Se no Brasileirão atualmente há 11 estrangeiros, na Premier League esse número já acostumou a ser esmagador ao ponto de um treinador local nunca ter conquistado o título
No momento em que escrevo este texto, o Campeonato Brasileiro tem 11 treinadores estrangeiros no cargo. É um número recorde, com sete portugueses e quatro argentinos entre os 20 clubes. O sucesso de Jorge Jesus e Abel Ferreira escancarou as portas para o exterior e reacendeu debates sobre a qualidade dos técnicos brasileiros.
Na Inglaterra, é justo dizer que o buraco é mais fundo. Os treinadores locais vivem desconfiança ainda maior — e há muito mais tempo.
A Premier League tem apenas quatro treinadores ingleses entre os 20 (exatamente 20%) para o início da temporada 2023/24, que começa no dia 11 de agosto. Se ampliarmos para britânicos como um todo, são sete (35%).
O desequilíbrio é notório dentro das top-5 ligas da Europa. Na Espanha e Itália, são 16/20 treinadores locais (80%). Na Alemanha, 12/18 (66,7%). E, na França, 10/18 (55,5%).
Diversos fatores nos ajudam a entender esses números. A Premier League é a liga de clubes mais rica do planeta. Muitos dos melhores jogadores do mundo estão lá, seja quais forem as suas nacionalidades.
É natural que a lógica se estenda para treinadores. Os proprietários, muitos estrangeiros, dão preferência à grife e qualidade, e com dinheiro e atletas da primeira prateleira é mais fácil atrai-los.
A língua também não é empecilho, uma vez que o inglês é praticamente obrigatório para que o mundo se comunique e os elencos estão cada vez mais globais. Guardiola, Arteta, Klopp, Ten Hag… Todos falam fluentemente e, não menos importante, são excelentes.
Por isso você provavelmente precisa ser um dos melhores treinadores do momento, ou ao menos promissor, para competir por um cargo. Especialmente se estivermos falando do Big Six.
Graham Potter e Frank Lampard até passaram recentemente pelo Chelsea, mas a regra, antes mesmo de Abramovich, é ir atrás de estrangeiros. Até Lampard, que é um dos maiores ídolos dos Blues, o último inglês não-interino havia sido Glen Hoddle, em 1996. Faz tempo…
Veja só os últimos treinadores ingleses não-interinos dos outros membros do Big Six e suas últimas temporadas:
· Tottenham – Tim Sherwood (2013/14)
· Liverpool – Roy Hodgson (2010/11)
· Manchester City – Stuart Pearce (2006/07)
· Arsenal – Don Howe (1985/86)
· Manchester United – Ron Atkinson (1985/86)
O último treinador inglês a terminar entre os três primeiros foi Bobby Robson, na temporada 2002/03, pelo Newcastle. O último vice-campeão foi Kevin Keegan, também pelo Newcastle, mas em 1995/96. E o último campeão inglês foi Howard Wilkinson, pelo Leeds United, em 1991/92.
Desde então, a liga foi vencida por quatro italianos (Carlo Ancelotti, Roberto Mancini, Claudio Ranieri e Antonio Conte), dois escoceses (Kenny Dalglish e Alex Ferguson), um francês (Arsène Wenger), um português (José Mourinho), um chileno (Manuel Pellegrini), um espanhol (Pep Guardiola) e um alemão (Jürgen Klopp).
A não ser que o Newcastle de Eddie Howe cometa o crime, o tabu seguirá vivo. Seja por mais um ano de Guardiola e Klopp, ou o primeiro de Arteta, Ten Hag, Pochettino ou Ange Postecoglou.
Fora isso, só uma grande zebra, mas mesmo assim elas dificilmente não teriam outro sotaque, como macarrônico de Ranieri pelo Leicester na incrível campanha em 2015/16.
Na temporada passada, o espanhol Unai Emery, pelo Aston Villa, e o italiano Roberto De Zerbi, pelo Brighton, foram gratas surpresas ao terminarem no top-7. Tenho bastante certeza que os clubes não se arrependem das escolhas substituindo ingleses (Gerrard foi demitido do Villa, enquanto Potter se transferiu para o Chelsea e abriu vaga para De Zerbi).
Os clubes, mesmo de menor porte e investimento, também têm optado por buscar nomes lá fora. A pluralidade é tamanha que teremos 12 nacionalidades representadas na temporada 2023/24.
Os treinadores da Premier League 2023/2024 e seus respectivos países:
Clube | Treinador | País do Treinador |
---|---|---|
Arsenal | Mikel Arteta | Espanha |
Aston Villa | Unai Emery | Espanha |
Bournemouth | Andoni Iraola | Espanha |
Brentford | Thomas Frank | Dinamarca |
Brighton | Riberto De Zerbi | Itália |
Burnley | Vincent Kompany | Bélgica |
Chelsea | Mauricio Pochettino | Argentina |
Crystal Palace | Roy Hodgson | Inglaterra |
Everton | Sean Dyche | Inglaterra |
Fulham | Marco Silva | Portugal |
Liverpool | Jürgen Klopp | Alemanha |
Luton Town | Tom Lockyer | País de Gales |
Manchester City | Pep Guardiola | Espanha |
Manchester United | Erik ten Hag | Holanda |
Newcastle | Eddie Howe | Inglaterra |
Sheffield United | Paul Heckingbottom | Inglaterra |
Tottenham | Ange Postecoglou | Austrália |
West Ham | David Moyes | Escócia |
Wolverhampton | Julen Lopetegui | Espanha |
Eu não saberia dizer quando esse movimento começou, mas há um ponto de exclamação nessa história: Arsène Wenger. O francês chegou ao Arsenal um pouco desacreditado, em 1996, vindo de um trabalho no Japão, mas promoveu uma revolução.
Arsène Wenger e a mudança de paradigma
Wenger passou a dar mais atenção a aspectos como álcool, dieta, treinamentos e aumentou o nível de profissionalismo da liga através de títulos, incomodando o Manchester United de Alex Ferguson.
O seu sucesso, logicamente, inspirou o Liverpool a nomear Rafa Benítez, o Chelsea a escolher José Mourinho, o Manchester City a optar por Roberto Mancini, e por aí vai. De repente, a Premier League estava recheada de técnicos estrangeiros e esse número só foi crescendo.
Qual seria a solução, portanto, para os ingleses? Há quem diga que a grande chance atual é através da promoção da Championship, como é o caso específico de Paul Heckingbottom no Sheffield United, embora o belga Kompany tenha sido o campeão com o Burnley.
O passo seria estabelecer-se na liga, fazer boas campanhas e aí receber uma oferta melhor, como aconteceu com Eddie Howe do Bournemouth até o Newcastle, por exemplo. Mas é um caminho que certamente levaria tempo.
Outra opção seria tentar a carreira fora, algo que tem acontecido até mesmo com alguns atletas, caso de Jude Bellingham. Conquistar espaço através de competições europeias, ou até mesmo na liga local, e chamar a atenção de clubes ingleses.
Mas e se eles, em geral, não forem bons o suficiente? E se houver uma defasagem na formação? E se estiver caro demais para se tornar treinador ao ponto de apenas ex-jogadores se interessarem?
A Football Association, a CBF deles, precisa correr atrás das soluções. Não me parece um problema simples de resolver.