Como Bruno Guimarães virou exemplo da evolução de uma profissão cada vez mais importante no futebol

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Em um típico jogo contra o Arsenal na Premier League, Bruno Guimarães enfrenta o meia Martin Odegaard diversas vezes em campo. Curiosamente, as partidas diante do Newcastle tendem a ser as mais difíceis para o armador dos Gunners.

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Bruno sabe como passar pelo norueguês com mais facilidade que outros jogadores. Também é craque em neutralizar um movimento específico de Odegaard que só o torcedor mais atento conhece bem.

Essa jogada pode passar batida por um olhar menos treinado. E é por isso que o investimento do brasileiro em consultoria tática especializada tem dado frutos e refletido na sua melhora em campo.

Bruno não é o único personagem dessa tendência. Hoje, o jogador moderno tem muito mais acesso à informação sobre o jogo de futebol. Suas demandas, assim como sua mentalidade, mudaram. E os brasileiros da Premier League são exemplo de como a consultoria tática pode mudar carreiras.

O que são empresas de consultoria tática?

Atualmente, um atleta de alto nível recebe muita informação do próprio clube — seja de treinador, auxiliar, preparador ou analista. Mesmo sendo essencial, esse conteúdo só leva o jogador até certo ponto na sua preparação.

A empresa de consultoria tática personalizada entra para dar prosseguimento ao trabalho feito no clube. São analistas individuais, sem ligação com nenhum time específico, cujo trabalho é elevar o conhecimento do jogo para seus clientes, os atletas.

O clube explica como a equipe adversária joga: como defende, como ataca, quais suas vulnerabilidades e o que têm de mais forte no seu jogo. O analista, em uma sessão de consultoria tática, explica ao atleta, além de muitos outros detalhes, como ele individualmente deve encarar aquele jogo com base no seu time, no time adversário e nos seus enfrentamentos durante os 90 minutos.

Todos os jogadores devem ter esse serviço?

Para Rafael Marques, fundador da consultoria Performa Sports, uma das referências na área, existe um perfil específico de jogador que faz esse trabalho. Bruno Guimarães, um de seus primeiros clientes, é um exemplo de destaque da principal liga de futebol do mundo.

— A gente chama o atleta e mostramos os pontos fortes dele e os que ele tem a evoluir, já no primeiro encontro. É uma espécie de degustação do que é o nosso serviço. Quando o atleta vai para a videochamada, ele já sabe do que se trata, ele está aberto. E o cara que não quer ser criticado, nem vai para o encontro. Já existe um perfil de quem está disposto a melhorar.

O analista, que transformou um incômodo pessoal em respostas para atletas de alto nível, revelou em entrevista à PL Brasil como a Performa Sports trabalha com jogadores da Premier League e seleção brasileira para elevar seu desempenho e conhecimento de jogo.

Além disso, a empresa também auxilia atletas em decisões sobre transferências com análises sobre os times interessados e dicas sobre uma possível futura liga do atleta.

— São temas delicados, porque nosso viés é esportivo, não financeiro. A gente sabe que uma transferência tem vários interesses diferentes, e o financeiro talvez seja o principal deles — explica o fundador da Performa.

Ele reforça que os conselhos dados aos jogadores que fazem consultoria nunca têm relação com dinheiro. A ideia é ajudá-los no que pode ser o melhor encaixe tático, de filosofia de treinador ou estilo de liga.

O analista usou um exemplo de um atleta que estava em negociação no dia da entrevista. Ele perguntou: “Rafa, e aí, qual? Eu tenho esses clubes aqui na mesa, qual você acha melhor?”.

— Quando ele me pergunta isso, ele não está perguntando qual é o melhor salário. Está perguntando qual o melhor contexto esportivo para ele. Ou seja, ‘quem é esse treinador, ou como você imagina que ele possa me utilizar, ou o perfil da liga, se o meu jeito de jogar se adapta nessa liga’. O atleta tem essa confiança e a gente entende como as ligas funcionam — reforça.

A consolidação e a atração de grandes jogadores

A Performa Sports em seu modelo atual conta com mais de 20 funcionários e analistas específicos para diferentes tipos de reuniões e jogadores. Na última temporada, foram cinco de seus clientes disputando a Premier League:

Além deles, Yan Couto (emprestado do Manchester City ao Borussia Dortmund), Raphinha (Barcelona) e Igor Paixão (Feyenoord) foram outros destaques do último calendário europeu que tiveram contatos semanais com a equipe de Rafael.

