Anderson Hernanes de Carvalho nasceu em Recife, explodiu para o futebol em São Paulo, se tornou ídolo também em Roma e, hoje, é um habitante de Turim, no norte da Itália.
O cosmopolita ex-jogador de futebol, que anunciou sua aposentadoria dos gramados em maio do ano passado, escolheu morar na Europa por causa da família e negócios. Os filhos ficaram na cidade do último clube italiano que ele defendeu, a Juventus (entre 2015 e 2017), e lá também ele investiu numa vinícola e um restaurante, que são seus principais negócios do momento.
Diretamente do seu quintal em Turim, Hernanes atendeu a PL Brasil por videoconferência numa conversa que durou uma hora. O tema principal foi o futebol italiano, que brilhou na temporada com três finalistas europeus — incluindo a Inter de Milão, ex-clube de Hernanes — e ainda viu o Napoli quebrar o jejum de 30 anos. Tudo sob o ponto de vista não só de um residente da Itália, como um atleta que jogou no país entre 2010 e 2017.
Foram três anos e meio na Lazio, um ano e meio na Inter e mais outro ano e meio na Juve. Ganhou duas Copas da Itália, uma por laziales e outra por bianconeros, e um Scudetto pelo último time. É currículo o suficiente para ouvir Hernanes sobre a representante italiana na decisão da Champions League:
“É um time forte, mas nada demais. Foi algo inesperado (chegar na final)”, afirmou.
Hernanes também abordou outros assuntos na entrevista, que vão das memórias do início da carreira ao futuro como ex-jogador, como:
- O time com o “futebol perfeito”;
- O auge da sua carreira, que não foi na Itália;
- Os maiores destaques da Inter;
- Melhores companheiros e adversários da carreira;
Confira abaixo a entrevista exclusiva:
PL Brasil: Por que você escolheu morar na Itália depois de aposentado?
Hernanes: Vim morar aqui por causa dos meus filhos. Eles ficaram aqui quando fui para a China e para o Brasil, em 2017. Quando encerrei a carreira, eles estavam aqui. Também tenho negócios por aqui e decidi ficar em Turim. Temos a vinícola, um restaurante na vinícola e um restaurante em Turim. Na Itália eu estou bem em qualquer lugar. O pessoal é muito fanático de futebol, sempre me trataram muito bem.
A Itália chegou em três finais europeias na temporada: Fiorentina na Conference, Roma na Europa League e Inter na Champions. Qual o motivo desse sucesso?
Hernanes: Não teve nenhuma coisa especial, nenhuma reformulação, não teve nada demais. Mas fiquei contente, porque é uma movimentação muito proveitosa aqui para todo mundo e o futebol italiano precisava disso, principalmente depois de ter ficado de fora de duas Copas do Mundo. São times fortes, mas nada demais. Foi algo inesperado.
Você acha que a Inter de Milão consegue encarar o City?
Hernanes: Eu acho que o Manchester é muito favorito. Torço para a Inter, para meus amigos, ex-colegas de trabalho e funcionários, mas acho que o Manchester é muito mais favorito. A única coisa é que quando você vai para para um jogo que você é muito mais favorito, esse favoritismo exagerado pode ter o efeito rebote, achar que já ganhou. O futebol não perdoa; se você não entra concentrado e com a mentalidade justa, você é surpreendido. Então tem que ficar atento com esse detalhe emocional de um jogo dessa magnitude, que sempre comporta perigos. Tecnicamente, o Manchester tem muito mais chance de levar.
Finalizado
1
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Man City - Inter Milan
UEFA Liga dos Campeões - Atatürk Olympic Stadium
1° Turno
Então você ainda tem amigos na Inter?
Hernanes: Mantenho contato com algumas pessoas de lá. De jogadores de quando eu estava lá ainda tem Brozovic, Handanovic, D’Ambrosio, Dimarco. Com trabalhadores também, diretores, as portas estão sempre abertas quando preciso lá, então sempre mantenho contato.
É curioso que o campeão italiano não seja nenhum dos que chegou nas finais europeias. O que você achou da temporada do Napoli?
