Recentemente, o nome de Emma Mitchell esteve envolvido em uma negociação que chamou a atenção no futebol feminino da Inglaterra. Isso porque a zagueira, depois de anos no Arsenal, foi por empréstimo para o Tottenham, grande rival.
Em meio a toda a repercussão, pouca gente sabe, porém, que a escocesa tem uma história de luta com a saúde mental. Mitchell já passou por muitas dificuldades, mesmo em momentos de glória profissional, e hoje fala abertamente sobre o assunto.
Sua história foi revelada em outubro de 2019, quando a zagueira, então no Arsenal, deu um depoimento à jornalista Jo Currie, da BBC (e que foi divulgado no site oficial dos Gunners), falando sobre saúde mental e como ela tem lidado diariamente com todos os problemas.
A PL Brasil traduziu o profundo e importantíssimo relato de Mitchell e traz sua história abaixo.
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Eu sou Emma Mitchell e quero falar sobre saúde mental.
Quero começar dizendo que o ano passado foi provavelmente um dos mais difíceis da minha vida, profissionalmente e fora do campo. Perdi a Copa do Mundo e mesmo com nosso time ganhando a Women’s Super League, tive que encarar muitos problemas pessoais.
Foi difícil, mas agora estou feliz em falar sobre.
É louco, porque eu nunca percebi como estava me sentindo à época, até que um dia algo aconteceu e eu sabia que alguma coisa não estava muito certa. Estava treinando e fui acertada no rosto. É uma daquelas que, como atleta, você apenas dá de ombros e continua com suas coisas. Mas nessa ocasião…
Bem, eu literalmente desabei. Desabei por alguém ter me acertado levemente no rosto. Saí do campo e pensava: “meu Deus, eu realmente não estou OK”.
Sempre usei o futebol como um escape, então quando as coisas não iam tão bem fora do campo, eu conseguia lidar. Mas quando as coisas também não estavam indo bem no campo, como quando não jogava bem ou tinha uma lesão persistente ou incômoda, tudo chegou a um limite.
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Me machuquei no fim do ano passado, tive um dano na cartilagem, voltei muito rápido e não tive o tempo ideal para uma recuperação… aquilo provavelmente afetou minha performance. E ainda havia uma pressão extra pelo fato de o time estar perto de ganhar a liga, e tínhamos que vencer todos os jogos. Coisas desse tipo eram realmente importantes para mim.
Também houveram coisas fora do campo, como problemas familiares com os quais nunca tive que lidar. Meu tio cometeu suicídio quando éramos mais jovens e minha mãe estava no hospital por uma overdose. Eu fui encontrando espaço para lidar com isso emocionalmente, mas aí tudo ficou um pouco excessivo e a coisa meio que transbordou.
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Estava realmente mal, de uma forma que não queria socializar com ninguém. Só queria passar o dia inteiro na minha cama. Até mesmo ir ao centro de treinamentos era uma tarefa dura para mim, e nunca havia me sentido daquela forma antes.
Durante toda a minha carreira, sempre amei treinar. Sempre senti isso como um hobby mais do que como um trabalho, e que sou sortuda por fazer algo que amo todos os dias. Mas aí nessa coisa assustadora eu pensaria algo do tipo “meu Deus, é o meu trabalho, não posso bagunçar tudo”.
Eu não estava aproveitando, mas também não pude escapar. Ficaria apenas naquele nível muito, muito baixo o tempo todo. Sentia como se tivesse uma pressão constante no peito, como se alguém estivesse em cima de mim e eu não pudesse tirá-lo.
Isso acabou sendo demais e me lembro de um dia chegar até o Joe (Montemurro, técnico do Arsenal) após um treino e dizer “OK, preciso de ajuda”. No dia seguinte, pude falar com uma psicóloga. Acho que as experiências com meu tio e minha mãe me fizeram perceber que eu precisava de ajuda antes de chegar a um ponto onde não queria estar. Pela primeira vez, senti que poderia apenas conversar e começar o processo até me sentir bem novamente.
Nunca falei de verdade sobre isso, como um todo, para todas as companheiras. Obviamente haviam algumas garotas que eu era mais próxima, como Lisa (Evans), Viv (Miedema), Katie (McCabe) e Kim (Little), com quem eu compartilharia tudo. Elas sabem bem o que aconteceu, mas no time como um todo, não acho que alguém realmente sabia o que acontecia ou porquê (à época da entrevista), então espero que isso ajude-as a entender também.