Bruno Guimarães: o caso de sucesso

Bruno fechou acordo com a empresa quando ainda estava no Lyon, e a ligação profissional virou uma relação de amizade. Segundo Rafael, o volante do Newcastle mostrou mente aberta desde cedo e ouve com muito mais naturalidade.

— O Bruno é muito mais conhecedor do próprio jogo, aumenta muito o nível declarativo do jogo em si: do que ele faz bem e do que não faz. Então ele já chega na reunião conosco sabendo os pontos que a gente vai pontuar e fala: ‘Lembrei de vocês no jogo’.

O analista lembrou de uma situação específica na última edição da Copa América: Bruno teve muita dificuldade de jogar de costas para a marcação no jogo contra a Colômbia. Quando a videochamada foi aberta, ele já começou e deu suas justificativas, reforçando como é muito mais conhecedor do que ele precisa melhorar.

— E isso dita a carreira dele: ele sai do Brasil como um camisa 8, quase um camisa 10, pisando na área, fazendo gol. E hoje ele é um 5, volante mesmo, capacidade de desarme absurda, joga atrás de dois ‘oitos’, salta pressão muito bem. E jogar de 8 e de 5 são coisas completamente diferentes — reforça.

“Acho que a gente ajudou muito o Bruno nesse processo. Hoje, se ele quiser parar e se tornar treinador, ele tem um nível de conhecimento suficiente para isso”.

Ajudar jogadores não era recomendado

Se hoje Rafael trabalha em meio ao crescimento da consultoria tática no futebol de alto nível, sua experiência inicial de carreira foi marcada por uma grande frustração no aconselhamento aos atletas.

De uma tentativa de ser jogador virou auxiliar em uma comissão técnica ainda jovem, mas logo percebeu que existia uma cultura no clube em que trabalhava que rivalizava com o crescimento pessoal. O processo de passar feedbacks aos atletas e a consequência dessa ação gerava problemas a todos.

Havia a conclusão de que, se o jogador melhorasse após os conselhos, a comissão técnica teria a obrigação de dar oportunidade para ele entrar em campo. O clima ruim resultava em outros comportamentos equivocados.

Por isso, os membros da comissão técnica se sentiam desencorajados a dar feedback de maneira específica e o medo de gerar esse compromisso.

Guardiola Ederson Savinho Manchester City
Guardiola fala com Ederson e Savinho (Foto: Divulgação/Manchester City)

— Para mim, não fazia sentido o atleta ‘quebrando a bola’ e a gente não podendo dar feedback. E aí, quando saí desse clube, contatei os atletas e me ofereci para montar relatórios deles, porque eles também pediam, e comecei a cobrar — explicou o analista.

Na época, cada relatório variava entre R$ 150 e R$ 200 e consistia em editar alguns vídeos de cada atleta, mostrar estatísticas e, às vezes, criar uma videochamada para explicar.

Conforme o tempo passou, Rafael aperfeiçoou seu serviço e, consequentemente, passou a cobrar mais caro. Através de uma pequena cartela de clientes, conseguiu fazer uma renda que dobrava seu salário como auxiliar no seu antigo e modesto clube do Recife.

O jogador do Brasileirão e o da Premier League recebem conteúdos diferentes?

Nas reuniões, os analistas falam com os jogadores majoritariamente sobre enfrentamentos individuais — uma vez que a análise da equipe adversária eles já têm no clube, em conversas com o treinador.

Rafael conta um exemplo que envolve Bruno Guimarães. No caso do volante, ele verá, em vídeo e com o auxílio do analista, por exemplo:

  • Situações em que o meia adversário tem mais vulnerabilidades com bola;
  • Para que lado induzir o adversário em relação à perna dominante;
  • Situações de destaque do adversário e as formas de inibi-las.
Bruno Guimarães em Newcastle e Brighton
Bruno Guimarães pelo Newcastle (Foto: Icon Sport)

E foi assim, com essas orientações específicas e detalhadas, que Bruno conseguiu parar um dos melhores meias do futebol mundial. Com uma análise aprofundada, Rafael mostrou ao jogador do Newcastle que Odegaard tem um movimento muito característico: muitas vezes, ele abre o corpo para a lateral e “quebra o pé” para dentro, com um passe que surpreende todo o sistema defensivo adversário.

É essa dica específica que pode fazer a diferença no embate do brasileiro contra um dos melhores meias da geração.

