A histórica temporada do Liverpool campeão europeu e vice-campeão inglês teve jogos memoráveis e gols marcantes.
Poucos, porém, foram tão marcantes como o primeiro deles, anotado por Mohammed Salah na rodada de estreia da Premier League, em que os Reds golearam o West Ham por 4 a 0, rendendo ao time os primeiros três dos 97 pontos que somou na competição.
Numa saída de bola aparentemente despretensiosa, Trent Alexander-Arnold, o lateral direito, encontrou Naby Keita, livre na intermediária.
O meia arrancou pelo meio e soltou na ponta esquerda para Andy Robertson. O lateral esquerdo, voando pela linha de fundo, fez um cruzamento rasteiro, de primeira, que escapa das mãos do goleiro e encontra o pé direito do camisa onze, que só tem o trabalho de fazer a bola cruzar a linha.
O gol, o primeiro de 89 marcados no campeonato, foi também a primeira vez em que funcionou a jogada que mais originou gols para o Liverpool na temporada 2018-2019: o cruzamento lateral.
Confira os 89 gols do Liverpool
Desses quase noventa gols na Premier League, 34 tiveram sua origem a partir de cruzamentos laterais, isto é, feitos próximos à linha lateral, desconsiderando bolas paradas. Isso resulta em quase 40% da produção ofensiva do time de Jürgen Klopp.
Na Champions League, o número é um pouco menor, mais igualmente expressivo, sendo seis de 24 gols, ou 25% das jogadas de ataque bem-sucedidas.
O número, obviamente, deixa em evidência a temporada fantástica dos laterais do clube inglês, Arnold e Robertson. Os dois combinaram para 23 assistências na Premier League (12 do Arnold, 11 do Robertson) e outras seis na Champions League (quatro e dois, respectivamente).
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Entre esses quase 30 passes para o gol, 21 vieram dos benditos cruzamentos laterais com a bola rolando. Sobram ainda, considerando UCL e PL, somente, outros 13 tentos resultantes da jogada, executada em diferentes ocasiões por Henderson, Milner, Shaqiri, entre outros.
Os números mostram, portanto, que o repertório do ataque vermelho vai além do poderio dos laterais, sendo um sintoma flagrante da organização ofensiva do Liverpool, uma jogada muito pensada, um ponto que pode, enfim, explicar o sucesso do time na temporada.
O encaixe minucioso
Bruce Schoenfeld, jornalista do NY Times, nos lembrou recentemente, em sua fantástica reportagem para o jornal americano, como uma extensa e metódica preparação e um planejamento minucioso apoiado em quantidades indecentes de dados impulsionaram o sucesso Liverpool em 2018-2019.
Basicamente, desde que o Fenway Sports Group assumiu o comando, a gestão do clube inglês deu uma guinada para o estilo conhecido como “Moneyball”, em referência ao filme em que Brad Pitt reconstrói um time de beisebol ao contratar jogadores a partir de estatísticas diferenciadas.
Mais do que a obsessão por números, o que fez a diferença foi o fato de cada decisão do time ser tomada de maneira estratégica, levando em conta o impacto direto no que fariam no jogo. Contratação, dispensa, até a formação e o estilo de jogo, tudo foi pensado milimetricamente.
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A venda de Philippe Coutinho ao Barcelona talvez seja a melhor maneira de exemplificar. Ela foi resultado, mais do que a pressão do próprio jogador, de uma análise completa da comissão técnica dos Reds, ligando formação, estilo de jogo, fisiologia, e claro, finanças.
O Liverpool constatou, meses antes do negócio ser concluído, que o meia não servia ao modelo de jogo do time.
Com o hoje tradicionalíssimo 4-3-3, concluiu-se que, por questões físicas, Coutinho não poderia ser titular, nem no trio de frente, nem no trio de meias.
A arrancada absurda dos comandados de Klopp depois da saída do brasileiro, fala por si só da eficiência da análise feita pelo clube.
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Pois bem, foram as mesmas cabeças responsáveis por essa “jogada de mestre” que definiram que as laterais eram as melhores zonas para criação.
Como foi com o caso Coutinho, a leitura foi feita considerando diversos aspectos do time, como por exemplo, o encaixe elenco-formação. O 4-3-3 campeão europeu do Liverpool é marcante por dois motivos: pelo posicionamento dos três atacantes e pelo incansável trabalho dos três meio-campistas.
Dados levantados pela Sky Sports mostram que o Salah, Mané e Firmino foram o ataque que mais tocou na bola dentro da área adversária – um trio bastante afunilado, portanto.
Ao mesmo tempo, o meio de campo é mais defensivo, quase sempre formado por três volantes, entre Henderson, Fabinho, Wijnaldum e Milner, até para sustentar a movimentação específica do trio de frente, que se move livremente com a bola e muitas vezes não participa incisivamente da recomposição, até para ter gás lá na frente.
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O Liverpool tinha, então, um ataque muito profundo e centralizado, e um meio-campo pouco criativo e em constante movimento. A criatividade recaiu, assim, nos laterais.
“Nós temos que usar nossa configuração A nosso favor e usar nossos laterais. Nossos meio-campistas têm trabalhos diferentes, assim como nossos atacantes. É bastante claro para mim”, explicou Klopp, quando questionado pelo baixo volume ofensivo do meio-campo.
Assim, a criação pelas laterais sustenta a movimentação ofensiva e a pressão no campo de ataque, ações tão importantes para a equipe como os cruzamentos. E quem sustenta os laterais? Os zagueiros, é claro.
Matip, Gómez e Van Dijk têm técnica suficiente para “livrar” Arnold e Robertson da necessidade de se aproximar para a saída de bola, e velocidade o bastante para cobrir as largas faixas de campo deixadas pelo consequente posicionamento avançado da dupla.
