A filha ou a Seleção? Como dispensa de Gabriel Magalhães reforça tabu que impacta o futebol

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O zagueiro Gabriel Magalhães foi convocado para a seleção brasileira pela primeira vez em novembro de 2021. Aos 24 anos, jogando na Europa há quatro e sendo titular do Arsenal, entrou no radar de Tite para ocupar uma das quatro vagas na zaga do time canarinho que visava a disputa da Copa do Mundo do ano seguinte, no Catar.

Ele voltou a ser convocado em janeiro de 2022, para mais partidas das Eliminatórias, e em março, para os jogos dos dias 24, contra o Chile, e 29, contra a Bolívia, duas vitórias por 4 a 0 — a seleção já estava garantida no Mundial desde novembro.

Naquele mês, porém, sua companheira Gabrielle estava em fase final de gravidez. Gabriel Magalhães, então, pediu dispensa da seleção brasileira com um objetivo: acompanhar o nascimento da filha. As contrações de Gabi começaram às 17h do dia 30; às 21h, os futuros pais foram ao hospital. Maya nasceu naquela noite sob os olhares de um pai orgulhoso, que descreveu o acontecimento como “uma experiência única”.

Na visão do ex-coordenador da seleção brasileira, Juninho Paulista, Gabriel Magalhães fez uma escolha. E a decisão de deixar a seleção brasileira para ver o nascimento da filha pode ter custado o sonho de qualquer jogador: disputar uma Copa do Mundo.

— São escolhas. Eu passei por isso. Nasceu um filho meu, fiquei esperando na Inglaterra e no dia seguinte vim ao Brasil porque tinha machucado o meu joelho e precisava me recuperar o mais rápido possível. A minha esposa ficou lá 40 dias sozinha, com a ajuda de babá. Isso prejudicou? Na hora de pesar você vai colocar tudo na balança e é inevitável, você vai colocar tudo isso na balança. Vem o outro, joga e aí acontece de perder um pouco espaço — disse Juninho, ao ‘ge’.

Gabriel Magalhães esteve presente na convocação seguinte, para amistosos contra Coreia do Sul e Japão, no começo de junho, mas não esteve na convocação seguinte, em setembro, para os jogos contra Gana e Tunísia. Também não esteve na lista final da Copa do Mundo. Bremer, que havia sido chamado apenas uma vez, ganhou a quarta vaga e fez companhia aos quase incontestáveis Militão, Marquinhos e Thiago Silva no Mundial.

Gabriel Magalhães foi contratado pelo Arsenal em setembro de 2020 (Foto: Iconsport)

Acompanhar o parto de um filho é escolha ou direito?

A fala de Juninho Paulista sobre a “escolha” feita por Gabriel Magalhães gerou debates nas redes sociais. O zagueiro fez de fato uma escolha ou apenas exerceu um direito? No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece que um pai tem direito a cinco dias de licença-paternidade – o período se inicia no dia útil seguinte ao nascimento da criança. Há uma lei de 2016 que estabelece a possibilidade de mais 15 dias de afastamento, que totalizariam 20. 

Não há uma disposição prévia ao nascimento, mas o Ministério da Saúde incentiva os pais a participarem ativamente da gravidez. As Unidades Básicas de Saúde podem oferecer um pré-natal do parceiro, por exemplo, com exames de rotina para os futuros pais.

 A licença-maternidade, por sua vez, tem duração de 120 dias, podendo a mãe escolher se quer tirar um tempo antes do parto ou não. Em casos de internações da mãe ou do recém-nascido, o STJ define que a licença passa a ser contada assim que ambos receberem alta médica.

Na Inglaterra, onde Gabriel Magalhães atua, a licença-paternidade pode chegar a duas semanas, mas também é válida após o nascimento.

— Quando se trata de família, é um momento delicado. Eu era pai de primeira viagem, estava sozinho com a minha esposa em Londres, era complicado deixá-la sozinha. Ela disse que precisava de mim e era um momento especial para mim. Entrei em contato com o pessoal (da seleção), eles entenderam, aí você vê que é uma família, fiquei feliz com a resposta que eles me deram. Sou grato ao professor e ao Juninho — disse o zagueiro, à época, sobre o pedido de dispensa e a resposta da comissão técnica. 

Fifa regulamenta licença maternidade para jogadoras, mas ignora os pais

A Fifa, no fim de 2020, anunciou uma proteção aos direitos das mulheres à maternidade: elas devem ter uma licença de pelo menos 14 semanas e não podem ser demitidas no período.

O Lyon perdeu um processo no começo deste mês por desrespeitar esse direito. Entre os homens no futebol, porém, a licença ainda é um tabu, sem nenhuma regulamentação clara.

Bebeto perdeu o nascimento do filho na Copa de 1994

Bebeto criou uma comemoração clássica em 1994, repetida ao longo dos anos seguintes por diversos jogadores. No dia 9 de julho daquele ano, nas quartas de final da Copa do Mundo, o ex-camisa 7 fez um dos gols da vitória por 3 a 2 sobre a Holanda. Depois de balançar as redes, correu e, ao lado de Mazinho e Romário, embalou um neném imaginário.

O gesto, claro, não veio do nada: Mattheus, hoje com 29 anos e seguindo os passos do pai no futebol, nascera havia dois dias. Bebeto não acompanhou a fase final da gravidez nem o parto – ele estava focado na busca do tetracampeonato mundial, o que foi consolidado oito dias depois, na final contra a Itália. 

