Foram diversos os escoceses que escreveram uma bela história com a camisa do Liverpool. Bill Shankly, Ian St. John, Grame Souness e até o lateral Andy Robertson começa a sua. Nenhum deles, no entanto, foi maior que Kenny Dalglish. Aliás, quando o assunto é Liverpool, ninguém parece ter ser sido maior quanto “King Kenny”.
Kenny Dalglish, a história de um dos maiores de sua geração
Como jogador, como técnico ou como os dois, Dalglish empilhou títulos e gravou seu nome na história dos Reds, seja no abstrato do imaginário do torcedor, seja no concreto das arquibancadas de Anfield.
Usou a camisa 7 do Liverpool em 515 oportunidades. Nelas, marcou 172 gols. A combinação dos dois resultou em incríveis 25 títulos conquistados. Foram três Copas Europeias (a atual UCL) e oito Campeonatos Ingleses, para ficar somente entre os principais.
Um pouco mais de um quinto desses troféus, é bom lembrar, foram erguidos já como player-manager, famigerada posição que só reforça (e que talvez só seja concebível com) o nível de identificação e respeito mútuos entre clube e jogador.
Quase uma simbiose, a parceria estava fadada ao sucesso, até porque começou a ser construída dez anos antes de sua primeira glória.
O Rei de Liverpool
A história dos dois começa ainda em 1966, quando um Dalglish adolescente sai de Glasgow para fazer testes no clube inglês.
Na época, a forte rede de olheiros de Bill Shankly já começava a fazer diferença na Europa, garantindo contratações certeiras ao time vermelho, e era especialmente forte na terra natal do chefe.
Não demorou, portanto, para o jovem Kenny ser descoberto jogando pelo Glasgow United, time local de juniores, assim como para receber um convite para testes num dos maiores da Inglaterra.
As semanas em Merseyside foram essenciais para a formação de Kenny Dalglish como um atleta, mas principalmente para pavimentar o caminho a ser seguido na década seguinte.
Afinal, sabendo do potencial do conterrâneo, Shankly colocou o garoto na rotina dos profissionais. Alguns deles, para o delírio do jovem atleta, eram campeões da Copa do Mundo apenas alguns meses antes, como Roger Hunt.
Kenny fez o clássico trajeto Anfield-Melwood no ônibus dos jogadores e vivenciou toda a camaradagem ali presente, que seria depois dita como um dos segredos para a hegemonia que seria por eles estabelecida.
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Participou de treinos, jogos, conversas e brincadeiras no vestiário e retornou à Escócia com muito afeto pelo clube, assim como um convite para se juntar às categorias de base, terminantemente rejeitada pelo seu pai devido à pouca idade – Kenny tinha 15 anos.
Mas o estrago já estava feito. Onze anos depois, capitão e vencedor do Double (Liga e Copa da Liga) com o Celtic, Dalglish queria alçar voos maiores. Mantinha suas possibilidades abertas, mas apenas um destino em mente.
“Eu sabia o que queria. Queria estar de volta naquele ônibus, sentado com meus colegas de Liverpool, vivendo a mesma atmosfera especial que tinha sentido quando tinha quinze anos”, lembra em “My Liverpool Home” (2010), sua autobiografia.
Uma pressão no técnico Jock Stein, uma subsequente ligação do chefe a Bill Shankly e cinco minutos de reunião com John Smith e Bob Paisley depois e o escocês era enfim jogador do clube inglês.
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Apesar de uma atleta reconhecido internacionalmente, com glórias no Celtic e a capitania da seleção escocesa, Kenny teve de se provar à sua nova torcida. Afinal, chegava para o lugar de Kevin Keegan, craque do time e herói do título europeu no ano anterior.
Para herdar a idolatria que vinha junto de sua camisa sete, Dalgish não fez por menos. Na abertura da temporada 1977/78, gol e assistência contra o Newcastle; no fechamento, gol do título europeu contra o Brugge.
Esses, somados aos outros 21 tentos que marcou no meio do caminho, deram partida a uma relação de carinho que perdura até hoje, resistindo à saídas repentinas, voltas repentinas, passagens sem sucesso e até tragédias inesquecíveis.
