‘Make Us Dream’: documentário é tanto sobre as glórias de Gerrard quanto sobre angústias

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Steven Gerrard está sentado no sofá em sua casa em Los Angeles. Na TV ele assiste a lances da partida entre Liverpool e Chelsea, pela 36ª rodada da temporada 2013-14 da Premier League.

É o jogo em que ele escorrega, deixa a bola chegar ao atacante Demba Ba, livre, para marcar o primeiro gol do time londrino. A derrota por 2 a 0 naquele dia praticamente enterrou as chances de título dos Reds naquele Campeonato Inglês. Seria mais um ano na fila, desde 1990.

“Meu cérebro ainda frita pelo que aconteceu ali. Tentando entender os motivos daquilo. Não encontro motivos”, diz o ex-jogador.

Essa é, basicamente, a abertura de “Make Us Dream”, documentário sobre a carreira de Steven Gerrard como atleta do Liverpool, disponível em streaming no Prime Video, da Amazon.

O início do filme dá o tom de como a história será contada. Sim, ela é sobre a brilhante carreira de Gerrard, um dos maiores ídolos da história do Liverpool. Mas a angústia por não conseguir ganhar a Premier League é parte fundamental de sua jornada, bem como a do clube.

Assista ao trailer oficial de Make Us Dream

Liverpool desde sempre

Um dos pontos altos do documentário é a riqueza de vídeos e fotos de Gerrard jogando futebol quando criança. Através dessas imagens, seus pais contam como ele sempre se destacou pelos times infantis de Whiston, subúrbio de Liverpool, onde nasceu.

Os depoimentos de familiares, amigos e técnicos deixam claro que o sucesso de Stevie como jogador profissional sempre foi visto como uma certeza por todos em volta dele. Prova disso é que entrou para as categorias de base do Liverpool em 1988, quando tinha apenas oito anos de idade.

O jovem chegara ao seu time de coração, o time de sua família, e era tratado como uma joia por ele. O documentário mostra bem como aqueles times dos anos 1980 impactaram Gerrard e como a cidade se envolvia com o clube e abraçava, acompanhava e torcia pelas jovens promessas, como ele.

“É a melhor coisa que pode acontecer a um garoto de Liverpool. Ser aquele garoto local em quem todo mundo fica de olho”, declara Steven durante o filme.

Os depoimentos de como a torcida e a comunidade se envolviam com o clube são muito interessantes para quem acompanha o futebol inglês de longe. Permite uma melhor compreensão da cultura futebolística local.

Gerrard torcida do Liverpool Make Us Dream Tony Marshall Collection Getty Images Sport
Tony Marshall Collection Getty Images Sport

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Exemplo disso é maneira como o desastre de Hillsborough (quando 96 torcedores morreram durante uma semifinal de FA Cup em entre Liverpool e Nottingham Forest, em 1989) impactou a cidade e de como a comunidade lutou, por décadas, por justiça para as vítimas. Isso é mostrado no filme, de forma rápida, porém muito bonita.

O desenvolvimento de Gerrard nas categorias de base não foi visto como surpresa por ninguém. Mas o filme mostra como isso foi acompanhado com cuidado e paciência, para que ele atingisse todo o seu potencial.

Aos 18 anos, em 29 de novembro de 1998, o jovem meio-campista fez sua estreia pelo time profissional. Jogou alguns minutos contra o Blackburn Rovers, pela Premier League.

Glórias e cobranças

O cerne de “Make Us Dream” é a dualidade entre a carreira de alto-nível, dedicação e idolatria de Gerrard no Liverpool e a angústia pela escassez de títulos, sua autocobrança e a cobrança da torcida.

Pode parecer estranho pensar, hoje, em Steven Gerrard sendo cobrado por seus torcedores. Mas houve, pelo menos dois momentos (os dois envolvendo o Chelsea) de hostilidade entre a torcida e o craque.

Ao mesmo tempo em que o jovem atleta crescia e se firmava como jogador e líder, o clube parecia se distanciar dos grandes títulos. Os elencos montados não faziam jus aos times vencedores do passado. Enquanto isso, outros clubes se fortaleciam de diferentes maneiras.

Gerrard cita a compra do Chelsea por Roman Abramovich, no início dos anos 2000, como um momento importante para ele entender a dificuldade que teria em levar seu clube a grandes conquistas. Os londrinos, outrora pouco competitivos, agora podiam montar grandes elencos e se juntarem a Manchester United e Arsenal, que vinham dominando a Premier League.

Como torcedor e parte do clube desde criança, Gerrard entendia o peso de não levar o Liverpool a títulos semelhantes aos do passado. Também entendia que, sem o dinheiro dos rivais, era preciso entregar algo a mais em campo para atrair atletas para o time, ou simplesmente manter seus destaques.

Não foi possível manter Michael Owen. O atacante trocou os Reds pelo Real Madrid em 2004. Ele havia subido para o profissional junto com Steven, com quem tinha grande entrosamento.

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O documentário apresenta Steven Gerrard como alguém que se cobrava (e ainda se cobra) muito por tudo que acontecia com o Liverpool. Chama atenção um momento em que ele revela que, em mais de uma vez, se questionou “Será que sou bom o suficiente?”.

