Hillsborough: 35 anos após tragédia, estádio ainda apresenta problemas ‘perturbadores’

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Hillsborough é um estádio histórico do futebol inglês e, no próximo mês, completa 125 anos de existência. Nesse período, o local não é apenas a casa do Sheffield Wednesday, mas também recebeu 34 semifinais da FA Cup e duas finais da Carabao Cup.

Esse nome, Hillsborough, também significa outra coisa: um dos piores e mais tristes momentos do esporte na Inglaterra. Em 1989, 97 torcedores do Liverpool perderam a vida por falhas de segurança no estádio. Esse trágico momento transformou o cenário do futebol inglês.

Trinta e cinco anos depois da tragédia, após um longo processo de remodelação na segurança dos estádios ingleses, o local ainda apresenta falhas e preocupa os torcedores.

O que aconteceu em Hillsborough?

Em 1989, mais precisamente no dia 15 de abril, Liverpool e Nottingham Forest se enfrentaram pela semifinal da FA Cup. Naquela época, a Federação Inglesa havia determinado que as semifinais da Copa da Inglaterra seriam disputadas em campo neutro. O palco escolhido foi o Hillsborough, em Sheffield.

Antes da realização do jogo, Brian Mole, então chefe de segurança para o confronto, foi retirado da função por “brincadeiras violentas com policiais” — não foi especificado o que de fato ocorreu. Ele acabou sendo trocado por David Duckenfield, que não tinha experiência com partidas de futebol.

O cenário do futebol inglês nos anos 1980 era muito diferente do atual. Muitos estádios estavam com infraestrutura precária e o hooliganismo tomava conta das arquibancadas.

Na divisão das arquibancadas, os torcedores do Nottingham Forest ocuparam o setor Spion Kop End, com capacidade para 20 mil pessoas. Já a torcida do Liverpool, mesmo maior, foi designada para o Leppings Lane End — este setor menor, com capacidade para 14,6 mil pessoas.

Dias antes do jogo, a Federação Inglesa emitiu um comunicado em que pediu para que aqueles que não conseguiram ingresso não comparecessem ao Hillsborough.

O que não adiantou.

A tragédia que mudou o futebol inglês

A partida estava marcada para começar às 15h, no horário local, e a organização pediu para os torcedores chegaram ao estádio 15 minutos antes do apito inicial. Porém, 45 minutos antes de a bola rolar, o setor da torcida do Liverpool já estava lotado. O fluxo de pessoas foi aumentando, incluindo torcedores que sequer tinham ingresso.

Havia sete catracas para controlar a entrada dos torcedores do Liverpool, mas apenas funcionava. A solução encontrada pela equipe de segurança do estádio foi abrir um dos portões de acesso. O descontrole tomou conta e o empurra-empurra no setor começou. A área era dividida com grades altas, formando uma espécie de compartimento.

Com apenas seis minutos de bola rolando, a partida precisou ser interrompida, pois torcedores começaram a invadir o gramado. Enquanto isso, aqueles que estavam perto da grade estavam sendo esmagados e asfixiados. Inicialmente a polícia achou que era uma invasão de campo, até compreenderam a gravidade da situação e liberarem o acesso.

Ao todo, 95 torcedores do Liverpool morreram pisoteados, enquanto outros 766 ficaram feridos. Esse número aumentou para 97, pois uma vítima faleceu em 1990 e outra em 2021, ambas em decorrência da tragédia.

Torcedor lamenta tragédia em Hillsborough, em foto tirada no dia 15 de abril de 1989 - Foto: Icon Sport
Torcedor lamenta tragédia em Hillsborough, em foto tirada no dia 15 de abril de 1989 – Foto: Icon Sport

Autoridades e imprensa culpam torcedores

As autoridades locais responsabilizaram os torcedores do Liverpool pela tragédia, por entrarem no estádio sem ingresso. Margaret Tarchet, então primeira-ministra do Reino Unido, havia divulgado um relatório em que culpava o consumo excessivo de bebidas alcoólicas da torcida.

Jornais como o “The Sun” também utilizaram o mesmo discurso, com o tabloide chegando a publicar na capa de uma edição sobre “a verdade” sobre Hillsborough, alegando que os torcedores haviam urinado em policiais e roubado pertences de mortos. Em 2012, o portal publicou uma edição reconhecendo o erro.

Apenas em novembro de 2023 que o governo pediu desculpas aos familiares das 97 vítimas.

No entanto, o único considerado culpado pela justiça foi Graham Mackrell, proprietário do Hillsborough. Ele precisou pagar 6,5 mil libras por “negligenciar o número de catracas do local”. David Duckenfield também foi a julgamento por homicídio em 2019, mas foi inocentado.

No dia 15 de abril de 2024, quando a tragédia completou 35 anos, o Liverpool prestou uma homenagem às vítimas. O CEO do Liverpool, Billy Hogan, e Sir Kenny Dalglish, treinador da equipe à época, os capitães da equipe masculina e feminina e Klopp — então técnico dos Reds –, compareceram ao Hillsborough Memorial, em Anfield.

Mudanças no futebol inglês

Depois do episódio em Hillsborough, as autoridades modificaram as regras no futebol inglês, principalmente nos estádios. As arenas foram modernizadas e as capacidades nas arquibancadas foram reduzidas.

As cercas de proteção — mais conhecido como alambrados — entre torcedores foram retiradas dos estádios. Também passaram a ser proibidos lugares para os torcedores assistirem os jogos em pé — a famosa “geral” — e todos os setores passaram a ter assentos nas arenas das primeira e segunda divisão — um time precisa fazer a adaptação caso suba de divisão.