O “Kloppball” à inglesa
Jonathan Wilson, autor do aclamado “A Pirâmide Invertida”, livro que traça, com uma abordagem evolutiva, uma história tática do futebol, enxerga no trabalho do técnico Pep Guardiola um ponto de transformação no esporte.
As soluções táticas e estratégicas utilizadas pelo espanhol – como a pressão imediata após a perda de posse de bola como principal método de defesa, ou a manutenção da posse de bola como uma maneira de controlar o jogo – moldaram o jogo moderno, servindo como referência, seja como inspiração, seja como antagonismo, para a maioria dos treinadores de alto nível.
Jürgen Klopp é visto por Wilson como o caso de maior sucesso entre os “antagonistas”, absorvendo os maneirismos táticos de Guardiola e os aplicando sobre outro viés, o da intensidade e objetividade, o tal “futebol rock’n roll”.
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Boa parte dos trabalhos do jornalista inglês seguem essa lógica, de uma sucessão de ações e reações por parte dos pensadores da bola. O jogo de Klopp é uma resposta ao de Guardiola, que é uma resposta ao de Mourinho, e por aí vai.
Isso teria igual aplicação para os posicionamentos e funções de cada posição, que vão se adaptando às diferentes tendências táticas.
O exemplo que melhor ilustra essa questão é o aumento expressivo da importância do volante com qualidade técnica, como uma resposta à maior pressão nas saídas de bolas. Outro é o tamanho da influência dos laterais no jogo.
Para Wilson, o lateral é hoje o jogador com maior espaço e tempo com a bola nos pés. Os times pressionam mais na frente. Então precisam ser mais compactos, para diminuir as distâncias percorridas pelos marcadores e economizar fôlego, e assim concentram seus esforços mais ao centro.
Adicione ao fato o uso recorrente de pontas que buscam a diagonal durante o ataque. Temos, assim, nos laterais, os jogadores que “escapam” da pressão, e ainda contam com mecanismos rápidos de criação de espaço (o ponta corta para o meio; se o marcador o acompanha, abre-se o corredor).
É nesse ponto que a leitura de Wilson encontra o jogo de Klopp. O alemão quer que sua equipe mande na partida, mas por meio da objetividade:
“Encontrar a mistura certa entre controlar o jogo e se manter como uma ameaça constante, essa é a chave”, ele revelou, logo após a vitória contra o Porto, na ida das oitavas da UCL.
Para executar a estratégia, os Reds têm de finalizar o máximo possível de jogadas, de modo a não sofrer contra-ataques, mesmo motivo de que a criação dessas jogadas têm de ser, de certa forma, segura.
Assim, os laterais, com o espaço-tempo de Wilson e o encaixe do elenco deste Liverpool, são os mais indicados para criar esses ataques, por meio de cruzamentos, que fazem a bola chegar na área de maneira segura – e eficiente, como vimos nos números lá de cima.
Mas engana-se que isso não passa do velho chuveirinho. Pelo contrário, o estilo dos atuais campeões europeus nunca foi tão “tiki-taka”. 34 dos 89 gols na Premier League foram criados a partir de jogadas construídas com praticamente o time inteiro posicionado no campo de ataque.
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A movimentação específica do 4-3-3 de Klopp e a velocidade na troca de passes que fazem da jogada bem sucedida. O Liverpool circula a bola de maneira agressiva. Quando a bola chega nos laterais, os zagueiros adversários estão desequilibrados, encontrando o posicionamento, o cenário ideal para um bom cruzamento.
Os seis gols de cabeça de Sadio Mané, de 1,75 de altura, falam por si só. Eles são resultado de um “chuveirinho conceitual”, uma ferramenta de um jogo intenso, ofensivo e preocupado com a exposição aos contra-ataques, um “Klopp-ball” à inglesa.
Laterais dão conta do recado
O Liverpool pode ter o elenco ideal, Klopp pode traçar as estratégias mais mirabolantes, o jogo pode desenvolver a condição ideal, que seja. De nada adianta se o lateral em questão não corresponder quando a bola chegar no seu pé.
É não somente consenso como inegável que Alexander-Arnold e Robertson deram conta do recado. Os números da dupla são impressionantes, para além do recorde de assistências feitas por um lateral numa única edição do campeonato, batido pelo primeiro e igualado pelo segundo.
Arnold, por exemplo, acertou 29% dos seus 201 cruzamentos na Premier League. Para se ter noção, Kyle Walker, colega de posição e titular do campeão Manchester City, acertou 7%. Aaron Wan-Bissaka, destaque do Crystal Palace, completou 21%, mas com quase um quarto dos cruzamentos feitos (59).
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E se o Southampton não tivesse vendido seus jogadores?
Na esquerda, Robertson ficou bem posicionado no ranking de diversas estatísticas impactantes.
Foi o segundo jogador da posição com maior eficiência nos cruzamentos, com 16%; é o segundo também em passes certos (83%), e adivinha, o segundo, dessa vez entre todos os jogadores, que fez mais corridas ofensivas – os “sprints” -, com 676. Todos os dados apenas na Premier League.
O sucesso da dupla fica ainda mais evidente se considerarmos os apenas vinte anos de Alexander-Arnold e o fato de Robertson ter se transferido da segunda divisão ao Liverpool há apenas dois anos.
Evidente fica também o quão “redondo” foi o planejamento e execução da temporada do Liverpool. Clube montou uma equipe campeã a partir de uma leitura completa do que envolve o jogo, da estratégia aos números, transformando jogadores “comuns” em armas letais, e fazendo de uma jogada simples a grande solução.