Eric Cantona: o personagem além das quatro linhas

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Eric Cantona jamais teria sido o jogador que foi não fosse o homem que é. A frase pode até parecer equivocada, já que, mesmo com outra personalidade, ele poderia muito bem ter demonstrado a mesma qualidade. E isso talvez seja verdade. Mas, fato é, jamais teria se transformado em um personagem tão relevante do futebol mundial. Como lembrar do craque icônico dos gramados sem pensar na figura igualmente icônica fora deles?

E, se a PL Brasil já contou a história do francês de gola alta pentacampeão inglês dentro de campo, chegou a hora de explicar o enredo que o torna um personagem tão especial também sem a bola nos pés. Agora, você confere com a gente um pouco mais de Eric Cantona além das quatro linhas: cinema, sociedade, cultura e política. Tudo isso regado, é claro, a muitas polêmicas.

O homem por trás do personagem

Hoje é quase impossível separar a pessoa Eric Cantona do personagem que se criou em sua volta – e que ele próprio incentivou ao longo dos anos. Mas, entre glórias e polêmicas, foi justamente essa caracterização sincera e irreverente que o preservou por tanto tempo como personagem marcante do imaginário popular, e não só no futebol.

E isso, em grande medida, porque Eric Cantona se transformou em uma figura que ultrapassa conceitos fechados e pré concepções. Cantona é, na prática, uma mistura de muitas narrativas, ou, segundo ele próprio, “um tipo de paradoxos e contradições“. Hoje, ele se encaixa em muitas esferas – futebolista, artista, filantropo – mas se define apenas em uma delas: “ser humano”.

Exageros à parte, nas últimas décadas Cantona vem se mostrando uma personalidade realmente complexa, assim como um elo interessante – e raro – entre o futebol e diversas causas filosóficas, políticas e sociais. Ao que parece, tem estado cada vez mais antenado ao que acontece no mundo, muito além do esporte, provocando constantes questionamentos e reflexões.

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Mas nem por isso ele perdeu a conexão futebolística que sempre fez questão de manter com os fãs, em especial na Inglaterra. Durante os anos em Old Trafford, Eric Cantona conseguiu estabelecer uma identificação verdadeira e extremamente profunda que perdura até hoje com grande parte da torcida e com o próprio Manchester United.

Aos que não estão familiarizados com sua trajetória, ele pode parecer uma figura bastante arrogante. E, analisando-se seu histórico, a impressão que fica é de que ele realmente seja um pouco mesmo, embora seja difícil discernir se trata de uma característica intrínseca a ele ou se apenas parte do repertório do personagem Eric Cantona.

De todo modo, no meio do futebol, Cantona nunca foi conhecido pela modéstia. E quando perguntado pelo Independent se mudaria algo nele mesmo, a resposta foi um seguro “não”. E mais, disse que mudaria as pessoas ao seu redor, sob a seguinte explicação: “Eu vejo que o mundo se tornou muito uniforme. Todos têm que ser iguais. Eu gosto de pessoas que são diferentes”.

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Na prática, a mística que há décadas cerca Cantona é mais ou menos parecida àquela que nos últimos anos paira em torno de Zlatan Ibrahimovic. Aliás, quando o atacante sueco foi para o Manchester United, Cantona gravou uma mensagem bastante calorosa e poética de boas vindas, mas ressaltando, com muito humor, que Zlatan poderia ser apenas o príncipe de Manchester, porque que rei só há um.

E as declarações de Cantona sobre jogadores atuais são mesmo bastante comuns, sendo Neymar um de seus “alvos” preferidos. Durante a Copa do Mundo de 2018, além de vídeos ironizando o camisa 10, Cantona publicou uma foto de Sócrates, em alusão à Seleção, com mensagem bastante endereçada a Neymar: “Sem mais trapaças. Sem mais lágrimas de crocodilo. Sem mais narcisismo. Deixe-nos amar o Brasil como costumávamos amá-lo”.

Assim, durante boa parte da trajetória de Cantona, mesmo quando já aposentado da carreira de jogador, essa sua imagem controversa e polêmica, ao mesmo tempo que carismática, foi recorrentemente utilizada pela Nike, enquanto uma espécie de “garoto-propaganda” da empresa. E sempre associado a um slogan impactante e midiático.

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Na última década, Eric Cantona chegou a ocupar o cargo de diretor de futebol do New York Cosmos, envolvendo-se em uma das tantas polêmicas de sua carreira ao deixar o clube. A saída foi através de demissão por justa causa após Cantona se envolver em uma briga com um paparazzi, em Londres. Mas, alegando não ter recebido suas garantias contratuais, o ex-jogador processou a equipe norte americana em um milhão de dólares.

