Poucos imaginavam que o Liverpool seria um candidato ao título no início da temporada 2023/24. Um elenco em reconstrução, sem o dinheiro da Champions League e que perdeu todo o meio-campo titular não parecia páreo para o infalível Manchester City ou para o novo Arsenal.
De fato, não foi. Mas chegou perto. Os Reds terminarão a Premier League consolidados em terceiro lugar, tendo até liderado a tabela por um tempo considerável, inclusive na segunda metade do torneio.
A ótima campanha só foi possível graças a um trabalho invejável de adaptação. Kelleher, Quansah e Bradley apareceram como companheiros decentes de Van Dijk na defesa e souberam “aproveitar” as contusões de Alisson, Konaté e Alexander-Arnold. Até Joe Gomez se revelou um bom lateral-esquerdo ao substituir Robertson, que também não conseguiu ficar saudável por toda a temporada.
Sem Fabinho, Henderson, Oxlade-Chamberlain e Keita, Alexis Mac Allister chegou e tomou conta do meio-campo — foi até primeiro volante. Se deu bem ao lado de Wataru Endo, outra novidade que surpreendeu ao resolver os problemas do Liverpool, e Dominik Szoboszlai, que fez uma grande primeira metade de liga — e, quando caiu o desempenho, viu os promissores Curtis Jones e Harvey Elliott assumirem o protagonismo.
O ataque, ponto fraco do time, foi minado por lesões e ainda sobreviveu. Salah fez 18 gols e 10 assistências em 31 jogos, uma boa média. Fora os crescimentos de Cody Gakpo e Luis Díaz.
Tudo isso para dizer que o Liverpool se formou com remendos costurados por Jürgen Klopp em seu ato final. E foi tão bom que as expectativas aumentaram a ponto de se colocar como concorrente de Arsenal e City.
Mais do que isso, embalados pelo anúncio de despedida de Klopp e o sonho de fechar o ciclo do treinador com chave de ouro, houve um momento em que os Reds se tornaram candidatos a ganhar tudo que disputavam. Foram campeões da Copa da Liga, para ser justo, mas parou por aí — e tudo bem.
Seja por comoção em torno de Klopp ou pelo resultado acima do esperado, criou-se um clima de decepção com o fim da temporada do Liverpool. Só um título não foi o suficiente. Mas aí o erro está na expectativa. Desde o início, a missão do LFC era reconstruir as bases do time e se classificar para a Champions League. Cumpriu e ainda levantou um troféu. E Klopp merece aplausos por isso.
Klopp merece, aliás, aplausos por tudo que fez ao longo dos últimos nove anos de Liverpool.
O meu medo é que ele sofra com a mesma descontextualização que acontece na temporada 2023/24.
Afinal, como explicar que a jornada de Klopp e Liverpool foi épica, mesmo que os dois só tenham vencido uma Premier League em nove anos? A exceção da Copa da Liga, aliás, tudo foi único. Uma Champions, uma FA Cup, uma Recopa europeia, uma Supercopa da Inglaterra. Pouco demais para um dos maiores clubes do país?
Numericamente, pode ser que sim. Mas a frieza dos números não sobrevive a qualquer olhar mais aprofundado. No cenário inglês, foram dois vice-campeonatos com as extraordinárias pontuações de 97 pontos (2018/19) e 92 pontos (2021/22). A última seria suficiente para ganhar a atual Premier League. Já a anterior seria suficiente para ganhar qualquer edição da Premier League.
Também foram três vices europeus. O primeiro, logo na primeira temporada, em 2015/16, para um Sevilla que se torna invencível na Europa League. Depois, duas finais da Champions perdidas para o Real Madrid. Em 2018, parou na partida desastrosa de Karius. Em 2022, nos milagres de Courtois.
O City de Guardiola e o Real de Zidane/Ancelotti talvez sejam os dois piores adversários possíveis. São eles que ajudam a explicar a “decepção” em número de títulos de Klopp para o Liverpool. Ao mesmo tempo, são eles que valorizam as conquistas.
