“We’re on the booze”: a cultura da bebida no futebol inglês

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“Win, draw or lose, we’re on the booze”. O lema surgiu nos anos 1960, no elenco do West Ham, mas de maneira alguma a proximidade com o álcool era uma exclusividade do time londrino. A bebida sempre andou lado a lado com o futebol inglês, seja na figura do jogador beberrão, dos torcedores portando seus pints ou até mesmo nos alicerces de fundação daquela equipe em específico.

Ora, o futebol em si foi oficializado na Inglaterra em um pub. Em 1863, no Freemason’s Tavern, 11 representantes dos clubes ingleses discutiram regras, fundaram a Federação Inglesa (Football Association) e, claro, beberam muita cerveja.

Porém, compreendo que para o espectador dos dias de hoje, com tudo que é sabido sobre os efeitos do álcool, é um pouco mais complicado entender tal correlação com o esporte, por sua intensidade, e também porque provavelmente alguns dos leitores desse texto já tentaram correr depois de tomar umas e outras e viram que atividade física e bebida não combinam. E não combinam mesmo.

Por isso, para a história descer melhor, é necessário um rápido contexto histórico. Criar um time de futebol e conseguir mantê-lo não era atividade para qualquer pessoa na Inglaterra do final do século XIX. A tarefa, muitas vezes, caía nas mãos de donos de pubs e cervejarias, homens com mais poder financeiro.

O Manchester United, por exemplo, se encaixa perfeitamente nesse cenário. Criado por trabalhadores em 1878, ainda como nome de Newton Heath, o time passou por dificuldades financeiras no início do século XX e acabou sendo salvo por um dono de cervejaria local de nome John Henry Davies. Bem-feitor, o empresário presidiu os Red Devils até a sua morte, em 1927.

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John Henry Davies (centro, de bigode e chapéu) e seu amado Manchester United campeão da FA Cup de 1909
Foto: Media Store House

Assim como o United, muitas outras equipes passaram por situações semelhantes. Cada uma com sua peculiaridade histórica aqui ou ali, mas sempre com um ponto em comum: win, draw or lose, we’re on the booze.

Comandantes e comandados rumo ao… bar

Com cada clube, e sua respectiva torcida, associada a um pub local, ou ponto de encontro frequente, era fácil: depois das partidas a turma se reunia e começavam as “sessions”.  E quando digo turma, jogadores, treinadores e diretores também estão inclusos.

Session é o termo cunhado para uma saída de atletas e/ou torcedores para beber. A palavra possuía tanto peso nos atos dos boleiros que chegou a marcar o ex- treinador da Inglaterra, Sven-Göran Eriksson.

O sueco, primeiro estrangeiro a assumir os Three Lions, não estava acostumado a ver tais hábitos e chegou a afirmar que session foi uma das primeiras palavras aprendidas por ele.

Por falar em treinadores, estes possuem muita culpa no cartório quando a conversa se trata de conivência relacionada a cultura da bebida dentro do futebol inglês. Em muitos casos, os próprios comandantes promoviam tal prática por parte de seus comandados. Sabe o “time que não bebe não ganha” brasileiro? Pois bem, era isso, só que pior. Bem pior.

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Pubs são marcas clássicas da cultura inglesa

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São várias as histórias, passando pelos mais gloriosos nomes. Por exemplo, Brian Clough, o maior treinador inglês que já viveu na opinião de quem vos escreve, era um ávido fã das tais sessions.

Certa feita, o Nottingham Forest de Clough, já campeão inglês e europeu, estava à beira de mais uma final, desta vez da Copa da Liga, diante do Southampton. Na véspera da partida, o técnico convocou todos os seus jogadores e fez com que bebessem até cair. Alguns precisaram ser carregados até seus quartos. A “tática”, contudo, vingou e os Foresters bateram os Saints por 3 a 2.

Outros comandantes, mais ponderados, e talvez menos confiantes que Clough, deixavam o grupo tocar o terror, mas desde que os resultados em campo viessem antes. Era o caso do antigo treinador da Inglaterra, Terry Venables. Foi pelas mãos de Venables que a seleção se preparou e atuou na Eurocopa de 1996.

Pois bem, retornando de amistosos preparatórios para a Euro pela Ásia, parte do grupo de jogadores resolveu continuar a bebedeira da noite anterior dentro do avião. Óbvio que deu muito errado. A session aérea gerou mais de 5 mil libras em prejuízo e muita dor de cabeça. Nos dois sentidos.

Também pudera, com um plantel estrelado por Tony Adams, Teddy Sheringham, Paul “Gazza” Gascoigne, Robbie Fowler, Steve McManaman e outros, era realmente difícil segurar o ímpeto… alcoólico.

Tal episódio criou a famosa comemoração de Gazza, apelidada de “cadeira do dentista” e fielmente replicada após seu golaço contra a Escócia, no torneio europeu.

