Fábio Aurélio: ‘Liverpool x Everton é vida ou morte. Contra o United, não’

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Formado no São Paulo, ele foi cedo para a Europa. Pelo Valencia, se sagrou bicampeão espanhol e conquistou também a Liga Europa. Após seis temporadas na Espanha, Fábio Aurélio foi então contratado pelo Liverpool, por indicação de Rafa Benítez.

Pelos Reds, foi campeão da Supercopa da Inglaterra e da Copa da Liga. Era titular quando disponível, visto que sofreu muito com lesões. De qualquer forma, sua trajetória lhe garantiu que fosse adorado pela torcida e marcasse seu nome na história no clube. Fábio Aurélio deixou o Liverpool com 134 partidas, 16 assistências e quatro gols, curiosamente nenhum em Anfield.

Apesar de uma década de destaque na Europa, não teve oportunidades na seleção nacional principal. De volta ao Brasil, encerrou a carreira no Grêmio, aos 34 anos. Hoje, ainda ligado ao esporte, mas fora de campo, Fábio Aurélio é sócio-proprietário da NG Soccer, auxiliando a carreira de revelações do futebol brasileiro.

PL Brasil entrevista Fábio Aurélio, ex-Liverpool

Liverpool Fábio Aurélio
PAUL ELLIS/AFP via Getty Images

Em 2006, você se tornou o primeiro brasileiro da história do Liverpool. De alguma forma isso impactou em sua chegada na Inglaterra? 

Fábio Aurélio: Não que tenha impactado de cara, mesmo porque só depois de ter assinado com o Liverpool e já estar lá, que eu fui ter essa consciência, de que eu era o primeiro brasileiro a jogar pelo clube.

Não impactou, mas lógico que me fez pensar. E não que tenha sido um peso, mas é como uma responsabilidade, primeiro de aproveitar a oportunidade particular e depois de ser marcado como o brasileiro que abriu as portas a outros, principalmente dentro do clube.

Sendo o primeiro no Liverpool era uma responsabilidade nesse sentido, de fazer as coisas bem, não só dentro, mas também fora de campo, para que talvez a imagem que pudessem ter de brasileiros mudasse com minha chegada e mais pudessem chegar ao clube depois.

E felizmente aconteceu. Hoje a gente conta com outros três lá (Alisson, Fabinho e Roberto Firmino), de muito sucesso e muito respeitados dentro do clube. Então fico feliz com o resultado, que minha passagem por lá, não se sei direta ou indiretamente, influenciou nisso.

No período em que esteve em Liverpool, o que mais te impressionou, dentro e fora de campo?

Fábio Aurélio Liverpool
Petrut Calinescu/Getty Images

Fábio Aurélio: Obviamente, a estrutura que o Liverpool tem é impressionante, mas não foi uma coisa que impressionou porque eu já esperava isso, sendo o clube da grandeza que é. Foi mais a tranquilidade em trabalhar, quase não ter contato com a imprensa e com a torcida durante os treinamentos.

Trazendo para o Brasil, é como se todos os treinos fossem feitos a portas fechadas, então concentração e tranquilidade máximas em poder estar desempenhando dentro de campo. O clube oferece todas as condições, as melhores possíveis, para que isso seja feito.

Dentro de campo obviamente impressiona muito, e não teria como ser diferente, quando você está no túnel para entrar no gramado e já começa a ouvir o You’ll never walk alone”. É uma das coisas mais marcantes em relação ao Liverpool.

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E fora de campo acredito que o respeito. Até fui muito questionado, no bom sentido, quando eu estava saindo do Valencia. “Você vai sair dessa tranquilidade aqui na cidade, com relação a gastronomia, clima, que é muito mais parecido com o que a gente tem no Brasil, para ir à Inglaterra, de chuva e frio?” Não sei se isso me preparou psicologicamente, mas eu cheguei lá e me surpreendi muito positivamente nesse sentido.

As pessoas, o respeito, o contato que eu tinha, não só dentro do clube, mas principalmente fora, fazendo as coisas do cotidiano (impressionaram bem). Mesmo apesar de, ao chegar lá em Liverpool, não ter, naquele momento, muitas opções.