É incrível que os Reds tenham vencido no período dessas outras duas máquinas. Especialmente a Premier League que acabou com o jejum de 30 anos e a Champions que, entre outros dias heroicos, teve a goleada por 4 a 0 sobre o Barcelona na semifinal.
Liverpool 4-0 Barcelona 😱#OnThisDay in 2019… a night we’ll never, ever forget 😍 pic.twitter.com/4cFt2SpuJr
— Liverpool FC (@LFC) May 7, 2022
Isso sem falar do legado para além das medalhas. Os times memoráveis. O estilo de jogo inconfundível e renovável. Apostas que se tornaram ídolos. A conexão com a cidade e o espírito do clube. O renascimento de um gigante. Tudo isso conta.
Claro que Klopp merecia um “treble” ou mais títulos nacionais, mas até a magia tem um limite. E o mais importante, convenhamos, não era simplesmente voltar a ser campeão. O Liverpool precisava voltar a ser competitivo, a ser protagonista, a disputar com os melhores do país — e fazê-lo durante um período consistente. É muito mais difícil do que “só” ser campeão.
É por isso que a última temporada é a representação de todo o resto. Porque, agora ou na última década, apenas um trabalho épico ofereceria a possibilidade aos scousers de voltar a sonhar tão alto.
“You have to change from doubters to believers“, como disse Klopp em sua mensagem mais importante como treinador do Liverpool. “Vocês precisam passar de duvidosos para crentes”. Ele conseguiu. Conseguiram. No coletivo.
From doubters to believers ✊
Liverpool FC. We are champions of England. #LFCchampions pic.twitter.com/09WecIuBVz
— Liverpool FC (@LFC) July 22, 2020
Qual foi a melhor temporada?
É irresistível a tentação de escolher o melhor Liverpool entre os nove anos de Jürgen Klopp. Não o melhor momento ou o título mais marcante, mas a versão do time que mais encantou.
As respostas mais óbvias estão entre 2018 e 2020. Seja o rock’n roll do impacto original, que apresentou Salah, Mané e Firmino ao mundo, ou a versão consolidada já com Alisson e Fabinho. Afinal, nesse meio aí tem troféus da Champions e da Premier, além de um vice de cada.
Mas minha escolha não é óbvia. O melhor Liverpool de Klopp, para mim, foi o da temporada 2021/22. Foi uma equipe que manteve a característica intensa e marcante do alemão, ao mesmo tempo em que lidava bem contra retrancas e times mais fechados — muito por conta da presença de Thiago Alcântara. Não à toa, foi o único ano que o ótimo volante espanhol conseguiu jogar frequentemente em Anfield.
Além da presença de Thiago, que tornou o time mais refinado e dominante, o elenco ainda incluía opções no banco do nível de Diogo Jota e Luis Díaz, que ajudaram a manter a competitividade e aumentaram o nível do desempenho. Principalmente Firmino, que já estava sofrendo com problemas físicos.
Alisson; Alexander-Arnold, Konaté (Matip), Van Dijk e Robertson; Fabinho, Thiago e Henderson; Salah, Mané e Firmino (Luis Díaz). Esse era o time-base da temporada.
Esse time acima podia ter ganho os quatro torneios que disputou. Venceu as duas Copas, ambas contra o Chelsea — e passando por Arsenal e City nas semifinais. Foi vice-campeão da Premier League com 92 pontos e requintes de crueldade, vendo o City se sagrar campeão na última rodada ao virar um 2 a 0 contra o Aston Villa de Gerrard e Coutinho.
A jornada europeia foi especial. O Liverpool fez 18 pontos no grupo com Atlético de Madrid, Porto e Milan. Passou no mata-mata sem sustos por Internazionale, Benfica e Villarreal. Na final, encurralou o Real Madrid, mas atuações perfeitas de Courtois e Vinicius Junior deixaram a taça com os espanhóis.
“It’s difficult to say farewell, but let’s remember the good times…” ❤️🥹 pic.twitter.com/Gnlq0MbI2j
— Liverpool FC (@LFC) May 18, 2024