Ele sempre tentava equilibrar seu amor e respeito pelo clube com sonhos pessoais de conquista. Em 2004, uma proposta de transferência para o Chelsea, de José Mourinho o balançou. Na ocasião pesou mais sua identificação com os Reds.

Quis o destino que esses dois times se enfrentassem na final da Copa da Liga daquela temporada. O Liverpool foi derrotado, com direito a gol contra de Gerrard.

Foi o primeiro momento de questionamento dos torcedores em relação a ele. Muitos relacionaram aquela derrota com sua vontade de deixar o clube. O filme mostra, inclusive, parte da transmissão da TV no momento de seu gol contra, quando o comentarista diz que “muitos vão dizer que esse foi seu primeiro gol como jogador do Chelsea”.

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Alex Livesey Collection Getty Images Sport

O fato aumentou o peso sobre as costas de Gerrard, que avaliava que apenas uma grande conquista traria orgulho de volta para a torcida.

Hoje todos sabem que aquela temporada culminaria com o “Milagre de Istambul” e a conquista da Champions League. O documentário revela, no entanto, que Gerrard não achava possível que a equipe conseguisse um título dessa envergadura naquela altura. Isso não diminuiu sua cobrança a si mesmo. Principalmente após chegar a final contra o Milan.

“Eu era capitão do Liverpool e capitães do Liverpool sempre vencem. É preciso”, afirmou. “A história e o sucesso, você sente essa responsabilidade”, completou revelando ainda mais essa faceta de líder.

Após o título tudo parecia em paz. Mas naquela inter-temporada o capitão avisou ao clube que queria ser transferido para o Chelsea. Isso gerou o segundo momento de atrito com a torcida. Dessa vez mais intenso. Pichações e camisas queimadas apareciam constantemente ao redor de Anfield. Parecia o fim.

No filme, Gerrard explica que sua relação com o então técnico Rafa Benitez não era boa. Mas que uma conversa com seu pai o fez perceber que o melhor seria ficar.

Obsessão pela Premier League

Gerrard Liverpool Riise Champions John D McHugh Collection AFP
John D McHugh Collection AFP

Apesar do título histórico da Champions League e de outras tantas conquistas em copas, Steven Gerrard não esconde sua frustração por não ter conseguido a Premier League. É o título que faltou a ele. É o título que falta ao Liverpool desde 1990.

A liga nacional é o campeonato favorito dos torcedores. O fato de um clube com uma história tão vencedora (foi campeão da liga por 18 vezes) ficar tanto tempo sem essa conquista gera um peso nas costas de alguém tão identificado com a instituição, como Steven.

No documentário, o ex-jogador deixa claro que esse era seu sentimento, temporada após temporada. Mas a de 2013-14 foi a mais dolorida. Não à toa é o assunto que inicia o filme e que reaparece no ato final.

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Gerrard relata que estava animado naquele momento. Jogadores como Luis Suarez e Philippe Coutinho e a maneira como o treinador Brendan Rodgers trabalhava o faziam crer que aquele time poderia chegar a algum lugar interessante.

Mas, ao mesmo tempo em que a equipe crescia, o meio-campista lutava contra as limitações que seu corpo apresentava. Ele revela que precisou fazer tratamentos intensivos e tomar vários tipos de injeções e analgésicos para poder estar apto em cada jogo.

Na fatídica partida contra o Chelsea (é possível dizer que o clube londrino é uma co-estrela do filme) Gerrard não estaria em condições ideais para jogar. “Mas eu não poderia ficar fora naquele momento. Joguei após tomar uma anestesia peridural”, conta.

O filme termina com Steven como treinador da equipe de base do Liverpool. Ao explicar a razão de voltar ao clube, em uma nova função, ele diz “não sinto que minha jornada está completa”.

Será que o hoje técnico do Rangers, da Escócia, treinará o time profissional do Liverpool? Jürgen Klopp, atual comandante da equipe, acredita que sim. Talvez seja assim que Steven Gerrard dê uma Premier League ao seu clube de coração. Veremos.

Avaliação

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Make Us Dream” acerta em cheio ao não se limitar apenas a contar a história da carreira gloriosa de Steven Gerrard. O documentário mergulha no lado emocional do personagem, expondo suas dúvidas e questionamentos sobre si mesmo, bem como seus medos e angústias.

Isso é interessante por revelar uma faceta totalmente humana e falha de alguém que é um ídolo, uma unanimidade. Um prato cheio para entender a mentalidade e a ética de trabalho de um dos grandes da história do esporte.

É um filme obrigatório para torcedores do Liverpool, que se emocionarão lembrando da dedicação e identificação de Steven Gerrard para com o clube. Mas a obra é também uma ótima pedida para qualquer fã de futebol, especialmente o futebol inglês.

No quesito cinebiografia de grandes atletas “Make Us Dream” é essencial.

Ficha Técnica

Nome: Make Us Dream

Diretor: Sam Blair

Disponível em: Prime Video Amazon

Dos mesmo produtores de “Amy” e “Senna”

Bruno Desidério
Bruno Desidério

Jornalista. Paulista que mora no Rio de Janeiro. Futebol e música são meus negócios