Hernanes: O Napoli teve um pouco de azar porque o Osimhen machucou na hora que não podia, o que atrapalhou o jogo contra o Milan (nas quartas da Champions). Apesar de ser uma equipe equilibrada, o Osimhen fazia a diferença, é o ponto de referência. Quando o Napoli estava com o time completo, eu preferia ver eles do que o Barcelona de Guardiola. Era um futebol técnico, mas vertical, sem muita firula e toque de bola. No Barcelona era muito tiki-taka e eu não apreciava tanto. O Napoli tem o futebol perfeito.
Mas também prefere o Napoli de Spaletti do que o City de Guardiola?
Hernanes: Aí eu não sei… o Barcelona era muito técnico, era muito cara de toque de bola e ficava exagerado. No Manchester eles são muito técnicos também, mas é diferente. O De Bruyne mesmo é um cara de achar o passe vertical na frente, ele dá velocidade ao time. O Rodri é alto no meio-campo, é uma composição física diferente. O Haaland ainda puxa essa flecha na frente e faz com que a equipe não jogue tanto de lado.
Saudades daquelas cobranças de falta com a perna esquerda, daqueles saltos mortais…
Parabéns pelos 3️⃣4️⃣ anos, @hernanes! Que você continue dando muitas alegrias à torcida do @SaoPauloFC! 🎂 #Profeta pic.twitter.com/gGXfOZHa2A
— Inter (@Inter_br) May 29, 2019
Identificação com a Lazio
Você explodiu num São Paulo do Muricy Ramalho que era muito elogiado pela defesa. Você acha que jogar nesse time te ajudou a se adaptar ao futebol italiano, que também tem no setor defensivo sua principal característica?
Hernanes: Não me ajudou porque quando eu cheguei na Lazio, eu não entendia muito bem a mentalidade dos caras. Eles pensavam assim: primeiro pensa em não tomar gol. Depois, se fizer, é lucro. E eu jogava mais defensivamente no São Paulo, na Lazio virei quase um segundo atacante. Um mezzapunta, como eles chamam. Foi o oposto do que eu aprendi.
Você teve uma média de quase um gol a cada três jogos na Lazio (41 gols em 156 jogos), a melhor da carreira. Foi por causa do posicionamento?
Hernanes: Sim, com certeza. Eu era um segundo atacante e fazia muitos gols por isso.
Seu auge como jogador de futebol foi na Lazio?
Hernanes: Não. Apesar de ter sido muito feliz na Lazio, meu auge foi no São Paulo em 2017 (fez 9 gols em 19 jogos e ajudou o clube a fugir do rebaixamento).
Mas, na Itália, a Lazio foi com quem você mais se identificou?
Hernanes: Foi onde eu tive um tempo maior, mais gols e um contato maior com a torcida. Esse envolvimento marcou mais. Ganhar a Copa da Itália no Olímpico, contra a Roma (em 2013), foi uma das emoções mais incríveis da minha carreira. Mas foram três experiências maravilhosas na Itália.
Você jogou com o Lionel Scaloni na Lazio. Dava para prever que ele seria um bom treinador?
Hernanes: Pensando agora, faz sentido ele ser um treinador. Ele já estava no final da trajetória, mas sempre comentava alguma coisa no grupo, palpitava, participava ativamente da parte estratégica do time. Quando assumiu a seleção argentina, pensei que fazia sentido… ele enchia o meu saco quando eu jogava mal, então já tinha o perfil de treinador.
Por que você saiu da Lazio?
Hernanes: Depois da vitória da Copa da Itália, percebi que poderia tentar de tudo mas não conseguiria jogar Champions League ou ser campeão da Itália com a Lazio. Hoje ainda está muito mais forte e muito mais estruturada. Na época, eu tinha ambição de ganhar outros troféus.
Passagens por Internazionale e Juventus
E a Inter era a melhor escolha na época.
Hernanes: Quando cheguei na Inter, tinha o objetivo de ficar 10 anos. Acabar minha carreira ali. Estava entre as 10 camisas mais fortes do mundo. Mas era um período de transição (com os donos chineses) e não foi como eu esperava.