Primeiro também pelo meu estilo de vida, que é mais familiar, e lá se acaba passando muito tempo com a família. Depois, em 2008, acabou sendo a capital da cultura, aí a cidade deu um boom importante com relação a atrativos, restaurantes, o Echo Arena para shows e espetáculos.

Historicamente, o Everton é o grande adversário do Liverpool. Por outro lado, o confronto com o Manchester United se tornou o maior dérbi do futebol inglês. Como você compara esses dois clássicos?

Fábio Aurélio Liverpool
PAUL ELLIS/AFP via Getty Images

Fábio Aurélio: É uma rivalidade impressionante o dérbi local contra o Everton, vive-se muito e muito intensamente. Lembro dos primeiros, de ver no Jamie Carragher e no Steven Gerrard, jogadores que cresceram ali no Liverpool, como eles mudavam a fisionomia, a ansiedade e a agitação antes desses jogos. Então a partir daí já se conseguia sentir como era muito importante para eles, muito diferente de qualquer outro jogo.

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Contra o Manchester (United), não se via isso claramente neles. Era uma rivalidade diferente. Com o Everton, mais local, vida ou morte. E com o Manchester United, mais um clássico mundial.

O maior rival, mundialmente falando, seria o United, no âmbito de grandeza de clube, de história e de competição entre títulos ganhos. Então seriam duas rivalidades bem diferentes.

Mas, especificamente falando pela minha experiência, a ênfase maior de um jogo em si seria em cima do Everton. É impressionante a atmosfera, o que se vive nesse dérbi de rivalidade. Por mais que eu tenha vivido algumas rivalidades, igual aquela eu não vi, nem no Brasil nem na Espanha. É realmente muito intenso e muito competitivo, os times não aceitam de maneira alguma um perder para o outro.

Na temporada 2008/2009, você marcou dois gols icônicos de falta: uma linda cobrança em Old Trafford e outra improvável surpreendendo Petr Cech. Como foi cada um desses momentos?

Fábio Aurélio: Essa temporada 2008/2009 foi das minhas melhores no Liverpool, com relação a jogos e até ao próprio desempenho do time, e esses dois (momentos) são memoráveis. Tanto que a torcida fala até hoje, principalmente o do Manchester United.

Foi em uma semana muito importante para nós, porque coincidiu com jogo contra o Real Madrid e um momento em que o Rafa (Benítez) estava meio que sendo questionado, e aí vieram esses jogos grandes. Então tivemos uma sequência muito boa, eliminando o Madrid na Champions, ganhando no Bernabéu por 1 a 0 e em casa por 4 a 0.

E fomos jogar com o Manchester United num campo sempre difícil, fazia tempo que o Liverpool não ganhava em Old Trafford. E naquela circunstância do jogo, saímos perdendo, Torres empatou e Gerrard virou, estava naquele 2 a 1 meio que amarrado.

Então, coincidiu que, no momento que o Vidic foi expulso, eu consegui materializar a falta em gol e se abria ali um momento chave do jogo. Fizemos 3 a 1, com um homem a mais, deu uma tranquilidade para encarar aquele final.

E por isso foi muito marcante, vitória de 4 a 1, diante de um grande adversário, de rivalidade mundial, e ao poder participar de um momento como aquele você acaba ficando marcado. E lógico que marcar um gol de falta no van der Sar…não era uma falta tão próxima ao gol, então foi para mim muito marcante.

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Falando do gol contra o Chelsea em Stamford Bridge, daquele jogo se fala até hoje, aquele 4 a 4. Foi uma jogada que o preparador de goleiros já tinha conversado comigo durante a semana, dessas faltas laterais. Era para prestar atenção no Cech. Ele normalmente colocava o homem da barreira tampando o cruzamento, e não protegendo o gol, assim deixando o canto aberto, para já se antecipar ao cruzamento.

Então o treinador de goleiros me avisou: “Se sair faltas assim, você presta atenção porque talvez tenha oportunidade de bater direto”. Lógico que estava numa distância difícil de se tentar o chute no gol, pela posição, mas a hora que vi o Essien muito fora na barreira, aquele canto todo aberto, o Cech já esperando o cruzamento, eu falei: “Vai ter que ser agora, vou arriscar”.