As transmissões também mudaram. No dia da tragédia, o canal de televisão que transmitia o jogo exibiu as imagens dos torcedores. Agora, quando ocorre um acidente, seja no campo ou arquibancada, as imagens não são transmitidas.

Homenagens numa das traves do estádio de Hillsborough colocadas no dia seguinte à tragédia - Foto: Icon Sport
Homenagens numa das traves do estádio de Hillsborough colocadas no dia seguinte à tragédia – Foto: Icon Sport

Hillsborough ainda apresenta falhas na estrutura

Enquanto boa parte das arenas se adaptaram no futebol inglês, o mesmo não pode ser dito para Hillsborough. O estádio continua apresentando falhas, deixando os torcedores apreensivos. O setor Leppings Lane End é destinada à torcida visitante.

Em janeiro de 2023, torcedores do Newcastle vivenciaram a superlotação na área. Os oficiais de segurança do Conselho Municipal de Sheffield chegaram a descrever a partida como “quase acidente”. Algumas pessoas arrancaram a cobertura dos assentos para aliviar a pressão da lotação. O clube realizou mudanças nas arquibancadas, incluindo a capacidade.

Construído entre 1961 e 1965, o Leppings Lane End é o terceiro setor mais antigo dos estádios da Championship, a segunda divisão inglesa.

Nos últimos 35 anos, grande parte das mudanças no setor foram feitas por questões estéticas — pinturas das paredes, por exemplo — em vez da parte estrutural.

Em uma investigação, o “The Athletic” revelou os seguintes problemas:

  • Problemas de segurança enfrentados por torcedores de seis times diferentes;
  • Especialistas em dinâmica de multidões relataram em setembro de 2023 que a arquibancada superior não é capaz de acomodar os torcedores;
  • Em janeiro de 2023 a SAG (órgão responsável pelo certificado de segurança em campo) realizou uma reunião e declarou que “uma questão principal são as restrições físicas de um povoamento envelhecido” sobre o estádio;
  • Foram levantadas preocupações significativas sobre a administração do estádio;
  • Concreto e amianto em ruínas foram encontrados no Leppings Lane End.

Torcedores relatam problemas em Hillsborough

Nos últimos meses, o “The Athletic” fez um levantamento sobre o estádio em Sheffield. O portal entrevistou alguns torcedores — que optaram por manter a identidade em anonimato — e destacaram os problemas no Leppings Lane End.

Um torcedor do Leeds visitou o Hillsborough em março de 2024, para uma partida contra o Sheffield Wednesday, com o pai de 78 anos. A polícia escoltou um grupo de torcedores, mas conforme a multidão avançava, eles foram canalizados para um pequena entrada do estádio.

— Meu pai estava dizendo: ‘Precisamos sair, não tem como sair.’ Uma senhora idosa estava dizendo que não conseguia respirar. O que impediu meu pai de cair foi que não havia onde cair, ele foi empurrado contra as pessoas. Felizmente, uma barreira desabou e eu coloquei meu pai sobre ela — declarou o torcedor do Leeds.

Um torcedor com deficiência física do Plymouth também esteve presente no Hillsborough durante a temporada passada e declarou que o estádio é muito inseguro para deficientes.

— Os deficientes ambulantes foram colocados na camada superior. Embora estivéssemos no início, nossos assentos na primeira fila pareciam muito inseguros e se houvesse uma onda de torcedores todos de pé, teríamos passado da barreira da borda — afirmou o torcedor do Plymouth.

Em entrevista ao portal inglês, um torcedor do Bolton reclamou da superlotação durante o intervalo para ir até os banheiros.

— Era desconfortável. Você vê as pessoas ficando impacientes, tentando passar. Tenho 1,93 m, 86 kg, não me movo facilmente, mas ainda me lembro de balançar nos pés com as pessoas batendo em mim. Já estive em 84 estádios na Inglaterra, mas nunca experimentei nada parecido antes — destacou o torcedor do Bolton.

Mesmo com a redução da capacidade após o jogo contra o Newcastle, o setor continua com superlotação e sem espaço para os torcedores acompanharem a partida sentados, como relato um torcedor do Sunderland.

— Quando estávamos lá, só podíamos ver assentos fechados na camada superior. A camada inferior estava com capacidade total. Não foi construído para sentar, é muito raso, então todos ficam de pé na frente, as pessoas ficam mais atrás, e se torna quase sem lei — disse o torcedor do Sunderland ao “The Athletic”.

Sheffield Wednesday nega problemas na estrutura do estádio

Em março, o porta-voz Hillsborough Survivors Support Alliance, Peter Scarfe, emitiu um comunicado ao “The Athletic” em que pede reformas no Leppings Lane End.

— Essa parte do estádio precisa ser demolida e reconstruída. É um desastre esperando para acontecer afirma Peter Scarfe.

O portal inglês afirma que entrou em contato com um representante do Sheffield Wednesday. O porta-voz declara que o clube trabalha incansavelmente com as autoridades para garantir a segurança para os torcedores visitantes.

— O clube recebe um certificado de segurança anualmente, sem o qual o estádio não teria permissão para abrir. A cada ano, uma inspeção robusta e completa de todos os quatro estandes é encomendada pelo clube e realizada por órgãos independentes qualificados. Podemos garantir a todos os visitantes de Hillsborough que o Sheffield Wednesday opera um estádio completamente seguro — destacou o comunicado.

Gabriel Lemes
Gabriel Lemes

Me formei em Jornalismo pela Univap em 2019 e sou redator da PL Brasil. Já escrevi para o Quinto Quarto, Minha Torcida, Futebol na Veia e Portal Famosos.