Naquele 15 de abril de 1989, 97 torcedores do Liverpool saíram de casa para assistir a uma partida válida pela semifinal da Copa da Inglaterra, mas nenhum deles voltou. O Desastre de Hillsborough foi, certamente, uma das maiores tragédias do futebol e mudou completamente o panorama do esporte na Inglaterra. Após o desastre, a relação torcedor-estádio nunca mais foi a mesma na Inglaterra.
O contexto da época anterior ao Desastre de Hillsborough
O futebol inglês, na época, era muito diferente do que é hoje em dia. Estádios acabados e com infraestrutura precária, uso de grades para impedir invasões ao campo e muitas brigas envolvendo hooligans. A violência era um problema grave do futebol inglês, que lutava para reforçar a segurança.
Quatro anos antes, uma outra grande tragédia mudou a história do esporte. Liverpool e Juventus se enfrentavam na final da Liga dos Campeões em Heysel, na Bélgica, em 1985, e o clima era tenso. Antes mesmo da bola rolar, fora do estádio, já eram constatadas provocações entre as torcidas e até lojas arrombadas.
A logística do estádio acabou posicionando a torcida mais aficionada do Liverpool ao lado do setor onde estavam torcedores da Juve e outros neutros, sem o devido policiamento. Os hooligans ingleses derrubaram as grades que separavam as torcidas e foram para cima dos torcedores rivais.
Por conta do pânico e da confusão, muitas das vítimas pressionaram um muro das arquibancadas para fugir dos hooligans e a estrutura acabou cedendo, o que piorou a tragédia. A todo, 39 pessoas morreram, a grande maioria de italianos, e centenas ficaram feridas. O desastre não impediu a realização do jogo, e a Velha Senhora derrotou o Liverpool num melancólico 1 a 0.
As imagens chocaram o mundo do futebol, e os clubes ingleses foram proibidos pela Uefa de disputar competições europeias por cinco temporadas.
Problemas antes do jogo começar
É nesse contexto de hooliganismo que o Liverpool foi disputar a semifinal da Copa da Inglaterra no estádio de Hillsborough, um campo neutro na cidade de Sheffield que era acostumado a receber partidas desse nível, embora tivesse claros problemas de infraestrutura.
O passado recente de problemas com torcedores ingleses explica, por exemplo, o fato das grades nas arquibancadas de Hillsborough serem num formato de uma gaiola, com o intuito de impedir invasões ao gramado. Essa estrutura foi determinante para a tragédia.
Mesmo com mais torcida, o Liverpool foi destinado ao menor setor do estádio. A torcida dos Reds ficou limitada a um espaço e entradas menores. Para se ter uma ideia, a logística pedia que 10 mil torcedores dos Reds utilizassem apenas sete catracas para entrar. Os fãs do segundo time mais popular da Inglaterra só tiveram direito a 28% dos acessos às arquibancadas do estádio. Isso também virou um perigoso problema.
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A consequência do acesso restrito foi uma multidão de torcedores que queria entrar e não conseguia, além de outros que desejam sair do local mas eram pressionados contra as catracas. Com o jogo prestes a começar e uma quantidade absurda de torcedores do lado de fora, a situação ficou tensa. A solução das autoridades foi, então, um portão lateral, originalmente uma saída, sem catracas, para desafogar a multidão.
A ideia era que os torcedores seguissem para os espaços laterais, vazios até então. Dos quatro setores destinados ao Liverpool atrás de um dos gols, os dois centrais já estavam lotados. Da sala de controle, acima de um dos setores, os policiais responsáveis tinham a completa visão da superlotação e todas as condições para sinalizar que a multidão não fosse para o lugar mais cheio, mas nada foi feito. Seguindo a direção intuitiva, sem saber da quantidade de pessoas presentes, a maioria dos torcedores que estavam entrando foi em direção ao centro, onde não cabia mais ninguém.
A segurança do estádio de Hillsborough deixou entrar o dobro do número de torcedores que o permitido no setor chamado Leppings Lane. Onde cabiam 1.600, haviam 3.000 pessoas. O resultado foi uma catástrofe sem precedentes na história do futebol inglês.
Jogo mal começa, e situação fica caótica
Aos três minutos de jogo, uma bola na trave animou a torcida, e a movimentação piorou a situação dos torcedores aglomerados no setor do Liverpool.
Quando a confusão se agravou, muitos torcedores avisaram os atletas em campo do que estava acontecendo. Os gritos de desespero chamaram a atenção dos jogadores, que alertaram a arbitragem, mas pouco se sabia o que estava realmente acontecendo naquele momento.
O protocolo policial a ser seguido visava evitar o hooliganismo – devido a casos como Heysel, esse era o tipo de confusão esperada –, o que explica a total falta de preparo para lidar com a situação em Hillsborough. Ademais, o chefe da polícia na oportunidade, David Duckenfield, jamais havia trabalhado em um jogo de futebol. Mais tarde, se revelaria que mal conhecia os times que jogariam.
