Em português: “Sempre as vítimas, nunca é culpa de vocês”. Essa é a música que alguns torcedores do Manchester United (felizmente, a minoria) insiste em cantar quando vão a uma partida contra o Liverpool.
No jogo do primeiro turno da Premier League, realizado no dia 17 de dezembro, três homens de 20, 21 e 25 anos foram presos antes mesmo de entrarem em Anfield. Estavam entoando a famigerada canção. Durante o jogo, outro torcedor foi expulso do estádio. Antes, os dois treinadores, Erik Ten Hag e Jurgen Klopp, haviam pedido para uma torcida respeitar o sofrimento da outra. Nem todos ouviram…
O cenário se repetiu no mês passado, durante a épica vitória do Manchester United por 4 a 3, na prorrogação, pelas quartas de final da FA Cup. Vídeos mostrando torcedores do United cantando essa música foram divulgados nas redes sociais. Um homem foi preso, e o clube mais uma vez emitiu um comunicado repudiando esse comportamento.
A música faz referência a duas tragédias envolvendo a torcida do Liverpool.
A primeira, no estádio de Heysel, em Bruxelas, na Bélgica. Na final da Copa Europeia, contra a Juventus, em 1985, torcedores dos dois clubes se confrontaram várias vezes, e em diversos lugares. Uma hora antes da partida, torcedores do Liverpool conseguiram chegar no setor destinado à torcida da Juventus. Pressionadas contra um muro, pessoas acabaram sendo esmagadas. A parede cedeu. Ao todo, 39 pessoas morreram: 32 italianos, quatro belgas, dois franceses e um norte-irlandês.
As autoridades se apressaram para culpar os torcedores do Liverpool.
Todos os clubes ingleses foram banidos das competições europeias. Depois de cinco meses de julgamento em Bruxelas, 14 fãs do Liverpool foram sentenciados a três anos de prisão. Acabaram cumprindo apenas um.
Com o tempo, a justiça foi sendo feita. Ficaram comprovadas enormes falhas de organização e estrutura. Albert Roosens, o então secretário-geral da Federação Belga, foi condenado a seis meses de prisão por “negligência imperdoável” por ter vendido mais ingressos do que o estádio comportava. O capitão Johan Mahieu, chefe da polícia naquele dia, sofreu a mesma punição.
O Desastre de Hillsborough foi ainda mais vergonhoso. Polícia, mídia e até o governo inglês culparam os fãs pela morte de 96 pessoas esmagadas e sufocadas em 1989, no superlotado e ultrapassado estádio do Sheffield Wednesday (a vítima 97 morreu apenas em 2021, depois de mais de 32 anos vivendo em estado vegetativo por causa de danos cerebrais).
Os torcedores, familiares dos mortos e a cidade inteira travaram uma dura batalha na Justiça para que as vítimas fossem inocentadas. Depois de duas décadas, conseguiram vencer o caso. Claro, isso não trouxe as vítimas de volta, mas restabelecer a honra dos que se foram passou a ser o objetivo de vida de muitos que ficaram.
O assunto é tão delicado que, do lado de fora de Anfield, existe um belíssimo memorial com o nome dos 97 mortos. Antes de todos os jogos, uma quantidade enorme de gente vai pra lá deixar flores, fotos, cartas e todo tipo de homenagem contendo palavras como “pai”, “mãe”, “filho amado que se foi”, “saudade”. É emocionante.
É realmente incompreensível como uma pessoa pode tirar sarro de uma tragedia como essa, e todo o sofrimento que ela ainda causa em tanta gente. E não são só as músicas.
Em junho do ano passado, um infeliz “torcedor” do Manchester United foi preso por usar uma camisa com o número 97 (número de mortos em Hillsborough) e os dizeres “Not Enough”, ou “não foi o suficiente”. Detalhe: o jogo era contra o Newcastle! O clube agiu rápido e o baniu pra sempre de frequentar o Old Trafford.
A torcida do Liverpool também tem seus idiotas. Não é tão raro ouvir um ou outro gritando “Munique” para os rivais. Ou, uma música ainda pior: “Who’s that dying on the runway? Who’s that dying in the snow? It’s Matt Busby and his boys making such a fucking noise cos they can’t get their aeroplane to go”. Ou, em português: “Quem está morrendo na pista? Quem está morrendo na neve? É Matt Busby e seus meninos fazendo tanto barulho porque não conseguem fazer o avião partir”.
Alusão ao desastre de 6 de fevereiro de 1958. A delegação dos Red Devils voltava de Belgrado, na Sérvia, onde empataram com o Estrela Vermelha por 3 a 3 e garantiram classificação para a semifinal da Copa dos Campeões. Tiveram que fazer uma parada em Munique para reabastecer.
As péssimas condições do aeroporto, aliado à neve e ao péssimo tempo, fizeram o avião não ganhar velocidade e cair logo depois da decolagem. Vinte e três pessoas morreram, entre elas, oito jogadores. Outros dois atletas tiveram que encerrar a carreira por causa dos ferimentos. Matt Busby, um dos maiores treinadores da história do Manchester United, estava no voo. Sobreviveu, e era tão bom que em pouco tempo conseguiu reconstruir a equipe.
A resposta dos torcedores do United para essa canção? “Who’s that choking on their vomit? Who’s that turning fucking blue? It’s a scouser and his mate crushed behind the hillsboro gates and they won’t be singing Munich anymore”. Traduzindo: “Quem está engasgando com o vômito? Quem está ficando azul? É um scouser (termo que se refere a quem nasce/vive em Liverpool) e seu companheiro esmagado atrás dos portões de Hillsborough. E eles não vão mais cantar em Munique”.
Para acabar com essas barbaridades, Manchester United e Liverpool se juntaram, já de olho no próximo confronto, que acontece no dia 7 de abril. Nessa semana, um programa educacional foi realizado para conscientizar alunos, de diversas idades e diferentes instituições, sobre o impacto que as tragédias tiveram não só sobre os times e os torcedores, mas também nas cidades. Os jovens receberam uma aula do que aconteceu, os culpados, e como milhares de pessoas ainda hoje sofrem.
Um ex-jogador de cada clube participou da sessão: Phil Thompson do Liverpool e Wes Brown do Manchester United. Juntos, eles ganharam 12 Campeonatos Ingleses e cinco Copas continentais.
As autoridades afirmam que os casos de “tragedy chanting”, ou “músicas de tragédia”, são bem mais comuns entre os jovens, por isso a tática de falar com alunos.
Na próxima semana, mais ações serão realizadas entre os dois clubes. É provável que, mais uma vez, os técnicos peçam para que os cantos não sejam entoados. Vai dar certo? Impossível saber. Mas se programas como esse, aliados a prisões e banimentos continuarem acontecendo, a probabilidade de idiotas cantarem essas músicas nas arquibancadas será cada vez menor.