Quando a Inglaterra e a Alemanha nazista duelaram no White Hart Lane

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Em meio ao outono de 1935, o antigo estádio do Tottenham, o White Hart Lane, recebia uma partida que ficaria marcada para a história do futebol. Naquele mês, um amistoso entre as seleções da Inglaterra e da Alemanha nazista iria acontecer dentro da casa dos Spurs. 

Quando a Inglaterra e a Alemanha nazista duelaram no White Hart Lane

Quatro anos antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, que começou em 1939, a Football Association (FA) marcou um jogo entre as seleções inglesa e alemã. Imediatamente após essa decisão, houve preocupação por parte de muitos ingleses. A Alemanha estava em uma alta ascensão do nazi-fascismo de Adolf Hitler, com a política de ódio e baseada em perseguições.

Essa política ficou ainda mais clara quando, em setembro de 1935, um mês antes do amistoso, a Alemanha sancionou as leis raciais de Nuremberg. Eram três leis que ampliaram e consolidaram o ódio aos judeus

A lei de proteção do sangue e da honra alemã proibia casamentos e relações sexuais entre judeus e não-judeus. A lei de cidadania do Reich definiu quem seria cidadão alemão e, para isso, a pessoa deveria provar com dados genealógicos. E a lei da bandeira do Reich estabelecia a suástica e o preto, vermelho e branco como símbolo e cores do país.

A comunidade internacional criticou a sanção e a aplicação dessas leis. Ainda assim, o amistoso entre Inglaterra e Alemanha continuava de pé.

A escolha da Football Association

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Richard Heathcote/Getty Images

No período entre guerras (1ª e 2ª Guerra Mundial), o Wembley não recebia os jogos da seleção inglesa, logo a alternativa eram os estádios dos clubes, principalmente os londrinos. O estádio do Arsenal já tinha sediado três jogos da seleção e o do Tottenham apenas um, por isso, a Federação Inglesa decidiu utilizar o White Hart Lane como palco para o amistoso.

Apesar da escolha ter sido natural por conta do rodízio de estádios, a decisão da FA gerou polêmicas, uma vez que o Tottenham era um time nascido e criado num bairro de imigrantes, muitos deles judeus. Os jornais de Londres chegavam a noticiar que aproximadamente 30% da torcida que ia aos jogos dos Spurs era judia. 

Com o intuito de desvincular a imagem do Tottenham dos judeus, o jornal “Weekly Herald” noticiou que, segundo uma fonte de dentro do clube, a torcida dos Spurs nem tinham tantos judeus como se imaginava. Dias depois, mais de 50 cartas chegaram ao jornal, todas escritas por judeus que explicitavam o descontentamento com a presença da Alemanha nazista no estádio do clube pelo qual torciam.

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Assim que recebeu essa enxurrada de cartas, o “Weekly Herald” se retratou e disse que diversos protestos e manifestações estavam sendo organizados contra os alemães nazistas.

Apesar disso, a Football Association não se importou muito. Para ela, futebol e política não se misturavam. O governo britânico também não interviu de maneira firme, apenas sugeriu aos alemães que não usassem símbolos e nem fizessem nenhuma saudação nazista nas ruas.

Na primeira partida do Tottenham depois da decisão da FA, mais de seis mil torcedores judeus do time da casa protestaram nas arquibancadas do White Hart Lane, na partida contra o Burnley.

Depois dessa partida, o Weekly Herald divulgou cartas da torcida judia do Tottenham em que eles exigiam o cancelamento do amistoso. Pouco tempo depois, o mesmo jornal mostrou que outra parte de torcedores não fazia a menor questão que a partida fosse cancelada, muito pelo contrário. A ideia deles era que se a seleção inglesa jogasse apenas para os “legítimos ingleses” seria fantástico.

Clima tenso nas ruas de Londres

Certamente os ingleses não imaginavam que estariam acompanhado por mais de dez mil alemães no White Hart Lane. Os visitantes se organizaram para irem à Inglaterra mostrar o orgulho que tinham pelo seu país.

Isso fez com que diversos navios à vapor, aviões, trens e carruagens chegassem a Londres. Essa migração temporária para a partida foi algo sem precedentes naqueles tempos.

