Há oito anos atrás, se alguém dissesse que o próximo grande time de Pep Guardiola teria quatro zagueiros de ofício entre os 11 titulares, seria atingido por olhares estranhos. O fato é que a escalação de Manuel Akanji, Nathan Aké, Rúben Dias e John Stones juntos foi um dos pontos de virada do Manchester City na atual temporada. O título do Campeonato Inglês e da FA Cup passam por essa mudança.
Bayern de Munique sem zagueiros
Em 2015, à frente do Bayern de Munique, Guardiola chocou a comunidade do futebol ao escalar um time inteiro sem zagueiros de ofício – e ele já flertava com a ideia há ainda mais tempo. O jogo que ficou marcado foi a vitória por 3 a 0 sobre o Bayer Leverkusen, um dos concorrentes ao título alemão.
Na ocasião, o treinador escalou Phillipp Lahm, um lateral, Xabi Alonso, um volante construtor, e Alaba, outro lateral, para formar a linha de defesa da equipe bávara. E o artifício se repetiu algumas vezes naquela temporada.
Até então, aquele havia sido um dos maiores momentos de ousadia e inventividade de Guardiola como treinador. Esse posto tem sido repensado em 2023 com John Stones. Ele é o 10º jogador mais utilizado pelo catalão na carreira: foram 228 jogos até o momento e, com eles, a reinvenção da posição de zagueiro.
Nem mesmo seu mestre, Johan Cruyff, um dos grandes expoentes da inovação na bola, esperaria a reviravolta do seu discípulo.
De apaixonado por meias – às vezes escalando até sete deles em um jogo – para montar um time encantador com quatro zagueiros de ofício.
Zagueiros com Guardiola: um início café com leite
Em sua primeira temporada no time principal do Barcelona, Guardiola tinha uma linha de quatro defensores majoritariamente composta por Daniel Alves, Piqué, Puyol e Abidal, com Yaya Touré ou Seydou Keita como primeiro volante. Em uma era do futebol em que a pressão alta e organizada que vemos hoje não era tão comum, a construção do Barça era confortável.
Piqué sempre foi confortável com a bola, principalmente em conduções, e Puyol – mesmo com sua fama de “quebrador” – tinha suas valências. A introdução de Busquets como titular absoluto na temporada seguinte deu mais segurança para o time manter a bola e o volante geralmente descia entre os zagueiros para criar uma saída de três quando o time era pressionado.
Barcelona no 3-4-3: quanto mais meias, melhor
As coisas mudaram com mais afinco em seu último ano no clube catalão. Em um 3-4-3 cruyffista, formação em que jogou como volante, Guardiola usava pela primeira vez um esquema de três defensores efetivos, mas Busquets era o zagueiro pelo meio. Foi nesse momento, em 2011/12, que sua paixão exacerbada pelo meio-campo atingiu os maiores níveis até então.
O Barcelona precisou mudar de formação porque se tornou extremamente dominante com a bola – por conta disso, houve a necessidade por mudanças de padrões. O time terminou LaLiga com média assustadora de 69% de posse de bola e tinha mais segurança com três atrás, mesmo sem perder a qualidade na construção, e podia colocar mais meias em campo.
Guardiola escalava seu 3-4-3 com dois meio-campistas na zaga (Mascherano e Busquets eram volantes de origem), Keita, Xavi, Iniesta e Fabregas no meio, além de Messi como falso nove. Também não era incomum ver Thiago na ponta-esquerda, totalizando até oito jogadores efetivamente de meio no time titular.
“Radicalização” no Bayern
Lesões no Bayern obrigaram Guardiola a repensar. Na frente, nunca conseguiu ter Robben e Ribery saudáveis juntos de maneira constante. Testou Ribery, Götze e Müller como falsos-noves, mas acabou recorrendo a Mandzukic e, depois, Lewandowski. A situação foi mais radical na defesa.
Dante, Benatia e Boateng eram os zagueiros que alternavam a titularidade do Bayern, mas em diversos momentos o treinador teve que levar a campo um time em 3-4-3 com apenas um zagueiro. A construção passou a mudar em relação aos tempos de Barcelona – antes com laterais que apoiavam pelos flancos, Lahm e Alaba se tornaram meias.
Isso gerava duas situações. Contra times que pressionavam com um atacante, os dois laterais se juntavam ao volante, formando uma saída em 2-3. Quando o adversário defendia com dois atacantes, Alaba descia para a linha dos zagueiros e Lahm ficava ao lado do volante, formando um 3-2. O objetivo era sempre o mesmo: criar superioridade numérica para progredir. No entanto, a fisicalidade alemã fez Pep pensar nesse movimento como uma arma defensiva.