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Provavelmente só agora sou honesta quando me sinto ansiosa ou não tenho um grande dia, e as garotas perguntam: “Como podemos ajudar? O que podemos fazer para você se sentir melhor?”. Só agora estou disposta a aceitar alguma ajuda, porque antes eu nunca queria sobrecarregar mais alguém.
No fim, não tinha nada com o que me preocupar. Lisa e Kim foram as que estiveram ali o tempo todo por mim, e eu pude desabafar com elas sem julgamentos. Aquilo foi muito bom para mim, poder compartilhar como me sentia e com elas me ajudando.
Foi importantíssimo tê-las ali, pois não levei sozinha toda a pressão e sentimentos. Elas estavam lá para ouvir, dizer que estava tudo bem e coisas do tipo. Aquilo foi muito importante e é algo que você nunca pensa que vai ter um impacto tão grande em alguém, até que você está naquela situação.
E depois de tudo, isso é um problema que não é conversado suficiente. Às vezes surge algo como um comentário aleatório, e você apenas presume que a pessoa está com uma dor de cabeça, um período ruim ou algo do tipo. Você nunca para realmente para sentar com alguém e dizer “olha, você está bem?”.
Eu pude fazer isso e uma vez que conversei com o Joe, depois daquela vez que desabei no treino, disse que precisava me afastar do envolvimento com o futebol e com o Arsenal por um tempo. Entrei em um trem por dois dias e imediatamente me senti mais leve, como se alguém tivesse saído de cima dos meus ombros.
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Não consigo lembrar muito da minha viagem de volta para casa, parecia um filme em que você vê os campos passando e algo assim. Lembro que quando cheguei, apenas dormi nos primeiros três dias. Estava fisicamente e emocionalmente desgastada, precisava apenas dormir e sentir que alguém olhava por mim em casa.
No mesmo dia em que meu pai me buscou na estação de trem, me lembro de estar no estacionamento do Sainsbury (rede de supermercados) e ligando para Shelley Kerr (técnica da Escócia), para dizer o que aconteceu. Eu chorava e dizia como me sentia, e que precisava me afastar um pouco do futebol para cuidar de mim.
Estava tudo bem, ela disse que me apoiava e que faria o que pudesse por mim. Me senti bem de certa forma, senti que poderia tomar esse tempo e voltar para ter a chance de ser convocada. Liguei para ela novamente umas duas ou três semanas depois, mas não tive nenhuma resposta até saber que não fui convocada para a Copa do Mundo pela Escócia.
Aquilo foi realmente difícil de levar porque trabalhei muito duro, física e mentalmente, para poder ir a uma Copa do Mundo. Mas é maluco pensar que se eu nunca tivesse pedido ajuda, poderia ter ido à Copa em uma condição muito ruim, porque jogaria toda semana e isso seria ok.
Agora que tudo já foi, eu prefiro me sentir da forma que estou agora em relação ao começo do ano. É algo que me deixa muito, muito orgulhosa.
Eu sinto que para jogadores de futebol, se você fala sobre isso, acaba sendo julgado. Se caso eu diga “não estou me sentindo bem hoje”, será que isso vai afetar minha escolha para um jogo no domingo? Então foi mais fácil para mim não dizer nada e poder apenas jogar.
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Tudo é sobre comunicação, e há uma falta disso. Também há uma falta de compreensão sobre como o lado mental do jogo pode afetar a performance. É muito grande. E é importante para as pessoas estarem confortáveis e dizerem “não estou bem, preciso de ajuda”.
Queria que fosse algo normal e que as pessoas conversassem sobre. Você deveria ser apto a dizer a alguém que não está se sentindo bem, e ter o apoio que te faça voltar a se sentir 100%. Sua saúde mental é muito importante, se você joga futebol ou cuida de cães.
Enfim… depois de um tempo em casa, comecei a sentir falta de jogar. E pensava: “Isso é bom”. Quando estava no meu ponto mais baixo, futebol não era algo na minha mente e isso não me incomodava. Nem queria jogar novamente porque a pressão era enorme. Mas aí depois de três semanas fora, estava pronta para voltar aos treinos.
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Nas minhas primeiras duas ou três semanas de retorno, estava trabalhando na academia e aparecia apenas para o almoço em um dos dias. Então no dia seguinte eu chegava pela manhã, fazia a academia, me recuperava e ia para casa. O time me permitiu fazer o que fosse preciso até que eu estivesse confortável para dizer “OK, estou pronta para treinar”.
