O israelense Manor Solomon assinou contrato de cinco anos com o Tottenham no início da temporada. Na apresentação, disse: “O clube tem um relacionamento importante com a comunidade judaica. Por causa disso, há muitos torcedores dos Spurs em Israel. Tenho certeza de que os veremos no nosso estádio”.
Dito e feito. Nunca se viu tantas bandeiras e camisas de Israel nas arquibancadas (alguns já até começaram a comparar com o “fenômeno” Son e os milhares de sul-coreanos que vão a todas as partidas).
Daniel Levy, atual presidente do Tottenham, é judeu. Aliás, desde 1983, todos que estiveram no cargo eram empresários judeus que, antes de virarem presidentes, já torciam pelo clube.
Como começou a relação entre Tottenham e o judaísmo
O Tottenham não foi fundado por judeus, mas a relação começou bem cedo. O clube foi criado em 1882, época em que judeus do leste europeu, fugindo dos progroms do Império Russo, começaram a chegar na Grã-Bretanha. Com a intensificação da perseguição, o movimento ganhou ainda mais força a partir de 1905. Muitos se estabeleceram em Tottenham Hale. Dentre os motivos, está que a área oferecia na época uma boa rede de transporte e ótimas perspectivas de emprego. Lá, já existia um número considerável de empresas e fábricas de propriedade judaica.
Logo, formou-se uma classe trabalhadora de judeus na região. Muita gente que ainda não se sentia em casa, tinha abandonado o antigo lar, estava longe da família e amigos. E não demorou para essas pessoas passarem a frequentar o estádio. Lá, eram acolhidos. Voltaram a ter a sensação de pertencimento, de fazer parte de uma comunidade.
O White Hart Lane virou o lugar para se divertir, reunir, conversar, esquecer os problemas. E torcer. A geração seguinte, que nasceu ali e realmente tinha Tottenham Hale como lar, fez a ligação com o clube crescer ainda mais.
Na década de 30, os Spurs eram, de longe, o time mais popular dentro da comunidade na época. Mesmo assim, em dezembro de 1935, o White Hart Lane foi escolhido pela Football Association como palco para uma partida entre Inglaterra e Alemanha. Os judeus receberam a notícia como um insulto. Organizaram protestos.
Mesmo assim, no dia 4 de dezembro de 1935, a suástica voou sobre White Hart Lane. A seleção alemã fez uma saudação nazista para a plateia antes do jogo. Um torcedor inglês subiu em um uma das arquibancadas e arrancou a bandeira alemã. A Inglaterra acabou ganhando por 3 a 0.
Campanha contra o antissemitismo
No ano passado, a diretoria do clube começou uma campanha para conscientizar as pessoas de que o termo “Yid” é ofensivo aos judeus. Isso porque, no final da década de 70, a torcida do Tottenham passou a se autointitular como “Yid Army”, ou o “Exército Yid”. Simplesmente porque estavam cansados de ser chamados dessa maneira pela pequena, mas barulhenta parte dos rivais que achavam de bom tom provocar, xingar e desrespeitar os fãs do Tottenham só por causa dessa relação com os judeus.
Hoje, estima-se que apenas 3% da torcida do Tottenham pratique o judaísmo. Em recente pesquisa, 94% dos que frequentam o estádio disse entender que o termo “Yid” pode ser preconceituoso. Mas nas arquibancadas, uma das músicas mais cantadas (e na minha opinião, uma das mais legais), diz o seguinte:
— They've tried to stop us and look what it did, / Cos the thing I love most is being a Yid, / Being a Yid, / Being a Yid, / The thing I love most is being a Yid.
Em tradução para o português:
— Eles tentaram nos parar e veja o que aconteceu, porque o que mais amo é ser Yid. Sendo um Yid, sendo um Yid, a coisa que mais amo é ser Yid.
Muitos têm orgulho de mostrar que o clube acolheu um grupo de pessoas que estavam sendo perseguidas. E que a torcida, cansada de ver que as autoridades não faziam nada para punir os preconceituosos, resolveu incorporar o antigo xingamento. Mas é verdade também que muitos nem conhecem a história, ou pouco se interessam pelo assunto.
Wishing all our Jewish fans a happy and sweet new year 🍯#RoshHashanah pic.twitter.com/qPIrGY5APC
— Tottenham Hotspur (@SpursOfficial) September 15, 2023
O contexto que envolve Israel e Palestina
Escrevo esse texto agora porque recebi duas mensagens muito parecidas nas redes sociais. Gente perguntado se eu, como torcedor do Tottenham, apoio Israel e a maneira com que a questão palestina é tratada.
Para essas perguntas, eu respondo: tenho certeza de que o cerco à Faixa de Gaza é umas das maiores barbaridades do mundo atual. Fico desesperado com o fato de que dois milhões de pessoas vivem como prisioneiras em seu próprio país. Assim como tenho vontade de chorar quando penso no holocausto e em como os judeus sofreram, e continuam sofrendo, há séculos.
Respondo também que acho muito bonito o Tottenham ter ligação estreita com uma comunidade que era perseguida, maltratada, morta, e encontrou no clube uma maneira de sorrir.
Para encerrar, uma história que ilustra bem o terrível momento em que vivemos. No último domingo, trabalhei no jogo entre Arsenal e Manchester City. Lá, encontrei um israelense, correspondente da TV de seu país que transmite a Premier League. Já são pelo menos quatro anos que nos vemos, conversamos, acompanhamos os jogos juntos. No domingo, me senti na obrigação de dizer algo: “Espero que esteja tudo bem com sua família, imagino que momento difícil vocês estão vivendo”. Ele agradeceu, e chorando, contou que a família está bem, mas que dois amigos haviam morrido.
Na mesma sala de imprensa, a poucos metros, estava outro repórter, com um cachecol com dizeres árabes e a bandeira da Palestina. Um clima pesado dominou o ambiente durante toda a tarde. Os dois não se olharam, não se cruzaram, não se falaram. E o que poderiam dizer um para o outro? É apenas triste constatar que a humanidade chegou a esse ponto.