol para comandar o Leeds United. Coube a Angus Kinnear, um dos dirigentes do Leeds, ir à Argentina conversar com Bielsa.
Foram quase 24 horas de conversa entre a comitiva do clube e o treinador. “O que sentimos é que ele não era um treinador que seria comprado, sentimos que teríamos que explicá-lo o potencial que tinha o Leeds. E ele entendeu de imediato”, disse Kinnear. A conversa entre as partes, porém, não passou perto de fatores financeiros – assunto que Bielsa refugava a cada investida dos dirigentes.
“Conseguimos convencê-lo a treinar o Leeds, apertamos as mãos e tínhamos certeza que ele seria o nosso treinador, mas não havia a mínima ideia de como seria o contrato” – Angus Kinnear
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Uma das poucas exigências realizadas pelo treinador foi que o clube reformasse o Centro de Treinamento. Prontamente atendido, hoje os Whites possuem um moderno CT, comparado às instalações de um clube da Premier League. Por vezes, jovens jogadores participam das atividades junto do time principal. O trabalho também é a longo prazo.
O anúncio, realizado no dia 15 de junho de 2018, trouxe ao Leeds algo que faltava há tempos: respeito. O jornalista Joe Urquhart, que cobre o Leeds United para o Yorkshire Evening Post, conversou com a PL Brasil e relembrou o sentimento de quando Bielsa foi apresentado.
“Foi surpreendente, para a cidade e para os torcedores, quando foi anunciado que Bielsa seria o treinador. Foi um posicionamento forte do clube, mostrando ambição”, afirma o jornalista. “Contratar o treinador mostrou que o clube tinha uma proposta, uma ideia diferente, o que não vinha acontecendo com quem esteve no comando”, completa.
Sem grandes contratações, Bielsa começou seu trabalho e trouxe esperança à cidade que algo grande estaria acontecendo. Logo na estreia da Championship, uma vitória por 3 a 1 contra o recém-rebaixado Stoke City. O resultado, de acordo com Joe, abriu os olhos dos que ainda se mantinham céticos quanto ao que Bielsa poderia fazer.
A primeira polêmica: o Spygate
Leeds de Marcelo Bielsa é multado em 200 mil libras por caso de espionagem de adversários https://t.co/Cb8EsNOJGV pic.twitter.com/9pTH6qCP7O
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A campanha na Championship ia bem, o Leeds United estava entre os primeiros colocados por toda temporada. Um futebol muito diferente do que era praticado, em comparação ao passado recente. Bielsa transformou um time de meio de tabela em um forte candidato ao título e ao acesso direto para Premier League.
Em janeiro de 2019, aconteceu a primeira grande polêmica envolvendo o treinador argentino. Um funcionário do Leeds United foi visto nas redondezas de onde treina o Derby County, ‘espionando’ os treinos da equipe adversária. O episódio gerou uma grande repercussão no país e, claro, também entre os torcedores dos Whites.
“Sempre falam como Bielsa é uma pessoa íntegra e justa”, afirma o jornalista Renato Senise – que cobre a Premier League pelo DAZN e que esteve em Leeds. “Todos, jornalistas e torcedores, falam que o Bielsa não fez nada de errado. O assistente estava numa via pública, não pulou muro, nem nada”, completa.
O treinador argentino realizou uma coletiva de imprensa, apresentando seus motivos e dando suas explicações para o que tinha acontecido. A multa foi paga com o dinheiro do próprio Bielsa, já que segundo ele, o clube não seria justo o clube pagar por um erro cometido pelo seu funcionário.
“Em Leeds, isso apenas melhorou a sua reputação. Eles já amavam Bielsa e passaram a amá-lo ainda mais porque mostrou o quão perfeccionista e dedicado o treinador é e o quanto levava a sério o trabalho com o clube” – Joe Urquhart
O gol concedido e a decepção
O Leeds batalhava por um lugar que dava o direito ao acesso direto para Premier League. O confronto direto contra o Aston Villa, era o último jogo em casa da temporada 2018/2019. Os Peacocks fizeram um a zero, mas durante a construção da jogada, um jogador do Villa estava caindo, alegando contusão.
O gol causou tumulto num jogo já marcado por entradas duras e nervos à flor da pele. Dentro de campo, mais briga – assim como nas áreas técnicas. Bielsa tentava conter seus assistentes e gritava algo em direção ao campo. Apenas quando o jogo foi reiniciado, soube-se o que era. A equipe do Leeds deixou com que o Aston Villa marcasse o gol de empate. A atitude rendeu ao clube o Fair Play Award, da FIFA.
“A reação foi variada, muitos torcedores do Leeds United – e até jogadores – não concordaram por achar que o jogador do Villa não estava de fato machucado, mas esse é Bielsa e é assim que ele acredita que as coisas são. No fim das contas, os fãs o respeitam e admiram ainda mais – também por isso”. Joe Urquhart.
O resultado da primeira temporada foi decepcionante, pois apesar de liderar praticamente toda a temporada, o fim deixou a desejar e o clube não conseguiu o acesso direto. Nos playoffs, eliminação para o Derby County. Novamente, Bielsa havia ‘falhado’ e seu futuro estava em xeque.
A decisão de ficar e a consequente idolatria
“Os torcedores ficaram com muito medo que ele saísse. Primeiro no Spygate, por ter sua integridade questionada – algo que o Bielsa não aceita. E o segundo momento foi quando não conseguiu o acesso, por medo do assédio de um grande clube que pudesse tirá-lo do Leeds”, comenta Renato Senise. O medo de perder o comandante que trouxe de volta a identidade ao Leeds era grande.
A decisão de Marcelo Bielsa em permanecer no Leeds United o transformou quase em Deus para os torcedores. A ida aos playoffs e toda animação pela maneira como o time se apresentava foi inédita. Depois de muitos anos, novamente, o Leeds tinha uma cara e podia se orgulhar do clube – o único da cidade.
“Bielsa conseguiu trazer novamente a ligação entre clube e cidade. Atualmente, é possível ver crianças e jovens com camisas do Leeds, coisa que há 10 anos era impossível”, afirma Joe Urquhart. A cidade e o treinador estariam novamente reunidos para alcançar o grande objetivo: o retorno à elite.
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Novamente, sem muitas contratações, Bielsa dominou a Championship. Extraindo o melhor dos seus jogadores, transformando atletas questionados em contribuidores regulares. A aura de ‘El Loco’ estava instaurada no clube e sua mentalidade presente nos jogadores.
O objetivo foi alcançado com louvor e com rodadas de antecedência: o tão aguardado retorno à Premier League foi alcançado no dia 17 de julho de 2020. O trabalho, que pode ser coroado com o título da Championship, colocou Bielsa e os jogadores na história de um clube centenário.
“Os torcedores e os jogadores não tinham uma conexão tão grande assim com um treinador há muito tempo. Eles se apaixonaram por Bielsa e pela maneira que ele se entregou ao time”, explica Joe Urquhart.
No fim das contas, o Leeds United extraiu o melhor de Bielsa e Bielsa também conseguiu tirar o melhor da cidade, do clube e dos jogadores. André Kfouri afirma que “na relação, me parece, os dois lados ensinaram e aprenderam muito, mas Bielsa é o grande condutor dessa história”.
É difícil arguir o contrário. Coube ao argentino, natural de Rosário, carregar de volta à elite um gigante que estava longe dos holofotes. Após muita dedicação, horas de trabalho e uma história imensa, The Whites are marching on, rumo à Premier League.