— Odegaard recebe a bola, vira o corpo, parece que vai continuar a circular a bola e encontra o passe por dentro. E se você ver os jogos contra o Newcastle, ele teve muita dificuldade em fazer isso quando o enfrentamento dele era o Bruno, porque ele foi preparado para esse movimento. Então a gente traz esse tipo de detalhe que não dá para ser levado em uma análise do clube para o grupo todo.

E só mostrar não é o bastante. O atleta pode saber que o adversário faz aquele movimento, mas ele não sabe quando ele faz e nem o porquê. Quando ele entende isso, fica muito mais fácil para ele ler a situação — e o motivo da felicidade de Rafael é quando seus clientes falam: “lembrei de vocês no jogo”.

Linguagem boleira ou acadêmica: tem diferença?

As consultorias táticas contam com diversos termos “acadêmicos”. E essa linguagem diferente tem gerado grande debate nos últimos anos, mas até mesmo os jogadores de mais alto nível a usam.

Há um número muito maior de estudiosos do esporte, profissionais capacitados nos clubes e na imprensa e fãs que têm mais conhecimento. E isso é levado para dentro de campo.

Raphael Veiga em campo pelo Palmeiras em 2023 - Foto: Icon Sports
Raphael Veiga, do Palmeiras, é um dos clientes da empresa no Brasil (Foto: Icon Sports)

Os jogadores falam com naturalidade, é mais fácil de entender em seus contextos e a conversa com os analistas flui. Para Rafael, isso é reflexo de todo um sistema mais bem informado.

— O atleta jovem no Brasil hoje já encontra uma comissão técnica na base que tem um nível de conhecimento sobre o jogo muito mais alto. Ele vai encontrar treinador de sub-13, sub-17, auxiliares, analistas de desempenho, que estudaram, que têm as referências bibliográficas e que passaram a transmitir esse conhecimento dos atletas — indica.

O fundador da Performa explica que a empresa tem mecanismos didáticos para fazer com que o atleta compreenda os termos e os conceitos. O jogador na base já vai ouvir “primeira fase de construção”, “entrada no último terço”, “colocação dos apoios” no dia a dia com os treinadores dele, então não vai ser nenhum choque ao ouvir isso na consultoria.

Adaptar a linguagem não é problema, pelo contrário. Caso precise facilitar o entendimento do atleta, usando outras palavras e expressões, o analista usa das ferramentas necessárias para isso.

Em vez de o profissional dizer que “a bola saiu na sua equipe em primeira fase de construção, e o time avança com uma bola direta”…

… O analista diria ao jogador que “quando seu time sai para o jogo, ele quebra essa bola no atacante”.

A linguagem “boleira”, no entanto, pode ser vaga e ter alguns conceitos com significado perdido se simplificados demais, por isso a ideia de associação. E o analista afirma que o jovem que sobe da base hoje valoriza muito mais o conhecimento teórico e declarativo do que o atleta de antigamente.

Quanto um jogador paga pela consultoria e como são as ‘aulas’?

Os planos oferecidos aos atletas são variados e atendem a diferentes desejos, explica o fundador da Performa Sports. “É uma assinatura mensal e os atletas podem escolher se eles querem fazer apenas a reunião pré-jogo, apenas a pós-jogo ou as duas, e, dentro disso, eles pagam um valor compatível com o nível competitivo que eles jogam”, conta.

A tabela de preços tem uma margem de negociação, mas há um padrão:

  • O atleta de nível competitivo mais alto paga, atualmente, entre 1,5 mil a 2 mil euros por mês (cerca de R$ 9,2 mil a R$ 12,3 mil). Cobra-se em euro porque a maior parte dos atletas que a empresa atende está na Europa.
  • Os jogadores de nível competitivo mais baixo, como os que atuam no Brasil, pagam em torno de R$ 2,5 mil por mês.

Essa diferenciação acontece porque, na opinião da empresa, o atleta de nível competitivo mais alto demanda mais cuidado. “Por exemplo, nós temos jogador da seleção brasileira, então se a gente errar com esse cara, a consequência é muito maior”.

Matheus Cunha, do Wolverhampton, é cliente de consultoria tática individual (Foto: Icon Sport)
Guilherme Ramos
Guilherme Ramos

Jornalista pela UNESP. Escrevi um livro sobre tática no futebol e sou repórter da PL Brasil. Já passei por Total Football Analysis, Esporte News Mundo, Jumper Brasil e TechTudo.

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