E felizmente acabou que o chute saiu perfeito. Acredito que qualquer outra situação que aquele chute fosse, que não houvesse até aquela quicada antes de entrar no gol ou não entrasse naquela altura, talvez o Cech poderia ter conseguido alcançar.

Acredito que a mão de Deus colocou ela ali perfeitamente no cantinho e foi exatamente o que o treinador de goleiros tinha me passado. Tanto que dá para perceber na comemoração desse gol que eu aponto para o banco de reservas, como que dando créditos a ele.

Como era ser companheiro de Steven Gerrard? Existia algum tipo de revezamento nas bolas paradas?

Gerrard Liverpool Fábio Aurélio
Clive Brunskill/Getty Images

Fábio Aurélio: Falar do Gerrard é muito gratificante, na verdade, uma honra ter tido a oportunidade de dividir vestiário, jogos, treinos, viver esse dia a dia. Eu o conhecia, estando no Valencia, de acompanhar alguns jogos e de admirá-lo como jogador, mas me admirou ainda mais quando cheguei no clube, de pode ver o dia a dia. Você via que ele era muito mais do que aquilo que achava, que as pessoas viam durante dos jogos.

Ele é um cara muito tranquilo, muito na dele, não é de ficar falando muito, mas é um líder por atitude, então você vê treinando, se dedicando, e não tem como não fazer a mesma coisa. Ele acaba te puxando nesse sentido, pela atitude. E sem contar as condições técnicas e físicas que ele tinha que pude acompanhar de chute a gol, de intensidade nos treinos.

Então ele era sempre o que puxava fila, que dava o exemplo para a todos nós. Se o capitão estava fazendo aquilo lá, o mínimo que você poderia fazer era a mesma coisa. É um cara que admiro muito e, para mim, é um dos que tinha que ter tido oportunidade como melhor jogador do mundo.

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Com relação às faltas, muitas coisas a gente decidia ali na hora, nessa do gol do Manchester United foi o que aconteceu. Eu estava com ele na bola e falei “Deixa eu pegar essa, deixa eu pegar essa” e ele não se impôs. Acredito que o van der Sar esperou que ele fosse fazer a cobrança, tanto que nem conseguiu se atirar na bola.

Você esteve nas campanhas vice-campeãs do Liverpool da Champions League 2006/2007 e da Premier League 2008/2009. Desses títulos que escaparam, qual foi o mais frustrante?

Fábio Aurélio: Eu destacaria a Champions. Primeiro que na minha primeira temporada no Valencia, com seis meses, a gente já estava numa final de Champions e perdeu para o Bayern de Munique, nos pênaltis. E essa minha primeira temporada no Liverpool, que foi na sequência de terem conquistado aquela virada história contra o Milan, conseguimos novamente chegar na final.

Uma pena que eu me machuquei, nas quartas de final (contra o PSV) eu rompi o tendão de Aquiles, então não pude estar na semifinal nem na final. E foi frustrante por isso, porque foram duas finais de Champions que eu poderia ter tido uma medalha de campeão e isso não aconteceu.

Uma pena também o Campeonato Inglês, mas não frustrou tanto, porque, apesar de a gente ter feito uma campanha muito boa, chegou num momento da temporada que o time não estava tão bem.

Depois pegou jogos decisivos que deu uma engrenada e terminou a temporada em ascensão, mas perseguindo o Manchester United, que sempre esteve à frente. No final, a gente chegou a ficar dois pontos deles, mas não foi uma coisa tão próxima como estivemos do título de Champions.

Tomara que essa situação toda agora de pandemia não influencie nessa conquista, que esse título é deles e não tem quem tire, dadas as circunstâncias do que conquistaram durante a temporada.

Dentre os laterais esquerdos que passaram pelo Liverpool desde a saída de John Arn Riise até a ascensão de Andy Robertson, você foi o que mais brilhou pelo clube. Como você se compara aos outros dois?

Fábio Aurélio: Fico muito feliz em ser considerado um dos grandes laterais que o Liverpool teve, comparado com John Arn Riise, que quando cheguei já estava lá há vários anos, muito reconhecido pelo que fez pelo clube. E especialmente no caso do Andy Robertson, que é o dono dessa lateral hoje, vem fazendo um trabalho excepcional.