Algo possível, repete-se, somente para alguém com a força e o caráter de Kenny Dalglish.
A vida não é um ensaio, Kenny Dalglish
Filho da working-class escocesa, Kenny Dalglish sempre teve grande influência de suas origens em sua conduta e até em seu jogo, começando por sua habilidade. A menor condição financeira de sua família não lhe proporcionava outro entretenimento senão o futebol.
Passava suas tardes jogando bola e se aprimorando no campinho do bairro, cujos gols foram construídos num esforço conjunto entre os vizinhos. Este fato, aliás, foi preponderante para o pensamento coletivo impresso em cada atitude do craque escocês.
Seja exercendo a sua liderança, seja jogando, Kenny sempre teve uma forte mentalidade coletiva. Nos vestiários, prezava pelo bom ambiente e pela boa relação com os colegas. Antes de cada jogo, ia até cada jogador dar um comprimento e uma palavra de incentivo.
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Dentro de campo, priorizava as jogadas em conjunto, distribuindo assistências com a mesma facilidade com a qual marcava gols. Ian Rush, maior artilheiro da história do Liverpool, recebeu uma enormidade de passes açucarados do camisa sete.
E como eram bons os passes de Dalglish. Assim como seus chutes. Ambos não eram necessariamente os mais artísticos, o “flair” que tanto falam os ingleses, mas eram de uma eficiência descomunal.
Até porque sua principal característica, mais do que a técnica com a qual eram aplicados, era a visão que os originavam. Kenny Dalglish era, acima de tudo, muito inteligente com a bola nos pés. Antevia as jogadas, sabia quando correr, quando parar, e criava espaços com os mais simples movimentos.
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“É o seu futebol cerebral. Ele conseguia ver coisas bem antes de todo mundo, e era bem fácil para mim. Ele era especialista em enganar os marcadores. Quando ele conseguia, ou ia para o gol ou deixava alguém na frente dele”, analisa o próprio Ian Rush, ao documentário Kenny (2017).
Este aspecto do seu jogo, assim como os outros, relaciona-se com a sua história. “A vida não é ensaio”, já dizia Bill Dalglish, seu pai. E como bom filho, Kenny ouvia. Dava valor a cada jogo, e jogava com uma concentração acima da média, o que facilitava essa visão diferenciada dentro das quatro linhas.
Técnico, coletivo, goleador, diferenciado. O tamanho do jogo de Dalglish não só alavancou o futebol praticado pelo Liverpool como, ano após ano, o fez crescer aos olhos de todos os envolvidos.
Os jogadores respeitavam sua dedicação e confiavam no seu poder de decisão; a torcida o idolatrava, cunhando o apelido de “King Kenny” logo ao fim de sua primeira temporada; a comissão técnica via potencial em sua liderança e entendimento do jogo.
A diretoria respaldava essa visão e reconhecia seu tamanho dentro do clube, tanto que em 1985 tomou uma decisão histórica: fez de Dalglish o primeiro, e único, jogador-treinador da história do Liverpool.
O Chefe
Tamanha era a desventura do Liverpool quando Kenny Dalglish assumiu, que era possível escolher o maior obstáculo da temporada de olhos fechados, pois o problema com certeza não seria menor.
A começar pelo complicado momento internacional do clube, banido de competições europeias e com uma enorme rejeição no mundo da bola após a Tragédia de Heysel. Depois, havia a questão do fim da linhagem de treinadores do Boot Room, com a saída de Joe Fagan. Por fim, a tensão no vestiário, com um dos líderes do elenco sendo transformado em chefe.
Dalglish e o Liverpool deram então, mais uma vez, a força de sua parceria, e foi se superando, barreira por barreira.
O ambiente vestiário foi cuidado com a braçadeira de capitão indo para o zagueiro Alan Hanssen, conterrâneo de Dalglish e uma das lideranças do grupo. A confiança na comissão técnica foi restabelecida com um estilo de jogo mais direto, ofensivo, que agradava críticos, torcida e jogadores.
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Por fim, se o clube não podia competir internacionalmente, dominou nacionalmente. Em maio de 1986, o Liverpool confirmou o Double, vencendo sua terceira Copa da Inglaterra e sua 16ª liga inglesa – o gol do título não poderia ser de ninguém senão Kenny Dalglish, é claro.
