Violência? Caça a Bellingham? Ingleses apelam para explicar derrota para o Brasil e ignoram maior motivo

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Quando um treinador com apenas uma semana de trabalho consegue vencer o adversário que está no cargo há mais de sete anos, normal que a análise passe pela capacidade dos dois técnicos. E concordo com quase todas as críticas a Gareth Southgate, comandante da Inglaterra que não consegue tirar tudo do brilhante grupo de jogadores que tem em mãos. E, assim como boa parte da mídia brasileira, fiquei positivamente surpreendido com a organização do time de Dorival Júnior.

Para a imprensa inglesa, outros fatores foram decisivos para a primeira derrota em 21 jogos no lendário Wembley. Alguns culparam a ausência dos “insubstituíveis” Harry Kane e Bukayo Saka.

Engraçado que foram os mesmos que falaram o tempo todo que o English Team era melhor que o Brasil justamente pela enorme quantidade de bons jogadores.

Curioso também que eles parecem ignorar que Dorival Júnior tinha ainda mais desfalques (Alisson, Ederson, Marquinhos, Gabriel Magalhães, Neymar, Gabriel Martinelli, só pra citar alguns).

Outros, vejam só, preferiram enfatizar que o Brasil foi violento demais para um simples amistoso. No dia seguinte ao jogo, manchetes como “Brasil foi brutal com Bellingham” e “As faltas em Jude Bellingham enviam à Inglaterra um aviso para a Euro 2024” ganharam o noticiário.

E aqui vale dizer: nos 67 minutos em que ficou em campo, o astro do Real Madrid recebeu cinco faltas. Número alto para um amistoso, mas nada que justifique tamanha comoção.

Em um texto, logo no primeiro parágrafo, lia-se: “E assim veio o Brasil. Joga bonito? Não nessa noite. Ao invés disso, eles apresentaram a falta tática”.

As estatísticas mostram que o Brasil realmente foi mais faltoso: 19 contra 11 dos ingleses.

Mas e o lindo lançamento de Paquetá para Vinicius Junior, que acabou perdendo chance clara, também não vale destaque?

E o fato de o Brasil ter sido SEMPRE mais perigoso durante a partida, pode ser explicado apenas por causa das faltas? Claro que não.

A verdade é que esse time de Gareth Southgate não apresenta algo que faltou para quase todos os outros da Inglaterra.

Alma. Vontade. Garra.

E foi isso que sobrou para o Brasil, não o número de faltas. O “sangue e orgulho”, inclusive, foram tema das falas do capitão Danilo no vestiário, antes da partida. E o discurso para ter sido colocado em prática à risca.

— De fora, a sensação que dá é que isso aqui é uma seleção sem sangue, sem orgulho, sem brilho. P**ra! Não é possível que não mexeu com nenhum de vocês — assim Danilo começou o discurso pré-jogo. Assista abaixo:

No lado da seleção inglesa, foi impressionante ver em Wembley a transformação de alguns jogadores. O Declan Rice do West Ham e do Arsenal, cheio de personalidade e chefe do meio-campo, parece perder boa parte da intensidade e do vigor físico quando veste a camisa inglesa.

O Phil Foden elétrico e quase “imparável” do Manchester City vira um jogador meio apagado, previsível, às vezes até sonolento. E veja bem, não estou aqui criticando esses jogadores específicos. Isso acontece com quase todos. Parece que quando eles se juntam, perdem a força.

É muito difícil identificar o motivo. Arrisco dizer que o futebol de seleções não é tão atrativo e competitivo quanto o da Premier League, ou da Champions League, e isso, mesmo que sem querer, acaba afetando a motivação dos jogadores. Mas por que o mesmo não acontece com outras seleções europeias? Não sei dizer.

Já acompanhei diversas noites da seleção da Inglaterra em Wembley, em Eliminatórias para a Copa do Mundo, para a Euro, amistosos, ou até na última Eurocopa. Elas são, quase sempre, frias. E não estou falando do famoso clima gelado do Reino Unido.

Parece não haver emoção nem comoção, tanto em campo, quanto nas arquibancadas.

Walker Inglaterra e Brasil
Walker saindo machucado em Inglaterra e Brasil (Foto: Icon Sport)

O histórico da Inglaterra

O Beckham pulando para evitar o choque no duelo Brasil x Inglaterra na Copa do Mundo de 2002 é só um exemplo disso. Roberto Carlos veio no carrinho, Gilberto Silva roubou a bola, Ronaldinho Gaúcho puxou o contra-ataque, e Rivaldo empatou a partida complicadíssima das quartas-de-final.

No segundo tempo, com Ronaldinho Gaúcho expulso, um time cheio de caras bons como Rio Ferdinand, Sol Campbell, Ashley Cole, Paul Scholes, David Beckham e Michael Owen sequer incomodou o goleiro Marcos.

O Frank Lampard das Copas de 2006, 2010 e 2014 nunca chegou nem perto do meia do Chelsea, um dos melhores do mundo por pelo menos uma década. O mesmo vale para Steven Gerrard e Wayne Rooney nos mesmos três mundiais.

Sim, a Inglaterra passou três Copas com Gerrard, Lampard e Rooney, entre outros tantos grandes jogadores, e não conseguiu sequer chegar a uma semifinal! Caiu nas quartas em 2006, nas oitavas em 2010, e na fase de grupos em 2014!

É por isso que sou cauteloso ao criticar Gareth Southgate.

Lampard e Gerrard em jogo da seleção da Inglaterra
Lampard e Gerrard em jogo da seleção da Inglaterra – IconSport

Acho sim que ele deveria ter deixado o comando da Inglaterra depois da última Copa do Mundo, mas valorizo muito o que fez lá no início do trabalho. Barrou os medalhões sem vontade e fez uma renovação radical na seleção. Por um período, vi sim brilho nos olhos e vontade na maioria dos atletas. Aliás, no Mundial do Catar, uma Inglaterra extremamente dedicada jogou melhor que a poderosíssima França.

Foi eliminada, mas vontade não faltou. Parece que o English Team precisa de algo como a “tempestade perfeita” para realmente se motivar: o maior torneio de todos, um dos maiores rivais de todos, ótimos jogadores e um técnico que, às vezes, consegue fazê-los entregar tudo que podem. É pouco.

Se Declan Rice, Jude Bellingham, Phil Foden, Harry Kane e companhia não comerem grama, vão ser lembrados como mais uma geração brilhante que não ganhou nada.

Renato Senise
Renato Senise

Renato Senise é correspondente em Londres desde 2016. São mais de cinco temporadas cobrindo Premier League e Champions League. No currículo, duas Copas do Mundo “in loco”, além de entrevistas com nomes como Pep Guardiola, José Mourinho, Juergen Klopp, Marcelo Bielsa, Neymar, Kevin De Bruyne e Harry Kane.