O uso de células-tronco na recuperação de lesões de jogadores de futebol tem sido uma prática cada vez mais frequente na medicina esportiva. Recentemente, atletas de ponta da Premier League, como Emerson Royal e Richarlison, do Tottenham, utilizaram esse tratamento para se recuperar mais rapidamente e voltar a jogar.
A PL Brasil conversou com especialistas no assunto para entender como a prática vem sendo utilizada nos jogadores de futebol e saber os detalhes da ação das células-tronco no corpo humano.
O que são as células-tronco?
Antes de saber como esse tipo de célula tem ajudado os atletas, vale entender o que exatamente elas são.
As células-tronco estão presentes em diferentes partes do corpo. Em termos práticos, elas são capazes de recompor tecidos danificados e, assim, auxiliar no tratamento de certos tipos de problemas de saúde, como alguns tumores, Parkinson, Alzheimer e doenças degenerativas e cardíacas.
Existem dois tipos de células-tronco, que se diferenciam pelo local de onde são retiradas e a idade do doador:
- As embrionárias podem ser extraídas do sangue do cordão umbilical ou da placenta após o nascimento de um bebê, de fetos perdidos ou abortados a partir de 8 semanas ou de embriões não utilizados durante uma fertilização in-vitro.
- As adultas são retiradas do organismo formado, provenientes do sangue ou da medula óssea de crianças e adultos. Elas podem vir da própria pessoa que irá receber a aplicação ou serem doadas.
No Brasil, temos desde 2001 o Banco de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário (BSCUP), o primeiro do país e inaugurado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca). E, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), hoje existem 32 unidades desse tipo de banco e 67 de células-tronco provenientes de medula óssea e sangue.
Como elas são extraídas e aplicadas nos atletas?
As células-tronco podem ser retiradas do sangue como são feitos os exames comuns de laboratório ou extraídas direto da medula. No caso dos atletas, elas são injetadas exatamente onde está a lesão, com a ajuda do ultrassom.
A terapia pode ser utilizada para recuperação tanto de homens quanto mulheres.
— A utilização de células-tronco pode ser obtida por diversas maneiras. A partir do momento em que a gente tem essa coleta do próprio paciente, esse método utiliza essas células para tentar promover o processo de reparo de tecido e uma melhor condição no processo de recuperação dos atletas — explica Rodrigo Lasmar, médico do Atlético-MG e da seleção brasileira.
Luiz Felipe Carvalho, ortopedista especialista em coluna vertebral e medicina regenerativa, explica porque não há risco de efeitos colaterais nos casos em que a terapia é indicada.
— Quando usa-se uma célula sua em você mesmo, o seu organismo não tem como reconhecer aquilo como um corpo estranho. Quando utiliza-se célula do cordão umbilical, é uma célula descontaminada, que não tem defesa, então o corpo também não reconhece como corpo estranho. Ela é uma célula já preparada para isso — informa o especialista.
Aceleração da recuperação e diminuição da dor: os benefício da terapia de células-tronco
Rodrigo Lasmar explica que esse é um método que possibilita acelerar e melhorar o processo de recuperação dos lesionados em algumas condições específicas. No entanto, ainda que o uso das células-tronco consiga evoluir a recuperação de forma mais rápida, não é possível estipular o tempo exato.
— Não existe essa conta. E é muito importante a gente colocar que isso não é para qualquer lesão ou qualquer paciente. Existem lesões de ligamento que são de tratamento cirúrgico, outras que podem ser tratadas sem a cirurgia, com medicina regenerativa, da qual as células-tronco fazem parte — analisa o médico da Seleção.
As lesões ortopédicas são muito variadas e é impossível afirmar quando seria indicado o uso de células-tronco, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. Não há um protocolo que indique esse procedimento para tipos específicos de lesão.
De maneira geral, o tratamento é utilizado em algumas lesões de cartilagem, ósseas, de tendão e de ligamento, dependendo das características da contusão.
O ideal é que se procure um especialista na área com conhecimento e domínio da prática para indicar quando essa terapia pode ser benéfica para o paciente, a partir de uma boa avaliação prévia.
A recuperação em si é a mesma de uma cirurgia, em relação a necessidade de repouso e fisioterapia. A grande diferença é a diminuição da dor e do tempo para a volta aos gramados.
É importante frisar que essa é apenas mais uma ferramenta que os médicos têm à disposição para que os atletas sejam recuperados de forma cada vez mais rápida e com menos “agressão”, quando possível. Porém, ainda que seja necessária uma cirurgia, a terapêutica celular auxilia no processo de cicatrização.
Quando as células-tronco começaram a ser usadas no esporte?
Já faz um bom tempo que células-tronco são usadas no tratamento de atletas de ponta — não apenas no futebol. Carvalho afirma que é um procedimento mais utilizado na Europa porque foi nesse continente que começou a ser realizado.
Em 40 anos de medicina regenerativa, os primeiros estudos sobre uso de células-tronco começaram a ser realizados em cartilagens de joelhos há cerca de 15 anos. Atualmente, é uma terapia também utilizada para ombro, coluna, tornozelo e outras articulações.
O primeiro grande caso envolvendo atletas brasileiros foi com o da ex-ginasta Laís Souza, que sofreu um acidente de carro em abril de 2014 ao se chocar contra uma árvore, o que ocasionou uma lesão grave na coluna, afetando a medula espinhal. A consequência mais grave da lesão foi a perda de movimentos de braços e pernas.
Ela passou por um tratamento experimental com células-tronco. Foram três aplicações, que segundo ela, ajudaram a estabilizar a lesão. Apesar de ser um processo demorado, Laís apresenta sinais de evolução desde então.