Enalteço muito o trabalho do Robertson, que é um lateral bastante completo, rápido, forte, defensivamente cumpre com perfeição e chega com muita facilidade na zona de ataque com cruzamentos e assistências.

Mas humildemente fico muito feliz de ter feito parte da história desse clube, que é gigante. Não gosto muito de falar de mim como jogador, mas no Riise vejo que ele era muita força física e também facilidade de atacar. Acredito que talvez eu defendesse um pouco melhor do que ele, não tinha a forca física que ele tinha nem potência do chute, mas era mais técnico.

E o Andy Robertson eu destacaria, com relação aos dois, mais a parte da técnica, que acredito que é uma condição que eu desenvolvi durante a carreira e que foi sempre o que acabou ajudando a me destacar por onde eu passei.

Alex Livesey/Getty Images

E você acredita que, não fossem as lesões, poderia ter se destacado ainda mais na história dos Reds?

Fábio Aurélio: O que marca, sem dúvidas, é o que eu poderia ter feito no Liverpool caso as lesões tivessem permitido. Infelizmente, não é novidade para ninguém tudo que eu sofri durante a carreira com as lesões. Acredito que sim (poderia ter me destacado mais) se tivesse mais sequência de jogos.

Sempre quando eu estava alcançando meu maior nível, as lesões aconteciam, então se leva um tempo para recuperar, você perde forma física, tem todo um trabalho de dedicação para voltar a competir em alto nível. Voltar a competir é uma coisa, voltar a competir no seu melhor nível é outra.

Então, sem dúvidas, as lesões prejudicaram muito o que eu poderia ter jogado caso não as tivesse. Mas procuro pensar também pelo lado positivo. Com todos os problemas e todas as lesões que eu tive, eu consegui me reerguer depois de todas elas.

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Em 2012, aos 32 anos, o que te fez deixar o futebol europeu?

Fábio Aurélio: Estava terminando o meu contrato, o Kenny Dalglish era o treinador no momento, e o Liverpool não ia renovar comigo, o que eu até entendia, visto que não estava sendo muito utilizado, pela idade e pelos problemas físicos. Eu ainda não tinha decidido se ia seguir pela Europa ou voltar ao Brasil, mas não tive muito tempo para refletir.

Eu tive rapidamente contato do Vanderlei Luxemburgo, que tinha já tentando me trazer para o Brasil em 2010, na época em que estava no Flamengo, mas acabei renovando com o Liverpool. Em 2012, ele estava no Grêmio e me ligou novamente.

Então não pensei duas vezes, porque era um treinador que eu conhecia, que eu tinha trabalhado (na seleção olímpica) e contava com a confiança dele. Era o que eu precisava naquele momento, então decidi voltar para o Brasil.

Hoje, enquanto empresário, como é orientar as novas promessas do futebol brasileiro, no sonho de alcançar uma trajetória vitoriosa na Europa?

Fábio Aurélio: Tento passar as experiências que tive. Porque o mais difícil, na verdade, é fazer com que eles (jogadores) não sofram essas distrações que as redes sociais e muitas outras coisas acabam influenciando em desempenho e concentração.

Então, as redes sociais acabam influenciando e atrapalhando muito o nosso trabalho. Mas o meu foco, que prezo e prego muito para eles é com relação ao profissionalismo. Como mencionamos em relação a ser o primeiro brasileiro no Liverpool e abrir as portas para outros chegarem, de você às vezes mudar a mentalidade que existe em alguns lugares, com preconceito em relação ao jogador brasileiro.

Às vezes, é melhor ser um jogador nota 7, 8 e uma pessoa 10 do que ao contrário. Os clubes europeus prezam muito caráter e profissionalismo. Preferem uma pessoa que é nota 10 e um jogador regular, que não vai trazer problemas e dor de cabeça.

Rafael Moro Brandão
Rafael Moro Brandão

Estudante de Direito na Universidade de São Paulo. Fanático por futebol e apaixonado pelas histórias que o esporte proporciona.