— Foi um momento difícil ficar longe da família, ainda mais com meu filho nascendo. Foi o único que eu não vi nascer; os outros dois, coloquei logo no meu braço. É tão bom estar próximo. Mas tinha de valer a pena. Meu foco foi que eu tinha que ganhar de qualquer jeito, não podia deixar de ganhar. Todo sacrifício tinha que valer a pena — disse Bebeto, à PL Brasil.

— Se tivesse que fazer tudo de novo para que o Brasil conquistasse novamente a Copa do Mundo, eu faria. Ficar longe da família, ainda mais com minha esposa grávida, foi muito difícil para a gente. Mas valeu a pena. Foi muito legal — completou.

Comemoração ’embala neném’ marcou uma geração e se tornou histórica (Foto: Iconsport)

Bebeto entendeu a decisão de Gabriel Magalhães. “Nascimento de um filho é uma coisa muito forte”, justificou. Mas, mesmo na resposta compreensiva, houve também uma citação ao lado profissional.

— A família é a base de tudo. Se não fosse interferir no trabalho dele… Pô, pelo amor de Deus, ver o nascimento de um filho é a coisa mais importante da vida da gente — pontuou.

Futebol é um mundo à parte?

“Não é apenas futebol”, diz um dos chavões do esporte. O futebol permeia questões sociais, mas, em muitas delas, gera debates sobre ser praticamente um mundo à parte, em que crimes podem ser relativizados e punições podem ser amenizadas. Jogadores são submetidos às rotinas de treinamentos, concentrações e jogos, com as cobranças concentradas ao que acontece dentro das quatro linhas.

— Essa rotina revela-se mais tolerante com compromissos comerciais, como, por exemplo, gravação de peças publicitárias e lançamento de produtos do que com obrigações familiares, como o nascimento de um filho ou com atividades públicas de caráter político — analisou José Paulo Florenzano, doutor em Ciências Sociais, à PL Brasil.

A necessidade de acompanhar o parto de um filho já foi assunto de discussões no esporte, de modo geral. Na Copa do Mundo de 2018, Gareth Southgate, técnico da seleção inglesa, liberou o meia Fabian Dalph. O jogador foi à Inglaterra assistir ao nascimento do filho ainda durante o Mundial.

— Algumas coisas são mais importantes do que futebol. Sua mulher está prestes a dar à luz. Família é mais importante — disse o treinador, à época.

— Alguns dizem que você só tem uma chance de ser campeão da Copa do Mundo, mas seu filho só nasce um dia também. Acho que a geração do meu pai pode ver a coisa de forma diferente, mas eu vejo dessa maneira — completou.

Há outros casos de treinadores que não veem a paternidade como algo que possa paralisar a carreira de um atleta – sequer por um dia. No fim da década passada, o zagueiro Gareth McAuley, que atuava pelo Ipswich, da Inglaterra, assistiu ao nascimento do filho. Ele foi treinar direto do hospital, segundo contou ao The Athletic. O treinador Roy Keane lhe fez uma ligação curta: “Está tudo bem? Parabéns, volte para casa”.

— Você está constantemente pensando no próximo jogo. Isso vai soar duro, mas a criança nasce e você pensa: ‘O que vem a seguir?’. Não consigo imaginar muitos jogadores que vão dizer que ‘preciso de duas semanas de folga porque acabei de ter um bebê’ — disse McAuley.

As ausências em momentos de paternidade nem sempre são associadas a uma insensibilidade. Existe, também, um medo de demonstrar uma possível falta de foco.

O zagueiro Curtis Davies, também ao The Athletic, falou sobre o assunto. Quando a filha nasceu, o técnico Steve Walford o ligou, enquanto ele estava no hospital, para dizer que outro zagueiro havia lesionado. “Precisamos de você”, afirmou.

O jogador ficou por mais algum tempo no hospital e foi direto para o hotel do time. Ele admitiu nunca ter pensado em uma folga prolongada. “Por que não? Porque você não quer perder seu lugar na equipe”, justificou.

— Não se trata de uma peculiaridade do futebol, mas de uma exigência imposta de modo geral ao atleta de alto rendimento, embora, sem dúvida, devido aos interesses que movimenta e às paixões que mobiliza, o futebol seja um caso exemplar de uma atividade organizada quase com o um mundo à parte — avaliou Florenzano.

Políticas empresariais pressionam legislação e podem servir de exemplo para o futebol

Fora do universo da bola, políticas internas para dar maior robustez às licenças-paternidade são adotadas por grandes empresas, como Twitter (20 semanas de licença), Merck Brasil (60 dias), Diageo (26 semanas) e Grupo Boticário (120 dias).

A maior proximidade entre benefícios para mães e pais visam equilibrar a competição entre gêneros dentro das corporações – uma vez que a maternidade, sob ponto de vista social, é um dos fatores para menores crescimento profissional e salários para mulheres. O assunto é um dos temas do livro “Gênero e desigualdades – limites da democracia no Brasil” (2018), da autora Flávia Brioli.

Em entrevista à Folha de São Paulo, publicada em agosto de 2022, Juliana Abreu, diretora-executiva e sócia do BCG (Boston Consultin Group), argumenta que a diferenciação que a legislação brasileira faz entre as licenças perpetua a noção de que a responsabilidade pelo cuidado é das mães.

A empresária avalia que, com o avançar do tempo, “as licenças prolongadas passarão a ter cada vez mais peso na retenção de funcionários e na redução da rotatividade”.

No BCG, homens e mulheres têm direito aos mesmos seis meses de licença.

Daniel Servidio
Daniel Servidio