Aí foram só trabalhos com o pessoal da academia para estar na forma ideal novamente, e com seis semanas voltei a treinar normalmente com o time. O clube me apoiou muito e fez a transição para o retorno ao futebol ser fácil.
Eles também me apresentaram Suzanne, a psicóloga que temos no clube. De cara me lembro de dizer “você não irá me ver pois não vou precisar vir conversar com você”, mas com um mês, estava literalmente batendo na porta dela em lágrimas.
A maior coisa que ela me ensinou foi a abrir espaço para os meus sentimentos. O melhor exemplo que posso pensar é de quando ganhamos a WSL em Brighton na última temporada (o Arsenal venceu o Brighton por 4 a 0, na penúltima rodada, e conquistou o título da WSL em 2018/19). Todas estavam super felizes e eu não conseguia comemorar. E nem queria, apenas me sentia terrível.
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Foi provavelmente um dos meus piores dias, e foi enquanto todo mundo estava comemorando. Eu me sentia muito distante daquilo porque não vinha jogando antes. Fiquei apenas sentada no banco, tentando fazer parte daquela sensação.
Lembro que estava sorrindo para as câmeras do lado de fora, mas quando cheguei no chuveiro, enquanto as garotas tomavam champanhe, eu só chorava. Eu sei… estou orgulhosa de poder fazer aquilo porque não estou mascarando mais a dor – é assim que eu me sinto.
Ali eu estava dando espaço aos meus sentimentos, como Suzanne me ensinou. Era assim que estava me sentindo e chorei por 10 a 15 minutos no banheiro. Depois daquilo, fiquei bem. Festejamos pelo resto da noite e eu tive um ótimo momento, mas sabia que precisava ajudar a encontrar esse espaço de como mostrar me sinto, em vez de carregar tudo como eu fazia antes.
Trabalhamos muito nisso, e também buscando de onde vinham minha ansiedade e meu humor ruins. Tentamos identificar isso cedo para fazer isso parar de acontecer. Era como um pequeno triângulo, então se eu soubesse que estava fazendo isso para evitar aquilo, jamais experimentaria uma outra coisa. Foi uma grande forma de me fazer seguir em frente.
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Agora estou de volta e mesmo tendo alguns dias onde acordo e não me sinto bem como normal, posso identificar porque estou me sentindo assim. Às vezes pode ser algo como estar ansiosa por uma ligação, mas eu sei que se eu deixar isso para o fim do dia, vai continuar na minha cabeça. Então apenas faço a ligação e pronto.
Ainda falo com Suzanne, a psicóloga, ou com Shanita que eu também tenho visto recentemente, mas nunca é porque estou me sentindo para baixo. São apenas problemas com os quais preciso de outra opinião. Ou às vezes é até para chegar e dizer, “estou bem”. É assim que estou agora.
As coisas melhoraram também no campo. Voltar na última temporada e fazer o gol na rodada final contra o Manchester City (vitória por 1 a 0 na última rodada da WSL em 2018-19)… aquilo significou tudo para mim. Você pode ver na minha reação que eu estou tentando não chorar.
Foi um dia emocionante para mim porque estive no clube há muito tempo e nunca ganhei a liga. E quando fizemos isso, eu senti que estava escrito nas estrelas que acontecesse comigo.
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Eu nunca costumo marcar gols e fazer um como aquele… Uau! Foi muito bom, e minha família estava lá para ver também. Minha reação diz tudo, e eu estava realmente emocionada porque trabalhei muito para voltar àquele ponto. Senti que merecia isso. Foi meu momento, e incrível que aconteceu naquele jogo.
Como eu disse, trabalhei duro para voltar, então cabe a mim continuar trabalhando por uma boa saúde mental. Vou continuar indo à psicóloga, mesmo se for apenas para chegar e dizer um oi, ou que tudo está bem naquela semana. Isso será o meu normal agora, o que é bom. É onde todos devem estar.
No campo, eu quero estar bem fisicamente, jogando semana após semana. Quero estar na seleção, vestindo a camisa da Escócia de novo, e ser feliz aproveitando meu futebol. Quero jogar com um sorriso no rosto e, claro, apenas acertar algumas divididas mais duras.
Essa sou eu, Mitch. É disso que eu estou falando. E mal posso esperar.
Emma Mitchell
O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.