E esse foi seu único grande vínculo com um clube de futebol após deixar o Manchester United, em 1997. A precoce aposentadoria, aos 30 anos, se deu porque ele perdera a paixão pelo jogo. Contudo, reconhece ter sentido medo de sofrer de depressão, ao deixar a adrenalina do esporte tão jovem. Então, ao invés de ficar em Manchester, ou mesmo voltar para a França, mudou-se para Barcelona, para longe de seu ambiente esportivo.

E até hoje Cantona diz realmente não gostar de ficar revivendo suas memórias do futebol, por melhores que elas sejam. Em suas palavras, está sempre olhando pra frente, em busca de novos desafios e objetivos, pois, segundo ele, é assim que deve ser. Afinal, ele quer ser “livre de suas lembranças para poder pensar no amanhã”.

O ator por trás do personagem

“Arte é sobre espontaneidade e o futebol expressa isso da melhor forma. Por isso eu considero o jogo uma arte.”

Eric Cantona aproxima-se cada vez mais do mundo artístico. Em 2017, lançou um livro, “My Notebook”, uma coletânea de suas reflexões cotidianas, em palavras e desenhos. Essa capacidade de se reinventar, guiado não por confiança, mas por coragem, é parte de sua filosofia de estar em constante revolução, e parece ser motivo de muito orgulho.

Tendo estreado no meio artístico mesmo antes da aposentadoria definitiva do futebol, Cantona teve dificuldade em repetir nas telas as performances exuberantes dos gramados. E ele reconhece ter subestimado o trabalho duro da profissão de ator no começo. Mesmo assim, rapidamente atingiu relativo sucesso na indústria cinematográfica, em especial após figurar em “Elizabeth”, premiado filme de 1998, no papel de Monsieur de Foix.

Nas duas décadas subsequentes, o ator Cantona passou a estrelar muitas produções independentes, sobretudo francesas. É o caso, por exemplo, de “L’outremanger” (2003), em que interpreta um obeso inspetor policial que se apaixona pela suspeita de um crime, fazendo par romântico com Rachida Brakini, atriz e cantora com quem se casaria anos depois – e para quem escreveria algumas canções.

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Porém, o auge de sua trajetória nas telas viria em uma produção britânica, “À Procura de Eric”, de 2009, que à Palma de Ouro no Festival de Cannes. O filme foi dirigido por Ken Loach, mas foi o próprio Eric Cantona, idealizador do projeto, quem recrutou o aclamado diretor A ideia original de Eric era conseguir retratar sua forte conexão com a torcida do Manchester United.

Assim, para a produção, o roteirista Paul Levy passou semanas com Cantona, a fim de compreender os sentimentos que ele despertava nos fãs. No final, o resultado foi uma abordagem em que Cantona é retratado não só como ídolo, mas guru e inspiração, de um conturbado torcedor dos Red Devils. À época questionado se o filme poderia afetar a visão de alguns sobre ele, disse não se importar, preocupado apenas em ser ele mesmo.

No clipe acima, a cena que demonstra a surpresa do personagem de Steve Evet ao se deparar com o ídolo é totalmente real. Isso porque, até aquele momento da produção, o ator não sabia que o verdadeiro Eric Cantona de fato participaria das filmagens. Na sequência, perguntado por Cantona sobre sua atuação, Steve diz ter respondido: “O que você está me perguntando? Você é uma lenda viva”.

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Depois do longa, Cantona voltou ganhar mais destaque em 2013, graças à sua participação em “Os Encontros da Meia-Noite”, de Yann Gonzalez. Aliás, foi esta atuação que rendeu a ele o primeiro – e por enquanto único – prêmio artístico de sua carreira, no festival de Nashville. Em meio a diversos outros filmes, o ex-jogador também faria parte de outras obras conhecidas, como “A Salvação” (2014), estrelada por Mads Mikkelsen.

No ramo das produções independentes, Cantona já passou até pelo cinema croata, no universo fantástico de “Anka” (2017). Mas neste ano Eric Cantona passou a figurar também nas plataformas de streaming, especificamente no catálogo da Netflix, representando Alain Delambre, o personagem principal da minissérie “Inhuman Resources”.

Podemos dizer que Cantona também já foi protagonista musical, tendo estrelado o clipe da música Once, de Liam Gallagher. Nele, o ídolo do Manchester United é retratado como rei, como ele próprio se intitulou tantas vezes na carreira, sendo Gallagher seu mordomo e motorista. E isso naturalmente não pegou nada bem com grande parte dos fãs do músico, reconhecidamente fanático torcedor do Manchester City.