Gazza e sua “cadeira do dentista” na Euro 96. Depois do gol que fez, ele poderia comemorar como quisesse
Foto: Getty

O outro lado da moeda

Rígido, disciplinador e vencedor. Bastante vencedor. Esse era Sir Alex Ferguson, lenda do futebol e ex-técnico do Manchester United. O escocês, que nunca foi dos maiores fãs do lema que dá nome a esse artigo, passou por vários problemas assim que assumiu os Red Devils, em 1986.

Seu predecessor, Ron Atkinson, era do tipo “me engana que eu gosto”. Ferguson, inclusive, criticou o modo como “Big Ron” geria o elenco do United à época. Em sua biografia, tal período foi intitulado de “bebendo para o fracasso”. Pesado e direto, mas ele tinha razão.

Paul McGrath, também em sua biografia, contou que Atkinson fazia vistas grossas para as inúmeras festas do elenco, desde que os jogadores atuassem bem nos 90 minutos. Sir Alex, de cara, mudou essa faceta.

Sir Alex no começo de sua trajetória no Manchester United

Com uma estrutura quase que colegial de disciplina, tipos como de McGrath não duraram por muito tempo. O defensor irlandês, inclusive, acabou vendido. Segundo Ferguson, por não conseguir se reabilitar fisicamente, já combalido pelos excessos da bebida.

Outra figura importante no combate aos excessos foi Arsène Wenger. O francês, que esteve à frente do Arsenal por 22 anos, foi revolucionário ao se atentar mais para a alimentação de seus jogadores, além do hábitos extracampo de seus atletas.

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Ainda se adaptando ao novo clube, Wenger não sabia o que lhe esperava. Meia do clube londrino na época, Ray Parlour, em entrevista para o canal Sportlobster TV, reviveu o começo da caminhada do técnico. “Eu sempre vou me lembrar dos primeiros anos de Wenger”, disse.

“Novos jogadores franceses tinham chegado (Vieira, Petit e Grimandi) e quando acabava o treino, nós (ingleses) íamos para os pubs, enquanto eles iam aos cafés para fumar. Vou sempre lembrar o momento em que Steve Bould (atual auxiliar, à época zagueiro) trouxe 35 pints para mim e quatro colegas.

Eu ficava lá pensando, ‘como vamos vencer a Liga? Nós aqui, bêbados, e eles lá fumando'. Acabou que conquistamos o double (dobradinha) em 97-98 (Premier League e FA Cup)”, contou animado.

Porém, Wenger sabia que se quisesse mais teria que segurar seus garotos. Paul Merson, conhecido apreciador da noite e que também estampa esse texto, acabou vendido antes mesmo do double.

Em 1999, dando outros moldes para o processo de estruturação do clube, chegaria em Highbury um certo Thierry de sobrenome Henry, o que fez o Arsenal alcançar um outro patamar.

Wenger e seus invencíveis. Um outro patamar para o clube londrino
Foto: Getty

Todavia, com a chegada dos anos 2000, a cultura da bebida no futebol foi perdendo suas forças. Contudo, o estrago já estava feito para muitos. Como Gascoigne, talvez o maior talento de sua geração que, pouco a pouco, viu sua dádiva se esvair em um porte físico cada vez mais enfraquecido e debilitado.

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No futebol praticado nos dias de hoje, cada vez mais físico, é completamente surreal que se pense em alguém virando vários shots antes de uma partida e já de uniforme (adivinhe quem praticou tal façanha? Claro, Gazza!), ou até mesmo saboreando um pint “inspirador” na beira do gramado. Simplesmente não há mais lugar para tal. Não no esporte de alto nível.

Além do fator campo, parte da imprensa especializada também aponta a entrada de muitos estrangeiros na Premier League como preponderante para a diminuição de drinques ingeridos pelos atletas.

Paul Merson e Ray Parlour: parceiros de bebida e amigos do futebol

Como bem observou Parlour, os interesses dos que vinham de fora eram outros. Advindos de várias culturas, tais jogadores não perpetuaram o ciclo alcoólico que foi tão forte por tanto tempo na Terra da Rainha.

Entretanto, escondido e franquinho, o hábito de beber em excesso ainda tenta persistir dentro do futebol inglês. Rio Ferdinand, John Terry, Andy Carroll, Ledley King, Joey Barton, são só alguns exemplos de atletas que passaram por problemas sérios há pouco tempo. Alguns conseguiram dar a volta por cima, através da sobriedade, outros nunca alcançaram aquilo que se era esperado.

Longe de mim querer aqui abolir o álcool em todo o território britânico, também adoro minha cervejinha, mas, quando tal hábito atrapalha não só o rendimento em campo do atleta, mas também sua vida pessoal, seja qual for a área de atuação dessa pessoa, está na hora de parar, refletir e o mais importante: procurar ajuda.

João Pedro Guedes
João Pedro Guedes

Jornalista. Apaixonado por esportes. Por aqui, falo de futebol inglês e sigo perseguindo boas histórias.