Na Espanha, por conta de uma escola de jogo que vinha se estabelecendo, os times tendiam a construir com passes curtos quando perdiam a bola, dando mais tempo para o Barcelona se ajustar para pressionar ou reagrupar. Na Bundesliga, o futebol era geralmente rápido e vertical. Com isso, jogando com laterais avançados nas pontas, o time sempre teria problemas no contra-ataque. Os laterais por dentro inibiam essa questão e também geravam superioridade numérica defensiva.
As lesões, no entanto, obrigaram Guardiola ao extremo. Muitas vezes, o 3-4-3 era formado por uma defesa com Rafinha, Javi Martínez e Alaba – nenhum zagueiro de ofício. Isso quando Xabi Alonso não atuava como um “quarterback” no meio da defesa, e até mesmo Kimmich – que já foi lateral antes de se tornar um dos melhores meias do do mundo – começou sua passagem no Bayern de Guardiola como zagueiro.
Esse foi o extremo do amor ao meio: um time com literalmente nenhum zagueiro de origem, laterais se tornando meias e até mesmo Lewandowski, um 9 tradicional, participando do jogo longe da área.
De uma final de Champions League com Yaya Touré na primeira linha em 2009, passando pela ausência de zagueiros na Alemanha, como Guardiola acabou usando uma defesa com John Stones, Akanji, Rúben Dias e Aké em uma semifinal de Champions League justamente contra o Bayern?
O Manchester City
Pep chega a um City em declínio: se classificou para a Champions League na última rodada da temporada 2015/16, precisando do saldo de gols, e era o terceiro time mais velho da Premier League. No time titular, apenas Sterling (21) tinha menos de 25 anos. Além da contratação de Gündogan, outros dois reforços imediatos causariam impacto na tática da equipe: Zinchenko e Stones.
Claudio Bravo bancou o então ídolo Joe Hart por ser melhor com a bola, mas sem um zagueiro canhoto e com Clichy e Sagna ou Zabaleta como laterais, a primeira fase de construção não era a ideal. As mudanças começam quando Stones perde o lugar entre os titulares para acomodar o então lateral ofensivo Kolarov na zaga, para ter mais opções de passe com um canhoto no setor.
O fracasso na primeira temporada levou a um mercado muito específico: Laporte (zagueiro canhoto), Danilo, Kyle Walker e Mendy como laterais multifacetados e Ederson como um exímio goleiro com os pés. A temporada 2017/18, que acabou com 100 pontos, viu Walker deixar de ser um lateral de linha de fundo e ficar entre os zagueiros e Fabian Delph, volante de origem, se tornar um lateral invertido, que dividia o meio com Fernandinho. Nesse esquema, Stones era o zagueiro central de uma saída em 3-2.
O efeito John Stones
Guardiola levou um choque quando, no seu ano sabático, viu o Barcelona – na mesma estrutura do seu, com jogadores franzinos e de baixa estatura – ser amassado pela fisicalidade do Bayern. Seu tempo na Alemanha o fez repensar sobre o quão físico se deve ser para vencer. E isso ilustra o City de 2022/23.
Além de Haaland, que tem um protótipo raro com uma mistura de velocidade, altura, força e precisão, Pep passou a preferir cada vez mais jogadores “físicos”. Walker, por exemplo, é um touro incansável, mas se tornou um zagueiro “contido” ainda assim. Rodri, um “Busquets com mais vigor físico”, foi zagueiro na Copa do Mundo do Catar.
Sua fixação em ter a bola também não é mais a mesma. Se antes seus times “matariam” os jogos ao ficar os 90 minutos com a bola, impedindo o adversário de a pegar, agora o City é confortável em dar a posse ao adversário e aguentar a pressão – porque sabe fazê-lo. É o que aconteceu contra o Arsenal, na briga direta pelo título da Premier League, e nas quartas de final da Champions, contra o Bayern.
Stones, no entanto, fez o caminho inverso. Saiu da região viril para se tornar um volante pensador e que segue à risca os conceitos de Jogo de Posição: busca vantagem numérica ao se posicionar à frente da zaga; encontra o homem-livre com facilidade com passes e tem claro entendimento de onde está seu marcador, seu companheiro e o espaço disponível para progredir a bola.
E o fato é que Stones não é um volante. Ele é um zagueiro que troca de posição ao longo do jogo – chegar em um lugar é diferente de estar lá. Saindo da zaga, cria todo um efeito dominó que obriga adversários a se adaptarem a sua mudança de posicionamento e, consequentemente, abre espaços na defesa.
No Everton, antes de chegar ao City ele já vivia duas temporadas como um dos melhores zagueiros da Premier League em termos de passes (2º e 4º em precisão, respectivamente).
A evolução para Stones veio “tarde”, aos 29 anos, mas parece completar um ciclo para Guardiola: de nenhum zagueiro para quatro – e, se quisermos forçar, cinco – no mesmo time. Ao mesmo tempo, Pep exalta e mata a função que exercia em campo: o deep-lying playmaker, o regista, o meio-campista franzino e lento que joga recuado e arma o time. Hoje, esse jogador é um zagueiro alto e forte.