No futebol, são inúmeros jogadores que utilizaram células-tronco em tratamentos de lesão:
- Em 2016, Cristiano Ronaldo sofreu uma ruptura muscular na coxa direita e utilizou células-tronco para poder jogar a volta das semifinais da Champions League, contra o Manchester City.
- Em 2019, a lesão no quinto metatarso direito de Neymar foi curada usando células-tronco.
- Em 2020, Rodrigo Dourado recorreu ao tratamento para acelerar a cicatrização do edema ósseo no joelho esquerdo e retornar aos gramados para a disputa do Campeonato Gaúcho.
- Em 2021, Sergio Agüero realizou um tratamento a partir de células-tronco para regenerar a cartilagem dos joelhos e tentar retomar sua carreira no Barcelona.
- Em 2022, Ferreira fez tratamento com células-tronco para acelerar a recuperação de dores musculares na coxa direita e poder voltar a jogar pelo Grêmio.
Richarlison e Royal: conheça o especialista que tratou a lesão dos brasileiros
Mais recentemente, Emerson Royal e Richarlison fizeram uso de células-tronco para o tratamento de lesões. No começo do ano, o lateral sofria com dores no tendão patelar (ligamento do joelho importante para a movimentação da articulação). Já o atacante passou por uma contusão no joelho em março e uma lesão na panturrilha em maio.
— Quando o doutor foi fazer a aplicação da célula em mim, eu não conseguia dar um passe, não tinha força no adutor, doía muito. Depois de sete dias estava doendo bastante ainda, não conseguia fazer muita coisa. Porém, a partir disso, em 15 dias eu já não sentia mais nada de dor, zero. E parece mentira. Eu conto para os outros e acham que é exagero. E depois a gente fez a segunda aplicação só para deixar o tendão totalmente recuperado, mas já não sentia nenhuma dor — relata Emerson Royal.
Quem fez o tratamento de ambos foi justamente Luiz Felipe Carvalho, que já aplicou células-tronco em cerca de 600 atletas, entre jogadores de base e profissionais. No tênis profissional, ele fez a terapia em Juan Martín Del Potro, Pablo Cuevas e João Menezes.
Na entrevista, o especialista revelou que conheceu o tratamento de células-tronco em um congresso em Viena, na Áustria, e passou a estudar o método, conhecendo os locais ele era utilizado.
— Minha primeira escola foi em Campinas, onde tinha um centro de formação. A segunda foi nos Estados Unidos, em Boca Ratón. Minha terceira escola foi na Espanha, onde eu pude aplicar. Fiz um compilado dessas três escolas e hoje validei o meu método. Fiz uma formação muito profunda, de cinco anos — conta Carvalho.
Ele estima que o tempo de recuperação de uma lesão diminui de 50% a 70% com a utilização de células-tronco.
As questões éticas em torno das células-tronco
Toda vez que um médico aplica a terapia em um atleta profissional, o clube precisa ter ciência. Carvalho já teve clubes do exterior que autorizaram, como Tottenham e Shakhtar Donetsk. Na América do Sul, foi o caso de Chapecoense, Grêmio e Nacional, do Uruguai.
Isso porque, como o próprio Carvalho relata, cada país tem um entendimento e uma legislação específica, principalmente por questões éticas relacionadas ao uso das células-tronco embrionárias. No caso do procedimento feito a partir da fertilização in-vitro, as células são retiradas a partir da destruição de um embrião, o que é considerado um ato criminoso por muitas pessoas.
Ele conta que, no Brasil, a terapia nos atletas é vista das mesma forma que os enxertos usados pelos cirurgiões plásticos.
— É a mesma coisa de quando o cirurgião plástico coleta gordura do abdômen e coloca no glúteo. A gente coleta uma fração de enxerto da medula óssea e coloca no joelho, quadril, ombro, no tendão e por aí vai — diz Carvalho.
Em todos os continentes, há pelo menos um país que faz pesquisas com células-tronco e tem legislação específica que regulamenta o uso desse tipo de célula. Entre os principais estão Finlândia, Grécia, Suíça, Holanda, Japão, Canadá, Austrália, Coreia do Sul, Cingapura, China, Rússia, África do Sul, Estados Unidos, México, Reino Unido e Israel.
O Brasil se tornou o primeiro país da América Latina a aderir a pesquisas com células-tronco, após a liberação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2008.
— Importante entender que países do primeiro mundo têm a cabeça mais aberta para esse tratamento, porque têm mais estudo e conhecimento. É muito bem visto na Europa e nos Estados Unidos — continua o ortopedista.
Futuro do tratamento com células-tronco
Existe a expectativa de um aumento das indicações do uso de células-tronco a partir do avanço das pesquisas com o passar do tempo e do acompanhamento dos resultados pelos médicos.
— O importante é que os pacientes procurem centros de referência. As universidades do Brasil têm setores de desenvolvimento dessas tecnologias, de aperfeiçoamento e de treinamento. São onde as pesquisas são realizadas e, à medida que vamos tendo resultado nesses estudos, isso vai sendo trazido para a prática médica — frisa Lasmar.
Lasmar esteve à frente de um tratamento com células-tronco recentemente. Rubens, meia do Atlético-MG, sofreu uma ruptura do ligamento colateral medial e uma lesão parcial do ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo.
Rubens está há dois meses longe dos gramados e os torcedores do Atlético-MG estão ansiosos para o retorno do jogador ainda em julho. O departamento médico do Galo utilizou as células-tronco para tentar uma recuperação sem intervenção cirúrgica. De acordo com Lasmar, se fosse feita uma cirurgia, ele ficaria sem jogar por cerca de nove meses.
— Até o momento, ele vem evoluindo muito bem, ainda não voltou aos treinos, está dentro de um processo de recuperação esperado. Ele está tendo uma oportunidade de voltar antes desse período com uma técnica menos invasiva — conta Lasmar.