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Mas, sobre a parceria, o ex-membro do Oasis, de humildade tão questionável quanto a de Cantona, disse: “Estou absolutamente emocionado por ter Eric neste clipe, o último jogador rock’n’roll de futebol. Músicas como essa não aparecem com muita frequência, nem jogadores de futebol como ele”.

E se a admiração por Eric Cantona já era extremamente comum no mundo do futebol,  também se tornou frequente no meio artístico. Direta ou indiretamente, o personagem Cantona é fonte de inspiração, ou pelo menos referência, para diretores e atores. A bem sucedida parceria com Ken Loach (fã do jogador) e o roteirista Paul Laverty acaba sendo o exemplo mais evidente, mas longe de ser o único.

Em 2014, houve um caso interessante. Em divulgação do filme “Ninfomaníaca”, de Lars Von Trier, o polêmico Shia LaBeouf abandonou a entrevista coletiva logo após dar uma resposta que poucos entenderam. O ator simplesmente reproduzira, em seus exatos termos e gestos, a icônica entrevista de Eric Cantona de 1995, após a famosa voadora em torcedor do Crystal Palace.

“Quando as gaivotas seguem o barco, é porque ela pensam que as sardinhas serão jogadas no mar. Muito obrigado.”

O rebelde oficial do futebol

Um grande exemplo da personalidade única e irreverente de Eric Cantona é o discurso que proferiu na cerimônia da Uefa, em 2019, após receber o President’s Award, prêmio destinado a figuras importantes no desenvolvimento do esporte, dentro e fora de campo.

Citando Rei Lear, de William Shakeaspere, ele deixou os presentes estarrecidos ao fazer uma série de alusões aparentemente apocalípticas entre a sociedade moderna e o futebol.

Culto como é, Cantona obviamente não escolheu as palavras ao acaso e, aos olhares mais atentos, não passou despercebida a crítica direcionada àqueles que vêm conduzindo o esporte – ironicamente os mesmos que lhe concederam a honraria. E ela foi ainda mais perceptível a quem já acompanhava as declarações de Eric Cantona, como esta, de um anos antes, em matéria da revista The Players’ Tribune:

“O futebol é um dos maiores professores da vida. É uma das maiores inspirações da vida. Mas o vigente modelo do futebol ignora tanto do mundo (…) O futebol tem que ser para as pessoas. Isso não deveria ser uma ideia utópica. Não há razão para que os maiores atores do jogo não se juntem em prol dos aspectos sociais do futebol”.

Por trás dessa sua fala, assume relevância ainda maior a participação e liderança que ele exerce no Common Goal, iniciativa que visa destinar 1% do orçamento de toda a indústria futebolística para instituições de caridade ligadas ao futebol – e justamente um dos fatores que o levaram a ser homenageado na cerimônia da Uefa.

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E tendo transformado a breve homenagem em um momento viral e eterno, o rei Eric levou ao centro dos holofotes um prêmio que antes havia coroado nomes icônicos como Bobby Robson, Johan Cruyff e Francesco Totti. Já após Cantona, o premiado foi Didier Drogba, que compartilha com nosso personagem uma posição ainda mais importante, de rebelde do futebol.

O “título”, autoexplicativo, refere-se àqueles que lutam contra as injustiças do esporte, e, consequentemente, contra a desigualdade do próprio sistema. De posturas marcantes, facilmente identificáveis ao longo da história do futebol, eles revertem o sucesso esportivo em prol da sociedade. E por mais que as atitudes dessas figuras dispensem qualquer selo formal, Cantona e Drogba têm em comum a confirmação da rebeldia.

Aqui, a referência é à série documental francesa “Os Rebeldes do Futebol” (Les Rebelles du foot), direção de Gilles Perez e Gilles Rof. Aliás, nela, as carreiras de Cantona como jogador e ator novamente se confundem. Isso porque sua trajetória singular fez com que fosse o escolhido para narrar a produção de 2012, como a figura que une os rebeldes do futebol, nomes que representam como o esporte é muito mais que um jogo.

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Assim, em cada um de seus cinco episódios, a série traz, através de Cantona, a grandeza e a relevância de um diferente personagem histórico, e rebelde, do futebol mundial. Drogba é justamente um dos integrantes dessa equipe, que ainda conta com o chileno Carlos Caszely, o argelino Rachid Mekhloufi, o croata Pedrag Pasic e o brasileiro Sócrates.

Ainda no sentido de explorar as histórias reais do futebol e os impactos sociais do esporte, Cantona estrelou uma série de documentários sobre as rivalidades do esporte ao redor do mundo, intitulada “Looking for”, iniciativa da Canto Bros, produtora criada por Eric e seus dois irmãos. No percurso, o ator passou por Istambul, Atenas, Buenos Aires, Milão e Barcelona, além, é claro, de Manchester.

