Após música racista, Enzo Fernández tem um dever dentro e fora do Chelsea

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O aspecto da Copa América que, de longe, mais repercutiu não foi o que aconteceu dentro dos campos, nem a bagunça organizacional na final. Foi a musiquinha racista cantada depois pelos jogadores da Argentina, comemorando o título de uma maneira vergonhosa.

O papel do volante Enzo Fernández no episódio — foi ele que estava transmitindo a musiquinha ao vivo na internet — ganhou grande destaque na Inglaterra, pois, claro, ele defende o Chelsea.

Fiz programas de rádio nos últimos dias com Sanjay Bhandari, presidente da “Kick It Out“, uma organização contra a discriminação, em especial o racismo, no futebol inglês. Também fiz com Carlton Cole, ex-jogador da seleção inglesa e descendente de africanos. A indignação dos dois é muito grande.

Carlton Cole é mais conhecido pelos anos que defendeu o West Ham. Mas ele começou no Chelsea — um clube que, voltando para os anos 1970 e 1980, atraiu elementos racistas na sua torcida. 

A extrema direita estava sempre , vendendo as suas revistas e recrutando gente para o seu lado.

A segunda metade dos anos 1970 foi quando a primeira onda de jogadores negros ingleses começou a aparecer nos campos do pais. O primeiro que defendeu a seleção principal foi o lateral direito Viv Anderson em 1978. 

Aquela geração sofreu demais — tanto que o livro que Anderson escreveu se chama “First Among Unequals” (Primeiro Entre Desiguais, em tradução livre). O racismo correu solto, barulhos de macaco, ameaças de violência — às vezes da torcida do próprio clube do jogador.

Quando a Inglaterra venceu o Brasil por 2 a 0 no Maracanã em 1984, parte da torcida que acompanhou o time argumentava que o placar de fato era 1 a 0, pois um dos gols foi de John Barnes — jogador negro, e, portanto, o seu gol não valeu.

Lá no Chelsea o primeiro jogador negro foi o Paul Canoville, um atacante que defendeu o clube na primeira metade dos anos 1980. No seu livro “Black and Blue” (preto e azul) ele conta o terror que sentiu ouvindo coisas que a própria torcida do clube estava falando a seu respeito.

Ninguém argumenta que a situação atual no futebol inglês é perfeita. Longe disso. 

Lembro da reação de muitos racistas depois da final da Eurocopa de três anos atras, culpando os jogadores negros pela derrota contra a Itália.

Mas o progresso desde os tempos de Paul Canoville tem sido muito grande. Uma linha foi estabelecida — comportamento racista dentro dos estados não é aceitável. Muita gente se esforçou demais para efetivar mudanças.

Os heróis principais são os próprios jogadores negros e organizações como a Kick It Out. Mas um problema assim não se melhora sem a participação ativa de jogadores brancos no processo.

Reece James e Enzo Fernandez no Chelsea
Reece James e Enzo Fernandez no Chelsea. Foto: Icon Sport

No Chelsea, o homem-chave era Pat Nevin, um ponta escocês habilidoso e inteligente. Foi o destaque de um jogo do clube e usou a entrevista depois da partida não para enaltecer o seu próprio desempenho, mas para registar um protesto contra o comportamento racista das arquibancadas. Assumiu um papel de liderança para passar uma mensagem sobre ações e atitudes inaceitáveis.

Enzo Fernández agora se acha diante de uma possibilidade semelhante — ou um buraco sem fim.

Um dos piores castigos que ele vai receber vem no momento quando ele pisar na primeira vez no vestiário do clube dele para os treinos da pré-temporada. Vários colegas deixaram de segui-lo nas mídias sociais — que no mundo moderno serve como sinal de banimento social. Já tem a primeira crise no reino do Enzo Maresca, o novo técnico do Chelsea.

Enzo Fernández em jogo do Chelsea
Enzo Fernández em jogo do Chelsea. Foto: Icon Sport

Como lidar com isso? Parece que precisa de um encontro do grupo, para lidar com a situação e procurar uma solução. E aquela solução, necessariamente, passa por uma mudança no comportamento de Enzo Fernández. 

Tudo bem, pediu desculpas numa postagem. Mas isso são somente palavras. No domingo, ele voltou para o estádio do seu clube de origem, o River Plate, lá em Buenos Aires. Recebeu uma homenagem. E, em massa, a torcida passou a cantar aquela musiquinha.

Como alguém que convive num vestiário multinacional, multicultural, multirracial, Fernández deveria adotar uma postura de liderança. Deve explicar para o seu próprio povo que a musiquinha é inaceitável.

Deveria fazer parte da solução e não prolongar o problema.

Tim Vickery
Tim Vickery

Tim Vickery cobre futebol sul-americano para a BBC e para a revista World Soccer desde 1997, além de escrever para ESPN e aparecer semanalmente no programa Redação SporTV. Foi declarado Mestre de Jornalismo pela Comunique-se e, de vez em quando, fica olhando para o prêmio na tentativa de esquecer os últimos anos de Tottenham Hotspur.