Por isso, a primeira atitude das autoridades foi impedir a entrada de ambulâncias no local, dificultando os primeiros socorros, além de tentarem não deixar os torcedores subirem nas grades com medo da “invasão” de campo, quando elas só estavam tentando fugir do sufocamento. Uma grande porção de policiais ainda foi orientada a fazer um cordão humano que impedisse a entrada de torcedores do outro time, o Nottingham, em campo, bloqueando possíveis brigas, ao invés de adotar qualquer procedimento emergencial que a situação pedia. Das 97 vítimas, apenas 13 conseguiram chegar ao hospital.
O caos estava instalado e o desespero tomou conta de todo o estádio. A vítima mais nova dentre os 97 mortos era John-Paul, de 10 anos, dois a mais que seu primo Steven Gerrard.
Autoridades e parte da imprensa culpam torcedores
As autoridades locais responsabilizaram o hooliganismo e o consumo de bebida alcoólica para justificar as 97 mortes e mais de 700 feridos no Desastre de Hillsborough.
Além disso, a polícia afirmou, à época, que torcedores do Liverpool sem ingresso forçaram a entrada no estádio, o que teria causado a confusão.
O tabloide The Sun foi mais um a tentar emplacar a culpa dos torcedores. Com a manchete chamada “A verdade”, o periódico alegou que torcedores urinaram nos policiais, roubaram os mortos e bateram nos médicos. Nenhuma das alegações era verdade.
O jornal “se baseava” em informação de dentro da polícia local e demorou décadas para reconhecer seus erros na cobertura do caso. Até hoje, o diário é odiado em Liverpool.
Mas a culpa não foi dos torcedores
Depois de muitas disputas — e derrotas — na Justiça, os familiares das vítimas resolveram se reunir novamente em 2009, no ano do vigésimo aniversário da tragédia, e lutar contra as acusações que perduravam desde a década de 90. O grupo montou um painel independente e coletou provas para apresentar um novo caso. Foi lançada a campanha “Justice For The 96”, que teve inclusive a colaboração do Everton FC, rival da cidade.
Segundo o relatório das famílias, ficou claro que autoridades orquestraram uma narrativa para culpar os próprios torcedores pela tragédia. Eles, inclusive, alteraram evidências que culpavam a polícia e omitiram provas importantes, como imagens das câmeras do estádio. Documentos sigilosos envolveram na trama até a primeira-ministra da época, Margaret Thatcher, nome até hoje odiado na cidade.
Mais de 150 depoimentos foram alterados pelas autoridades. Além disso, segundo o relatório, 41 pessoas poderiam ter sido salvas, se a ajuda médica fosse mais efetiva e rápida.
Aliás, só em 2012 o governo britânico pediu desculpas pela tragédia. Três anos depois, o chefe de polícia David Duckenfield assumiu a culpa pela tragédia e pediu desculpas aos familiares das vítimas.
“Todos sabiam a verdade, os torcedores e a polícia sabiam da verdade, que nós abrimos os portões”, disse Duckenfield. Ele admitiu que sua decisão de abrir um portão sem catracas foi a causa direta da morte de 97 pessoas.
Em 2016, a Justiça inglesa finalizou as investigações e concluiu que houve crime de negligência dos responsáveis pela segurança. A conclusão verdadeira apareceu 27 anos depois do desastre.
Além de Duckenfield, outros cinco foram indiciados: Graham Henry Mackrell, diretor de segurança do Sheffield Wednesday, clube dono do estádio; Peter Metcalf, advogado que representou a Polícia nas primeiras investigações; e Donald Denton, Alan Foster e Norman Bettison, três policiais do condado de South Yorkshire.
Duckenfield acabou absolvido da acusação de homicídio em 2019, aos 75 anos de idade.
A 97ª vítima
Por muito tempo, se pediu justiça pelas 96 vítimas da tragédia de Hillsborough. Isso porque 95 pessoas morreram pisoteadas no dia 15 de abril de 1989, e a 96ª morreu quase um ano depois.
Mas o número ainda aumentou recentemente. No dia 27 de julho de 2021, morreu Andrew Devine, que sofreu danos cerebrais durante a tragédia e permaneceu em estado vegetativo por mais de 30 anos. Com isso, o número oficial saltou para 97 mortos.
Até hoje, o Liverpool conserva um memorial no entorno de Anfield que homenageia as pessoas que morreram em Hillsborough. O local é frequentemente enchido de flores e mensagens de torcedores locais, e também serve para que familiares façam tributos a fãs que morreram por outras razões nos últimos anos.
O episódio ainda é frequentemente relembrado pela torcida, que exibe um mosaico com o número 97 na Kop sempre que a tragédia faz aniversário, e em outros locais históricos da cidade, como na catedral anglicana de Liverpool e no museu da cidade. É a forma que a comunidade encontrou de manter viva a história, para que as pessoas não sejam esquecidas e para que os erros não sejam repetidos.