Assim que pisaram na capital inglesa, os alemães fizeram questão de se comportar muito bem. Por conta de um acordo diplomático entre os governos, os alemães não provocavam e nem exibiram nenhum adereço nazista, muito pelo contrário. Eles elogiavam sempre que podiam a capital e o povo britânico.

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O capitão da seleção alemã, Fritz Szepan, elogiou Londres, disse que era apenas um jogador que não sabia nada sobre política e, que apenas aquela partida, entre a Inglaterra e a Alemanha nazista, importava.

A fim de proporcionar segurança, as autoridades britânicas realizaram uma megaoperação para a partida. Estima-se que o jogo contou com mais de mil oficiais envolvidos, espalhados em diversas rondas, locais e atividades. Até mesmo uma delegacia provisória foi montada dentro do White Hart Lane.

Duas horas antes do horário previsto para a bola rolar, um protesto anti-nazista saiu da estação de Bruce Grove, com destino ao estádio dos Spurs. No caminho, cantos anti-fascistas e cartazes com frases de ordem anti-nazista – “Nosso objetivo: paz, objetivo de Hitler: guerra” e “Mantenha o esporte limpo, lute contra o fascismo”.

A polícia não demorou a coibir a manifestação e rasgou os cartazes e folhetos, além de ter prendido diversos manifestantes. Ainda assim, folhetos eram distribuídos e colados pelas ruas próximas ao White Hart Lane. Nesses momentos que antecederam ao jogo, diversas foram as brigas de rua entre anti-nazistas e nazistas.

Union Jack e a suástica lado a lado

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Richard Heathcote/Getty Images

Dentro do estádio, o acordo diplomático para a torcida alemã parecia que não valia mais. Sentados na New Stand, os alemães tremulavam pequenas bandeiras com a suástica. Assim que os primeiros acordes do hino nacional alemão entoaram no estádio, imediatamente a saudação nazista aconteceu, com alguns ingleses repetindo o gesto.

No gramado, a bandeira do Reino Unido – Union Jack – e a bandeira da Alemanha nazista foram exibidas lado a lado, assim como na fachada do White Hart Lane, que tinha as duas bandeiras tremulando ao vento.

Assim que a bola rolou, ficou clara a superioridade dos ingleses. A partida terminou em 3 a 0. Poderia ter sido muito mais, já que os craques Stanley Matthews e Raich Carter não tiveram grande atuação. A vitória da Inglaterra sobre a Alemanha nazista foi até fácil.

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Pós-jogo complicado

Em seguida ao apito final, as delegações da Inglaterra e da Alemanha nazista foram juntas para um jantar, em comemoração ao sucesso da partida, que teve casa cheia e grande repercussão. Durante o jantar, houve dedicação ao Rei George V e posteriormente a Adolf Hitler.

Por conta do clima tenso que pairava sobre Londres naquele dia, a torcida alemã não demorou para ir embora. Relatos diziam que não os alemães não se encontraram mais nas ruas londrinas no fim da noite. 

Ao passo que o jogo havia terminado, os manifestantes anti-nazistas se dirigiram até a estação Victoria para protestar novamente. Dessa vez, a maioria não era de judeus, mas sim de comunistas veteranos. Panfletos eram distribuídos e faixas eram exibidas com a frase “Free Thaerlmann”, referência a Ernst Thällman, líder do partido comunista alemão preso em 1933.

No dia seguinte ao jogo, as pessoas que haviam sido presas tiveram seus julgamentos. A maioria teve que cumprir uma pena na prisão, sob a alegação de terem incitado atos violentos e alguns por “espalhar literatura ofensiva”.

Um fabricante de ferramentas, chamado Ernie Wooley, de apenas 24 anos quase foi preso. A acusação era que ele teria cortado as cordas que seguravam a bandeira nazista na cobertura do White Hart Lane, o que fez com que ela ficasse ausente durante parte do jogo.

Wooley admitiu que cortou a corda, mas disse que não era a sua intenção, já que ele queria apenas desatar o nó. Por fim, Wooley contou que a bandeira nazista era odiada na Inglaterra. Ele foi preso, mas depois solto em julgamento por falta de provas.

Emanuel Vargas
Emanuel Vargas

Jornalista pela UFV, radialista e viciado em esportes. Escrevo na @PLBrasil1 e no @doislances