Na sequência, em uma perspectiva um pouco mais ampla, ele comandou o documentário “Looking for Rio”, de 2014, que mergulha a fundo na capital carioca, evidenciando desde o futebol local até as desigualdades sociais. Assim, a produção sobre o Rio de Janeiro pôde demonstrar o futebol enquanto elemento nacional, metonímia da sociedade brasileira.

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Cantona e a política 

É quase impossível separar Eric Cantona de suas convicções ideológicas. Ao longo de toda a sua trajetória, ele foi um personagem fortemente movido por suas crenças políticas e sociais. Fosse no âmbito profissional fosse na vida pessoal, jamais omitiu suas opiniões, mesmo quando polêmicas, tampouco se calou frente ao que considerasse injustiças.

Mesmo o lance que marcou negativamente sua carreira como jogador, a histórica voadora em um torcedor do Crystal Palace, teria sido motivada por princípios ideológicas. Segundo a versão do atleta, a agressão sucedeu gritos xenofóbicos proferidos por um hooligan. E essa seria a reação natural de Cantona a declarações racistas. Nas palavras do rei em entrevista recente à BBC, “foi um erro, mas esse sou eu”.

E essa marcante postura combativa do francês está enraizada em suas heranças familiares, conforme revelou à The Players’ Tribune. O avô materno de Cantona lutou junto à Frente Popular na Guerra Civil Espanhola, enquanto seu avô paterno enfrentou os países do Eixo na Segunda Guerra Mundial. E ambos em núcleos familiares de imigrantes refugiados que sofreram com o preconceito.

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Portanto, toda essa bagagem familiar ajuda a orientar Cantona e seus projetos na direção das causas sociais. E temas recorrentemente combatidos por ele são xenofobia e racismo. Em 2014, já vindo de um histórico de documentários futebolísticos e sociais, ele esteve à frente da produção “Futebol e imigração, 100 anos de história comum”, que revela o esporte como ferramenta de integração. Sobre isso, disse em entrevista à EuroNews:

“No futebol, se você for melhor que alguém, você joga. Essa é a beleza do esporte. O que é lamentável é que saindo do campo – no meio de dirigentes e federações – a situação se mostra igual ao resto da sociedade: se a cor de sua pele não corresponder, você pode não conseguir o lugar que merece”

Esse tipo de declaração sempre foi comum à trajetória de Cantona, sobretudo, para combater o preconceito, mas tem recebido atenção cada vez maior, graças ao potencial “viralizador” das redes sociais. Neste ano, em meio ao movimento Black Lives Matter, ele compartilhou um vídeo em que lê o poema “Caro irmão branco”, de Léopold Sédar Senghor.

enquanto Você, Homem Branco…
Quando você nasceu, era rosa
Quando você cresceu, era branco
Quando você vai ao sol, fica vermelho
Quando você fica com frio, fica roxo
Quando você está com medo, fica AMARELO
Quando você fica doente, fica verde
Quando você morrer, ficará cinza
Então, entre nós, quem é o homem de cor?

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Já em 2016, quando Ben Arfa e Karim Benzema ficaram de fora da seleção francesa para a disputa da Eurocopa, Cantona atribuiu a ausência dos jogadores na convocação de Didier Deschamps a suas origens árabes. E, além de criticar Manuel Valls, então primeiro ministro francês – que pedira ao treinador para que não levasse Benzema (após polêmica com Valbuena) – Cantou ironizou a situação ao The Guardian:

“Benzema e Ben Arfa são ótimos, mas é o Deschamps quem tem um nome francês de verdade'”.

E suas atitudes também se replicam em ações institucionais. Em 2018, por exemplo, participou do concerto Hoping for Palestine, em Londres, evento beneficente em prol de jovens palestinos refugiados. No palco, que dividiu com a banda The Libertines e a cantora Patti Smith, o ator recitou o poema Enemy of The Sun, símbolo da resistência palestina.

Na política propriamente dita, Cantona também não deixa suas opiniões de fora dos holofotes. Sobretudo quando polêmicas. Em geral bastante reflexivo, ele sempre associa suas manifestações à defesa da liberdade, seja de espírito, seja de crença: “o que são o futebol e a vida senão sobre liberdade?”. E, em recente entrevista ao The Guardian, ele expandiu esse pensamento, justamente para a esfera política:

“As grandes democracias vão para onde há milhares de anos de tradições e culturas, querendo que vivam conforme desejarem. Para mim, é um tipo de terrorismo, Um terrorismo econômico. E as grandes democracias são, de certo modo, ditaduras, porque querem impor sua visão”.