O que mudou desde então?
Hernanes: Hoje eles têm uma continuidade no trabalho. Eu me lembro quando eu cheguei lá que o CT estava para reformar, hoje já tem uma estrutura de nível top. Se você não investe na estrutura e quer contratar grandes jogadores, acaba que se formando uma incoerência. A estrutura é de fundamental importância. Esse é o primeiro passo. Depois a matéria-prima, manutenção dos jogadores. Quando você consegue manter isso com o tempo, começa a ser competitivo. Vai para a Champions, briga por título, esse é o caminho. Eles fizeram isso.
As estrelas da Inter atual, como Lautaro Martinez e Barella, são frequentemente especulados na Premier League. Você já disse que acha que o futebol inglês está acima do italiano em nível de qualidade. Eles teriam condições de dar esse salto?
Hernanes: Eu vejo o Lautaro mais pronto. Eu gosto muito do Barella, acho ele muito bom jogador, o único ponto é que na Premier League você tem que ter mais estrutura física, massa muscular, e ele é um pouco leve. Tudo bem que você pode pensar no Bernardo Silva — se eu visse ele antes, também diria que não é tão forte, mas tem feito a diferença. Isso me dá uma dúvida. O Barella tem condições, mas o Lautaro está mais pronto.
Depois de só um ano e meio na Inter, você saiu para a Juventus onde, enfim, ganhou o Campeonato Italiano, como o fez consecutivamente entre 2011 e 2020. O que explica tamanha hegemonia da Juve?
Hernanes: A Juventus tinha uma estrutura muito boa, mas sobretudo tinha o poder de aquisição muito maior. Na época compraram o Higuaín, maior destaque do Napoli. Eles tinham hegemonia porque contratavam os melhores da própria. No triângulo que consolida a base do sucesso de um clube — matéria-prima, ambiente e inteligência na gestão –, a Juventus tinha tudo com os melhores jogadores. Na Itália foi a melhor estrutura que eu encontrei.
Você teve propostas para sair da Itália?
Hernanes: Depois que eu parei, comecei a pensar que teria sido legal jogar na Inglaterra. Mas quando eu jogava, não vislumbrava — tanto que queria ter ficado 10 anos na Inter. Também nunca tive propostas concretas.
Hernanes foi o camisa 11 da Juventus de Pogba e Bonucci – Foto: Twitter @juventusfc
Os melhores companheiros da carreira e o futuro longe dos gramados
Você pensa em se tornar treinador?
Hernanes: Por enquanto, o foco está nos meus negócios. Eu vou fazer um curso de treinador da Federação Italiana agora, no meio do ano, só para aprender um pouco mais. Mas se tudo for bem nos negócios, não quero ser treinador. Mas ninguém sabe o dia de amanhã. No futebol sempre tem alguma coisa para fazer. Também gostei muito de ser comentarista.
Qual foi o melhor jogador com quem você jogou?
Hernanes: O melhor foi o Neymar, mas o mais especial foi o Ronaldinho Gaúcho.
E o melhor adversário?
Hernanes: Na época que eu jogava muito de volante tinha o Valdívia, do Palmeiras. Era muito liso, habilidoso, eu ficava muito pensativo quando ia jogar contra ele.
Em relação aos treinadores, com quem você se deu melhor?
Hernanes: O que tirou o melhor de mim foi o Dorival Júnior. E jogando como um meia mais avançado, como foi na Lazio também.
Faltou algo na sua carreira?
Hernanes: Não faltou nada… claro que queria ter ganhado mais coisas, mas quando você amadurece, você entende que o grande título que pode carregar é que você deu tudo em busca do queria e acreditava. Ganhar e ter sucesso é muito complexo, e ninguém pode te garantir isso. O que você pode garantir é dedicar sua alma e sua energia vital, e isso eu fiz. Temos que sonhar grande: mire o sol e, se você errar, ainda vai estar nas estrelas. É o que aconteceu comigo. Mirei o mais alto possível, sonhei com os maiores sonhos. Alguns eu não consegui realizar, mas ainda fiquei entre as estrelas.