Daí para frente, com o “trono” recuperado, o camisa sete foi sendo cada vez mais treinador e cada vez menos jogador. Foi vice-campeão da PL em 1987 e vice da Copa da Inglaterra em 1988.
Venceu a Liga de 1988 com um dos melhores desempenhos já vistos no futebol inglês, no comando do ataque formado por Peter Beardsley, John Aldridge e John Barnes. Venceu a Copa da Inglaterra de 1989, ficou em segundo na Liga no mesmo ano e levou novamente o Campeonato Inglês de 1990.
Em fevereiro de 1991, porém, surpreendeu a todos ao se demitir, antes mesmo do fim da temporada, após um empate em 3 a 3 no Dérbi de Merseyside. Dalglish alegou que não conseguia tomar decisões durante o jogo, e por isso sentia-se inapto a comandar o time.
“O problema é a pressão que me ponho por causa da minha enorme vontade de vencer. O estresse que vem antes e depois dos jogos foi grande demais (…) Eu estou envolvido com o futebol desde que tinha dezessete anos de idade. Foram vinte anos nos dois mais bem sucedidos clubes da Grã-Bretanha, Celtic e Liverpool. Eu estive na linha de frente todos esses anos, mas chegou ao fim”, ele disse em sua coletiva de imprensa de despedida.
Mas o buraco era mais embaixo.
O homem e as tragédias
Segundo revelou sua própria família no documentário “Kenny”, o treinador estava no auge de seu estresse pós-traumático, causado pelo enorme envolvimento emocional na Desastre de Hillsborough e nenhum tipo de tratamento.
Desde o fatídico dia de abril de 1989, Kenny Dalglish tinha depositado em si o peso das 96 vidas perdidas no estádio do Sheffield Wednesday. Atendeu à todos os 96 funerais, todos de torcedores do Liverpool, e foi além do suporte com as famílias das vítimas, criando laços de fato, relacionando-se, enfim.
Isso porque para o bem ou para o mal, Kenny Dalglish tinha vivência neste tipo de situação. Além da Tragédia de Heysel, da qual foi o porta-voz dos jogadores, defendendo-os das críticas por terem jogado a partida mesmo após os acontecimentos, o craque esteve presente em outro acontecimento de igual magnitude.
Em 1971, estava nas arquibancadas do Ibrox Stadium, estádio dos Rangers, quando um parte da estrutura cedeu. 66 escoceses foram mortos naquele dia.
Aguentar uma dessas catástrofes já seria uma tarefa hercúlea. Três então, um calvário. Por isso que o escocês reagiu com tanto ardor a Hillsborough, sendo uma peça central para a recuperação da auto-estima tanto da cidade como do clube.
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Acontece que eram outros tempos, e falta de cuidado psicológico profissional lhe custaram a saúde mental, e consequentemente uma carreira de 24 anos no clube adotado pelo coração.
As coisas só foram melhorar para Kenny Dalglish em 1995, quando conquistou o histórico título da Premier League comandando o Blackburn.
“Zebra” da magnitude do recente título do Leicester, em 2016, foi o último grande momento esportivo de sua carreira.
O treinador passou por Newcastle e Celtic antes de um retorno “emergencial” ao Liverpool, em 2011, que apesar de pouco sucesso, garantiu aos Reds a Copa da Liga.
A passagem serviu também para renovar os vínculos com o clube. Em 2013, assumiu o cargo de diretor não-executivo, que serve até hoje.
Às Honras
Como se fosse necessário prover seu tamanho para seu, clube, sua cidade e seu esporte, o mais inglês dos atletas escoceses recebeu duas belas homenagens.
A primeira veio do Liverpool, que renomeou a Centenary Stand para Kenny Dalglish Stand, na ocasião dos quarenta anos de sua transferência ao clube, em outubro de 2017.
Depois, da Rainha. Em junho deste ano, recebeu o título de “Sir”, pela contribuição ao esporte e pela notável participação após a Tragédia de Hillsborough, além do recente apoio ao combate ao câncer de mama, na forma da Fundação Marina Dalglish.