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Tal declaração em muito dialoga com a essência de seus posicionamentos políticos, opostos à opressão, ideológica e financeira. Para ele, a atual expansão dos regimes totalitários de direita é um claro reflexo da problemática econômica, que possibilita o “espalhamento de ideias loucas“, exatamente como no contexto que antecedeu a ascensão do nazismo. Assim, não esconde o receio de uma nova guerra mundial: “parece haver uma repetição”.

E também sempre se mostrou preocupado com a gravidade da crise econômica: “não creio que seja possível viver completamente feliz com tanta miséria em nossa volta, a não ser que se viva em um casulo”. Nesse sentido, destaque para uma fala sua de 2010, quando propôs uma silenciosa revolução contra o sistema financeiro, segundo ele a única forma para que a sociedade fosse ouvida:

“O sistema é centrado nos bancos. Por isso tem que ser destruído a partir dos bancos. Às três milhões de pessoas que estão nas ruas com cartazes, que vão aos bancos, retirem o dinheiro de lá e eles colapsarão. E assim há uma verdadeira revolução.”

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Na esfera ideológica, Cantona costuma mesmo ser incisivo. Em 2018, durante a corrida presidencial brasileira, publicou foto de Sócrates com a legenda “Democracia Corintiana”. Nos comentários da postagem, juntou-se a ele outro rebelde do futebol, Didier Drogba. Em francês, seguido de #LesRebellesDuFoot, ele escreveu: “o homem do povo, Dr. Sócrates”.

Poucos dias depois, Cantona voltou às redes sociais para se manifestar sobre a política brasileira, mas desta vez com sua opinião ainda mais explícita. Junto a #elenão, Eric escreveu: “Quando vejo a seleção brasileira aceitar jogar um amistoso na Arábia Saudita, por muito dinheiro eu tenho certeza, consigo entender por que milhões de brasileiros estão dispostos a votar em Bolsonaro”.

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Em cenário de eleições, ele já havia roubado as manchetes em 2012, quando, em carta aberta no jornal Libération, deu a entender que mirava a disputa presidencial francesa daquele ano. Isso porque estaria em busca de 500 assinaturas, justamente o número necessário para viabilizar eventual candidatura. Contudo, não passou de mais uma brilhante jogada de marketing do rei.

Conforme explicado depois, ele estava promovendo uma campanha beneficente da Abé Pierre Foundation, instituição da qual era patrono, em prol da construção de moradias populares. Eric Cantona aproveitou a oportunidade para se declarar um cidadão engajado falando em nome de milhões de famílias esquecidas, vítimas das sistemáticas e violentas injustiças sociais.

Em meio à repercussão, interessante a percepção de Sarah Campton, em matéria do The Telegraph, da normalidade com que eram recebidos tais envolvimentos de Eric Cantona. Se nomes como Wayne Rooney e Frank Lampard fossem a público criticar as desigualdades da sociedade francesa, isso causaria, no mínimo, certo estranhamento, apontou ela à época. Nesse mesmo sentido, destacamos fala recente de Cantona:

“Mais jogadores e ex-jogadores deveriam usar suas posições. É importante encorajá-los a olhar em volta. Se eles não quiserem falar, se quiserem se concentrar no jogo, sem problemas. Mas pelo menos que saibam. E no final talvez façamos algo porque sabemos. Mas há a ignorância. E é uma pena, porque muitos jogadores vêm das áreas mais necessitadas, e alguns se esquecem disso. Nós temos que fazê-los entender”.

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Em 2019, Cantona estrelou uma interessante e engraçada campanha de marketing da Paddy Power, em um contexto de incerteza quanto às reais consequências do Brexit. Em uma série de vídeos, o francês dá dicas de como sobreviver ao Brexit. E isso com sua irreverência característica, além de muitas piadas futebolísticas, envolvendo figuras como Alex Ferguson, Steve Bruce e, claro, ele próprio.

Após tamanha análise de sua trajetória, a impressão que fica é de que Eric Cantona conseguiu unir seus diferentes mundos, com suas crenças e convicções. No universo de Cantona, portanto, futebol, cultura e política se misturam – e são inseparáveis. E foi graças a isso que se tornou esse personagem tão icônico. E também por isso que, mesmo fora dos campos, ele até hoje se mantém nas telas – e nos holofotes.

Rafael Moro Brandão
Rafael Moro Brandão

Estudante de Direito na Universidade de São Paulo. Fanático por futebol e apaixonado pelas histórias que o esporte proporciona.